ASSIM REZAVAM AS ESCRITURAS

Solitário, ele olhava para a Lua, sentado no banco do jardim. Na pracinha da cidade esquecida, ninguém por ali passava àquela hora. Silêncio absoluto. Talvez já fosse meia-noite ou mais, para ele a hora era o de menos, nada tinha a fazer; apenas admirava a Lua, que naquela noite estava mais bela do que nunca.

Seu nome estava gravado na pulseira que usava, dourada e habilmente gravada. Aparentava ter vinte anos. Alto, magro, cabelos lisos repartidos ao lado, escorregavam-lhe do nariz grossos óculos que denunciavam miopia avançada. O luar, incidindo em seu rosto pálido, conferia-lhe aspecto inquietante. Vestia enorme jaqueta, quem sabe para disfarçar a excessiva magreza, pois não fazia frio naquela noite.

Em certo momento, levantou-se do banco e, sempre a olhar para a Lua, deu voltas pela praça. Parou em frente a uma casa assobradada, que se destacava pela sua imponência. Deixou-se ficar olhando para a casa, enquanto assoviava uma musiquinha indistingüível, mas logo demonstrou cansaço; sentou-se na beira da calçada, sem tirar os olhos da casa. Vez ou outra, olhava para a Lua, talvez para se certificar de que ela ainda estava em seu  devido lugar.

Pelas frestas da janela principal, no andar de baixo, notou uma claridade; alguém estava acordado àquela hora. Sorriu, quando lhe veio à mente a idéia de que ela estava acordada. Levantou-se, aproximou-se da janela; parecia perturbado. Fez que ia bater de leve na janela; freou o movimento, tinha medo. Não, não era medo, quem sabe um sinal de respeito pela intimidade alheia, afinal passava da meia-noite. Crispando os dentes, mandou o respeito às favas e bateu na janela. Esperou alguns segundos e tornou a bater, nenhum sinal; por que ela não abria a janela, estaria dormindo? Mas, e a luz acesa, esquecera de apagá-la? Se estivesse no quarto, certamente estava acordada e ouvira suas batidas. Sim, ela estava no quarto, não queria abrir a janela, talvez receasse, mas receio, porquê?

Começou a se aborrecer. Julgava-se uma criança naquela situação. Bateu mais uma vez e esperou; dez segundos, um minuto, uma hora; chegou a perder a conta do tempo que esperou. E ela que não abria a janela; por quê? Tinha certeza que ela estava no quarto, escondida atrás da janela, teria medo de abri-la? Sabia que estava encostada na janela, sentia sua respiração ofegante, temerosa; mas o temor, porquê? Não lhe queria mal; ele a amava. Fazer-lhe mal? Nem pensar; não a ela.

Súbito, a janela se abriu. O interior do quarto estava vazio, parecia vazio. Ela se escondera? Não, ela abrira a janela, deveria estar por ali. Teria medo de aparecer? Mas, o medo, por quê? Não lhe queria mal. Sim, ela estava com medo, tinha certeza, ora essa, por que temê-lo se ele a amava?

Num movimento rápido, pulou a janela, entrou no quarto e começou a procurá-la, debaixo da cama, atrás da janela, dentro do guarda-roupa. Olhou todos os cantos, todos os lugares, nada de encontrá-la. Não a via, é certo, mas sentia que ela estava ali; a janela não se abrira sozinha, sentira sua respiração colada à janela. Sim, ela estava ali, em algum lugar, nalgum canto, disso ele tinha certeza, a mais absoluta e convicta certeza.

Ficava olhando para ela. Seu nome? Bíblico. Lera esse nome pela primeira vez na Bíblia, criança, nove, dez anos; e esse nome gravara-se-lhe na mente. Esse nome, por quê? Outros, por certo, eram mais bonitos. Não se importava, para ele, era o mais belo do mundo, condizente com ela, o ser mais lindo que já nascera naquela cidadezinha sem nome, esquecida nalgum lugar que os mapas nem acusam.

Conhecera-a há cerca de um mês, quando a viu sair da missa com a mãe; era domingo, um radiante dia de sol. Sim, aquele dia fora lindo, ele a conhecera. Aproximou-se dela, pensou em cumprimentá-la, a mãe puxou-a pelo braço, levou-a para casa. Desde então, a imagem daquela menina de quinze anos, de tranças e grandes olhos azuis, não mais lhe saiu da cabeça. Todos os dias, ficava no banco da praça, vadiando, à espera da hora em que ela ia ou voltava da escola, cadernos debaixo do braço, andar de menina. Ao domingo, ansioso, esperava a hora da missa para vê-la em seu melhor vestido domingueiro, as rendas, o chapéu, as botinas reluzentes a refletirem até o brilho do sol. Sempre recebia o olhar severo da mãe, qualquer aproximação lhe era negada, moça de família não fala com vadios, dizia-lhe a mãe, enquanto puxava-a pelas mãos apressadamente.

Um dia haveria de tê-la para si; e a teria para sempre, sem mãe ou qualquer pessoa que o impedisse. Ela fora destinada a ele, as escrituras assim o rezavam. Ela estava à espera de seu Messias, e ele era o seu Messias. Oh, os outros não sabiam disso! Não se importava com os outros! Sabia que um dia ela seria sua: as escrituras não mentem jamais.

A Lua lhe clareava a face pálida; ele a admirava. Admirava também a moça ali a seus pés, amarrada, inerte, ela, deitada no chão, sem movimentos, sem gemidos, oh, ela nem mais respira!...

Só a Lua pode testemunhar que, naquela noite, ela finalmente seria sua. Assim rezavam as escrituras.

                                                                    Roberto Fortes

 

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