Joilson adorava os artistas de rua, sempre que passava por um parava para assistir. As apresentações eram curtas, comparadas com o tempo que gastavam na venda dos produtos, mas até essa técnica era interessante. Como não podiam cobrar entradas, garantiam a sobrevivência com as vendas dos intervalos. Vendiam diversos produtos, entre eles, um creme de banha de peixe elétrico que servia para passar em tudo, até no vestibular. O preferido de Joilson era o Homem Avestruz. Um rapaz que engolia cacos de vidro, pedras, relógios, garfos, facas e no ponto alto do seu show, engolia um cadeado fechado com a chave, depois retirava-o aberto do estômago. Certo dia, indo ao banco, Joilson viu um deles e perguntou:
— Cadê o Homem Avestruz?
— Você não sabe! — o artista respondeu.
— Sabe, o que? — perguntou Joilson.
O artista, que era um palhaço, ficou sério e lhe disse: — Ele morreu!
— Morreu! — Joilson repetiu — Como?
— Foi discutir com um revólver e engoliu cinco balas de chumbo.
Os olhos de Joilson se fecharam.
Sua saliva não queria descer. Se despediu com poucas palavras e seguiu em frente. Quando chegou no banco, um rebanho se afunilava na mesma caixa registradora. Calejado pela rotina, sentou-se no chão. O guarda nem disse nada, se pudesse, teria sentado-se também. Então a fila se transformou numa cascata de dominós. Um primeiro impaciente resmungou e foi contagiando todos os outros. No chão, olhando o mundo de baixo para cima, Joilson preferiu acompanhar o balé dos pés. Uns batiam rápidos, outros devagar, uns no ritmo, outros fora. Amarrou sua atenção ali e ali ficou, até o sanfoneiro chegar.
O sanfoneiro era cego e ganhava a vida com a arte aprendida na infância. Sentou-se numa caixa de pêssegos, colocou um chapéu na frente e começou a desfiar um repertório que ia de Asa Branca à Bessame Mucho, cortando caminho por New York, New York. Ao sair do banco, Joilson foi depositar sua oferenda para o sanfoneiro, mas quando estava se aproximando, um homem apressado, mais cego do que o cego, chutou o chapéu sem nem perceber. Joilson correu apanhá-lo, antes que o vento soprasse as notas longe, recolocou-o no lugar e acrescentou alguns de seus trocados.
No caminho de volta, parou numa banca. Escolheu três revistas e pediu ao jornaleiro que as somasse. Quando o jornaleiro disse o preço, Joilson contou seu dinheiro e percebeu que não tinha o suficiente. Escolheu duas revistas e pediu ao jornaleiro que calculasse de novo. O homem pegou todo o dinheiro de Joilson, contou, colocou as três revistas num saco plástico e disse que estava tudo certo. Joilson agradeceu e foi para o ponto de ônibus.
Enquanto esperava, sentou-se na sarjeta e ficou observando a feira hippie na praça em frente. De repente, do fundo de uma mochila de couro, surgiu um toca-fitas. Bastaram os dois primeiros acordes de uma música para os ânimos se aflorarem, e, como numa tradição religiosa, todos se levantaram ao mesmo tempo. A melodia que inundou o ar era um baião que ousava encobrir o ronco azedo dos escapamentos. As damas hippies, com saias de renda, começaram a rodopiar entre os gnomos de durepox; os cavalheiros, com dragões tatuados nos braços, por extinto, improvisaram uma espécie de dança do acasalamento. A poeira foi subindo, subindo e, aos poucos, a praça metropolitana se transformou num arraial nordestino.
Os olhos de Joilson arderam feito fogueira.
O coletivo chegou. Joilson se despediu mentalmente e partiu. Durante o caminho, viajou na idéia que a vida era um ônibus: uns subiam, outros desciam; ficava cheio, depois vazio; tinha japonês, loiro, negro e nunca parava, até, como na redação, chegar no ponto final. Na frente de Joilson tinha uma senhora, atrás dela, uma criança de colo. Um rapaz com a camiseta suja de graxa estava de pé, ao lado de um senhor de terno. Um estudante, sentado, segurava as mochilas dos amigos. Os rostos variavam entre a fotografia e a xilogravura e juntos, formavam um mosaico de almas. Assim, à cada assombro, Joilson foi mergulhando nos Raimundos e em seus mundos; nas Veras e em suas esperas, nas Ritas e seus ritos, nos Romeus e nos seus. Então um calor clandestino lhe cutucou. Era a cumplicidade. A compaixão que lhe ardia no peito. Joilson olhou para o ônibus cheio de anjos caídos e sentiu-se numa igreja de rodas; sentados ou em pé, estavam todos rezando, todos compartilhando da mesma falta e da mesma misericórdia.
À noite, antes de dormir, Joilson somou o preço das revistas e percebeu que o tanto que faltou, era exatamente o tanto ele havia dado ao sanfoneiro.
Os olhos de Joilson ascenderam-se feito estrela.
Marcelo Ferrari