Não.
É assim
que eu reajo. Não é possível dizer sim, não
se pode ir aceitando, abrindo a porta a qualquer vagabundo, engolindo o
que a humanidade engole. Não e pronto. Não existe outro modo
de salvar.
Decidi ser escritor
aos 12 anos. Aos 15 já era conhecido na minha cidadezinha, publicando
em tudo que era jornal de escola, clube, bairro, sempre convidado para
imprimir meu nome, fosse onde fosse. Fizeram comigo o que fazem com todos:
criaram um monstro, um engolidor de papel, insaciável manipulador
verbal, uma fábrica ambulante de frases.
Acumulei prêmios
de juventude: cartões de prata, diplomas, troféus de plástico
e de madeira – um entulho que, cedo ainda, aos 23 anos da primeira prostração,
se revelou estéril, um equívoco.
Um dia joguei
tudo num caixote de madeira e atirei o caixote na despensa.
Mas era preciso
continuar escrevendo, embora publicar tenha se mostrado, súbito,
não só um engano, mas um muro intransponível para
o exercício, este sim puro, de escrever. Parei um tempo. Tempo que
foi duro, que me entregou a uma aspereza crescente. Passei a duvidar do
que saía nos jornais, nas revistas, nos livros. Não bastava
a ficção das notícias, agora recuso-me à notícia
da ficção, recebo a obra alheia como um sinal de fraqueza,
só isso.
Passei a infância,
a adolescência e a juventude embalado pelo maldito sim, este prevaricador.
Pela fácil aceitação, pelo entusiasmo afoito, pela
consagração que dura um segundo, se dissolve e, rindo, se
renova indiferente.
Apavorei-me:
estavam construindo uma civilização em cima da oferta leviana.
Estavam destruindo outra, mais real, por não admitirem que em seus
pilares residia a coragem de negar, e negar é admitir a verdade.
Vendi a casa
que fora de meus pais, mortos quando eu tinha 18 anos. Era uma casa mais
do que confortável, excessiva para mim, filho único e agora
sozinho. A perda de meus pais, extirpados do universo à minha volta,
separados com violência de uma natureza que até então
se manifestara doce, afável, com cheiro de funcho e no máximo
de malva, com música dominical dos alto-falantes da igreja que eles
freqüentavam, com as conversas laterais entre eles e meus tios; essa
natureza, que ofertava brisas, chuvas peneiradas, ventos controlados e
mornos, morangos silvestres a trezentos metros da casa; essa natureza esfumou-se,
eles desapareceram, da noite para o dia, e essa passagem foi, não
tenho dúvida, o primeiro não, mais revelador que todas as
facilidades que a minha existência até ali ofertara.
Tive outros
não, passei a tê-los seguidamente. E me encolhi, não
soube recebê-los e perdi muito.
A arte da recusa
é lenta, um diamante que precisa ser polido. Recusa que não
devia nortear apenas a literatura, cínica, mas o resto das artes,
principalmente as artes plásticas, descaradas ao extremo, capazes
de uma embromação que faz de um Bosh, de um Van Gogh praticantes
de outra coisa em outro mundo, mais fundos e dignos.
Não tive
namoradas. Elas batiam à minha porta, aos bandos. Eram descartáveis,
insípidas, caíam a meus pés como as folhas no outono
– onde eu morava havia ainda outono, primavera, estações,
remédios naturais miraculosos.
O câncer,
que vitimou meus pais, levou minha mãe num meio-dia, hora estranha
de se morrer, e meu pai três meses depois, às 9 horas de uma
manhã de tanto frio que a água congelou na torneira. O mundo
edificado para o meu conforto estalava, a brisa começava a soprar
mais forte.
Eu estava na
faculdade quando fiquei órfão. O seguro de vida deixado por
meu pai me garantia um futuro tranqüilo. Meu curso – História
– durou quatro anos, ao longo dos quais fui amargando a saudade de meus
progenitores, e me chocando gradativamente com as duras lições
dos grandes homens. César, Napoleão, José do Patrocínio
– gente que provou que a adesão generosa é um suicídio
diante do oportunismo do resto da humanidade, gente que soube impor limites,
que possuiu pulso mais do que firme para segurar a forçada de barra
da gentalha moral.
Não.
Esse era o ponto. Não e pronto.
