No início
ele estava com medo. Paralisado. Sabia que era um desejo de infância
e infantil. Aos sábados à tarde, a família se reunia
em frente à televisão para assistir aos programas de auditório.
Ele, menininho, ficava esperando a melhor parte dos programas, sentadinho
no sofá.
Não dava
mais para desistir. Estava tudo pronto, ele inclusive. Jorge mandou sua
mulher e seus filhos para bem longe, quer dizer, o lugar mais longe permitido
por seu salário, a Disneylândia. E rezava para que nenhum
parente ou amigo estivesse vendo tevê naquela tarde.
Olhou-se várias
vezes no grande espelho, contornado por várias lâmpadas baratas,
algumas queimadas, e pensou que naquela situação ninguém
o reconheceria. Nem a sua mãe, caso estivesse viva.
Um dos funcionários
da tevê avisou, olhando na planilha: - faltam dois minutos para a
entrada de Rodaika. Enquanto isto, seus filhos e sua mulher assistiam a
um documentário sobre sexo entre os animais, na televisão
do hotel, esperando a chuva passar para verem o Miquei Mause, com as orelhas
murchas de tanta água.
— Rodaika,
três minutos — voltou o cara da produção. Jorge repassou
mentalmente a música: — eu sobreviverei, eu sobreviverei, dizia.
Não conseguira decorar toda a letra, mas também não
precisaria. Era só mexer a boca. O suor começou a brotar
nos cantos da testa, o que o deixou um pouco assustado. Tinha visto vários
filmes nos quais o dissimulado perdia seu disfarce por ter o rosto molhado
pelo suor. Passou levemente, para não estragar tudo, um lencinho
de papel na face.
— Um minuto
— gritou o cara puxando-o por um braço. Finalmente, o desejo seria
realizado. Vinte e poucos anos depois, mas seria.
Nos Estados
Unidos, Júnior, o filho de Jorge, cansado do documentário
em inglês, resolveu procurar outro canal. Desenho animado, não.
Basta o Miquei, pensou. Filme, não. Seriado americano, não.
Programa de auditório: — vamos ver isto, tá? — informou democraticamente
à mãe e à irmã. Acostumados aquele tipo de
programa, nem perceberam que era o mesmo que viam no Brasil. Lá,
exclusividade do hotel para os hóspedes brasileiros. Júnior,
menininho, se ajeitou na poltrona e esperou a melhor parte do programa,
sentadinho.
No palco, o
apresentador anunciou: — e para abrir o xou de transformistas, Rodaika,
a Inabalável. E Jorge entrou no palco, mostrando suas pernas depiladas
que saíam da racha do vestido vermelho, de salto alto, peruca amarela,
plumas cor-de-rosa e gesticulando sua boca lilás, como Rodaika,
a Inabalável. Jorge dublava uma música dos anos setenta.
"I will survive, I will survive". Era um desejo de infância. Sua
mulher e sua filha davam gargalhadas a quilômetros dali e diziam:
— olha a bicha-louca. Vê o seio postiço dela. Que pernas,
hein? Júnior, quieto só na aparência, batucava os dedos
ao ritmo da música de discoteca e pensava: — um dia ainda farei
aquilo.
Israel Castro