Ele não
consegue modificar a posição de seu braço esquerdo:
a dormência lambe-lhe carinhosamente os músculos apertados
contra o ombro do também mulato; as pernas não existiriam
se não doessem tanto; o cheiro de muitos corpos sulfurosamente em
suspensão – vontade de vomitar o café da manhã que
não teve (o filho da Dona Zefinha morreu de fome ontem, quase que
dava pra ver a cor dos ossos espetando a pele escurinha).
Ele sai finalmente
do trem e corre, olhando sem parar para o alto: o imenso relógio.
O ônibus; precisava correr – difícil de entrar, dentro do
ônibus enfim; o vale transporte, a roleta, calma aí, cara;
dentro do ônibus; não sai o ônibus; não sai o
ônibus; devagar o ônibus; lotada a porra do ônibus; devagar,
lerda, essa buceta desse ônibus; devagar, lerda, essa porra dessa
buceta desse ônibus (o irmão do seu Haroldo tomou um teco
no meio do coco, os miolos pulando que nem os fogos de Ano-Novo); essa
merda não chega nunca.
E chega.
Seu corpo acompanha
a picareta; esta mergulha na terra teimosa, pesando mais que qualquer coisa
no mundo, mais que o mundo até, muito mais que o sol sem peso que
escorre em gotas salgadas – do outro lado da rua um casal bebe uísque
fosforescente encharcado em ar-condicionado (o Marinho da Dona Estela caiu
com um tiro dos home, bala-perdida no meio da ocupação).
Ele sorri com a chegada do meio-dia e sorri também da gosma inidentificável
que insiste em unir os grãos de arroz na marmita – pelo menos não
está fedendo a azedo. E as duas passam deste lado da calçada:
a água do mar ainda em gotas brilhantes sobre a pele, as bundas
lisas e queimadas em torno dos biquínis cor-de-fubá – você
viu o gato?; qual o amigo do Reinaldinho?; tesudérrimo, ele! (a
filha do seu Mariano teve uma puta disenteria, cagou, cagou, cagou, se
cagou até morrer). E as seis horas tomam a forma de uma sirene altíssima.
Só tem
um pouquinho de farinha seu Manuel disse que encerrou tua conta porque
você prometeu que essa semana pagava e não pagou ele disse
que não dá assim não dá e olha só o
arroz já tá acabando e você viu no jornal o leite aumentou
de novo hoje eu botei mais água pra ver se dá pra disfarçar
mas acaba sendo pior porque aí ele bebe e fica chorando pedindo
mais ainda – e ele senta em frente à televisão e sorri porque
pelo menos a luz não tem que pagar e também porque um dia
vai dar uma cagada na vida e terá um dormitório envernizado
e colchões azuis macios e cerveja bem gelada no freezer e um Honda
e um vídeo e uma linda morena de coxas firmas e bunda firme e seios
firmes e sorriso celestial esperando ansiosamente que ele chegue no condomínio
fechado a cinco minutos da praia.
Ao deitar-se
ele toca de leve os ombros de sua mulher e sussurra uma pequena risada
e mergulha arfando, sem se importar com o cheiro de cebola, num velho colchão
de carnes moles e muitas dobras (o Zé, filho da Dona Neusa, se atrasou
três vezes no mês passado e foi mandado embora, tá fazendo
avião pra galera do movimento pra descolar um qualquer).
Está
parado há quarenta minutos. Quarenta e um minutos. Quarenta e dois
minutos e alguém força um a porta, e outros seguem-lhe o
exemplo, e alguém começa a gritar quebra essa porra, e ele
sai pela janela, e alguém lhe entrega uma lata de querosene, e ele
grita sai todo mundo de dentro dessa porra (pedras chocam-se contra o metal
do trem que reflete o sol sem peso), e alguém grita vambora, taca
fogo nessa porra, e ele começa a espalhar o querosene, e muitas
pessoas passam correndo, e ele pergunta quem tem um fósforo aí,
alguém lhe dá uma caixa, e ele risca um fósforo, e
o trem se torna vermelho, um vermelho somente visível através
da fumaça negra que sobe e parece gargalhar.
Fernando Toledo