Saindo de Livramento,
depois de formado, vim para Porto Alegre, onde a batalha foi insana até
conseguir um cargo de professor na universidade federal. Boicotes, preconceitos
contra gente do interior que os caras da cidade julgam humilde, ingênua,
despreparada; enfim, enfrentei tudo e todos e, de certa forma, venci.
A seguir, comecei
a alimentar um ambicioso projeto: criar uma editora. Aliei-me a R. F.,
que chegara do Maranhão disposto a arrasar todos os quarteirões,
principalmente os da poesia. Fora um dos criadores de um movimento – antroponáutica
– que ele mesmo se encarregara de demolir com um inclemente artigo que
os conterrâneos jamais perdoaram. R. F. assinava seus textos assim,
com iniciais que chocavam gente acostumada a nomes pomposos ou corriqueiros.
Fechamos o projeto
na mesa da cozinha do apertado apartamento de R. F., às 5 da manhã
de um sábado. Não dormíramos, não dormiríamos.
Tínhamos um nome, uma linha definida, três coleções
boladas. E um artifício interessante: em cada coleção
alinháramos uma série de títulos clássicos,
ou importantes na história da literatura, para formar uma espécie
de fundo editorial. Isso nos daria a noção exata do que queríamos,
do que precisávamos. Nosso desejo era sincero: publicaríamos
vários livros, todos fundamentais. Para cada original aprovado,
riscávamos um nome consagrado da lista e o substituíamos
pelo novo autor.
Nossas coleções
nasciam prontas, simuladamente prontas.
Era só
esperar a chegada de novos textos.
Partimos para
a inauguração da editora. Grande festa, grande mídia,
o projeto merecia. Nossa estratégia deixou os formadores de opinião
nada menos do que perplexos. Tínhamos um selo, intenções
bem claras, idéias originais, exigências acima da média,
temperamento perfeccionista, e nenhum título.
“É no
mínimo inusitado”, comentou um repórter da FM local, “o lançamento
de uma casa editorial que nada está lançando.”
R. F. respondeu
rápido: “Lançamos idéias, um nível de exigência
maior, e isso representa para a cultura uma contribuição
mais significativa do que se estivéssemos pondo uma obra no mercado
só para cumprir com nossa obrigação de editores.”
“Tu achas”,
interveio um cronista do segundo jornal da cidade, “que nossos escritores
não estão à altura da melhor literatura que se pratica
no país?”
“Nosso projeto
não prevê proteção estatal.” Depois que falei
continuei olhando firme para o cronista, que se afastou constrangido.
Luísa
Lopes, conhecidíssima editora, bem-sucedida em demasia para comportar-se
como concorrente, veio em socorro dos candidatos a editados presentes ao
evento.
“Mas o mercado
pede sem cessar novidade. E o primeiro papel do editor é atender
esse mercado.”
“De um certo
tipo de editor”, disse R. F. Mas Luísa não se afastou, sorriu,
bebeu mais um gole de vinho, sacudiu a cabeça, talvez divertida.
A verdade é
que a noite transcorreu sem outros incidentes. Nosso selo começava
a conquistar um espaço novo. Provocava discussão, fora do
hábito dos que o olhavam e temiam pelo seu próprio conforto.
Causava um processo quase bizarro: interferia na atuação
de outras editoras. Colegas vinham justificar-se.
“Olha, aquele
livro que eu publiquei...”
R. F. nem me
olhava, obstinado atrás de uma mosca que vasculha o pesado ar em
volta. Eu fitava compassivo o editor à minha frente, e alvejava:
“É o preço pelo que estás fazendo. Não há
outra saída. Te resta o argumento da coerência.”
O colega pedia
um uísque, duplo.
Eu retornava:
“Ninguém está interessado em qualidade; em última
instância, ninguém está interessado na verdade. Tanto
que mataram a verdade há horas, até os filósofos.”
Era um papo besta de minha parte, um ponto de vista frágil, fácil
de ser desmontado, mas eu desejava ver até onde aquele pessoal seria
capaz de ir.
Não era.
O editor já se embebedava, e R. F., repugnado, pediu a conta.
“Que gentinha,
cara, que gentinha.”
“E os escritores
não são diferentes”, respondi.
R. F. concordou.
Pegou a mosca, pôs no bolso. “Essa não faz mais besteira.”
O tempo não
espera, passa, e nem olha para trás. Os originais vão chegando,
no início às pencas, depois um por dia, depois um por semana,
depois um por mês. Depois não chegam, vamos em busca de algum
remoto candidato. O medo se abateu sobre os literatos antes dispostos ao
estrelato; agora nos evitam. R. F. passa as madrugadas fumando e recitando:
“Sou um anjo mau, um anjo negro, uma sombra que inibe a luz.” É
o seu modo de autocomiseração, a sua ironia e a sua dor com
todo esse pessoal avesso ao cara a cara.
A editora completa
um ano, faz aniversário, e nenhum livro foi lançado. R. F.
e eu damos uma entrevista a um noticiário da tevê. Nos tratam
como seres exóticos, percebo a malícia oculta atrás
de uma frase do apresentador: “Critérios como os de Anselmo Albuquerque
e do famigerado R. F. são mistérios só para poucos
revelados.” Parece aludir a uma seita de fanáticos. R. F. leva na
flauta o “famigerado”, mas eu não estou para brincadeiras.
Nossa inscrição
no Clube dos Editores é impugnada. Sofremos sutil campanha de difamação.
Quase dois anos e continuamos procurando um livro, um livro ao menos.
R. F., aliás,
escreveu um: Uns bandidos. Eu afinal terminei meu romance, seis anos lutando
com a trama um tanto inconvincente de O décimo planeta. Trata-se
de um drama familiar, dez pessoas, dez planetas obviamente. Nove realizam
dezenas de coisas, mas o irmão mais velho – autêntica consciência
da família –, vai ficando para trás, renunciando a qualquer
projeto e, se a princípio parece ao olhar dos outros um fracassado,
logo demonstra uma sabedoria feita de serena confiança no equilíbrio
das forças que puxam o mundo em direções opostas.
Passa a ser um tipo de guru, o décimo planeta.
O enredo não
é o bicho, admito, mas as relações entre as nove personagens
hiperativas e a décima, que tudo decide, jogada em uma rede é,
no mínimo, provocante, insolente. Sobretudo porque o poder é
de forma indisfarçada exercido pelo pai, seguido da mãe.
E também porque a abulia física do décimo astro o
pôs numa situação de desvantagem. Evidente é
a remissão ao nosso sistema solar, onde um pretenso décimo
planeta alteraria tudo.
E agora, o que
fazer com nossos dois livros?
Não podíamos
publicá-los nós mesmos, sob pena de cairmos no ridículo.
E acontecera o pior: eu gostara do livro de R. F., poemas evidentemente.
Ele gostara do meu, “afinal um romance destemido”, cantarolava de madrugada.
Mandamos os dois pacotes para três editoras ao mesmo tempo. Nos devolveram
em 15 dias.
Não era
o prazo habitual. Essas coisas demoram meses, mesmo entre colegas. Telefonamos
para saber as razões, se possível com detalhes. O primeiro
editor nos recebeu respeitoso e insinuou que se nos publicasse enfrentaria
problemas. “Como assim?”, perguntei inutilmente.
O segundo deu
as desculpas tradicionais no ramo, de que sua programação
já estava fechada para os próximos dois anos. O terceiro
alterou-se: “Tão me gozando, é?”
Eu considero
que um não seguido de alteração no tom da voz, na
temperatura do corpo, de dilatação da pupila, de excessiva
gesticulação, não é um não, é
um atraso. A negativa de Haroldo dos Reis Antunes, o mais antigo editor
da cidade, vinha acompanhada de um ressentimento que me fez oscilar entre
a piedade e a impaciência. Eu já perdera demasiado tempo ao
me expor à leitura daquela gente, e o gráfico ascendente
de seus negócios me apontava a porta de saída.
R. F., naquele
dia, parecia estar com bons modos. “Nossos livros te ofenderam de alguma
forma, Antunes?” O velho engoliu o suor. “Não confunda livro e pessoa.
Quero editar Uns bandidos, não o meu lugar na sociedade.” R. F.
realmente estava com saco. “Digamos que o Anselmo andou chocando alguns
colegas, muito bem, digamos mais, meu caro Antunes, que o meu amigo Anselmo
não valha, como ser humano, um só vintém, mas e O
décimo planeta, não é um bom livro? Merece continuar
inédito?”
“Mas é
muita cara-de-pau!” O velho ia acabar caindo ali, saindo direto da sua
sala para uma UTI. A não ser que eu tirasse R. F. quase à
força e fôssemos embora imediatamente.