A SEREIA ALBINA
   
    Foi a música que atraiu Teresa para a minha vida. Eu costumava manter as janelas fechadas, o som no último volume e ficar de cuecas dançando no meio da sala. Num sábado assim a campainha da porta tocou e atendi depois de agarrar o shorts que eu deixava sempre no sofá para casos de emergência. A garota de biquíni listradinho, sarará, deliciosa como uma sereia albina, era Teresa. Disse que morava dois andares acima do meu, que sempre ouvia as músicas que eu tocava e foi entrando.
    Como todo idiota que dança de cuecas no meio sala, fiquei encantado. “Você sabe que ouvir música assim tão alto é um sintoma de solidão?”, Teresa perguntou, me encarando de frente. Seu bafo de cerveja, seu cheiro agridoce de maresia, me deixaram meio tonto, os olhos vermelhos de ostras encandecentes me encaravam de uma outra dimensão. “Sabia”, falei sorrindo, pensando no que ela diria se soubesse que além de ouvir música alta eu ainda dançava de cuecas no meio da sala. Ela me mediu com aquele olhar de fita métrica que toda mulher possui quando encontra o objeto do seu desejo e também sorriu.
    “Você tem alguma coisa prá beber?”, ela perguntou se instalando nas almofadas. Fui até a cozinha, abri a geladeira, peguei o litro de vodca, algumas laranjas, e comecei a preparar o hai-fai. Repeti essa operação até secar o litro e Teresa começar a dançar de biquíni listradinho no meio da sala. “Você sabe que costumo fazer isso de cuecas!”, falei no meio da tempestade dissonante de Temptation que a voz de metal ferruginoso do Tom Waits desabava sobre nós e Teresa caiu na gargalhada, não se importando nem um pouco com o mamilo do seio esquerdo que havia escapado da parte de cima do biquíni.
    Depois ela foi embora e fiquei ali sentado no sofá da sala. Fiquei muito tempo ali sentado, meditando sobre as listras dos biquínis, olhando para a garrafa de vodca vazia, a cabeça rodando tão lentamente como o disco no prato, as notas musicais fazendo curvas fechadas em torno da minha cabeça como pássaros bêbados do sábado a tarde.
    No domingo estou na praia. Aquela claridade de plástico derretido grudando-se toda na minha pele e os óculos escuros suavizando o impacto da onda. Claro que não sou o tipo de sujeito das praias de domingo. Aquele inferno de areias escaldantes, potinhos e pazinhas de plástico amarelo, guarda-sóis multicoloridos e corpos grelhados sobre esteiras de ciçal nunca haviam me seduzido com suas marolinhas de fim-de-semana. O fato, no entanto, é que o Moisés havia aparecido na minha porta logo cedo com algumas latinhas de cerveja e a cartela de comprimidos no bolso.
    Ficamos ali na sala bebendo as cervejas com os comprimidos até que o Moisés falou: “Cara, esse sol nas persianas está me deixando louco! Precisamos sair daqui!”, e saímos e acabamos ali na areia praia.
    Caminhávamos devagar por entre os corpos esparramados na areia, os caquinhos de vidro moído do sol fazendo cortes de meia polegada nos meus ombros, provocando uma coceira ardida na parte mais delicada dos olhos; o mar longe demais para se tentar qualquer coisa e já estou mandando o sol, o domingo e os potinhos, as pazinhas amarelas e os guarda-sóis multicoloridos tudo `a merda e voltando para as minhas quatro paredes prediletas, quando avisto Teresa sentada numa toalha, quase ao lado do carrinho de batidas. Ela também me vê, acena, e só me resta ir em sua direção.
    Pelo visto a noitada de sábado havia sido mais quente do que aquele tórrido sol dominical. Ela, de biquíni listradinho, estendida na toalha, estava muito mais gostosa do que quando entrou pela primeira vez pela porta do meu apartamento. Mas só posso dizer isso do pescoço para baixo, pois seu rosto trazia todas as marcas de uma noitada quente. Seus olhos vermelhos embaçados estava fundos, encovados, o rímel havia derretido com o suor e borrado, como se ela tivesse chorado lentas lágrimas negras. O rosto parecia realmente uma máscara amassada de final de carnaval. Notei que ela estava de sapato de salto alto e fiquei pensando em como ela havia conseguido atravessar toda aquela areia de salto alto. Ela ainda estava bêbada e o sol na sua pele muito branca dava impressão de uma morta que alguém levará a praia para tomar um solzinho de domingo.
    “Nossa! Você por aqui?”, ela me disse sorrindo exatamente como uma onda quebrando na arrebentação. Fiquei na minha enquanto o Moisés ia até o carrinho de batidas e pedia três bem geladas e duplas, o calor começava a derreter os neurônios. “Escute, eu vou me virar e você passa o bronzeador em mim!”, ela disse e foi virando aquela bunda espetacular. Derramei um pouco do creme branco na palma da mão e fiz o que ela queria.
    O corpo dela estava quente, o bronzeador estava quente, as areias, os potinhos e as pazinhas de plástico, os guarda-sóis, o carrinho de batidas, toda a praia e o mar e a cidade inteira estavam quentes, borbulhavam, e fui ficando de pau duro enquanto espalhava bem devagar o bronzeador por aquele corpo branco de curvas, protuberâncias e reentrâncias abismais. “Hum!, que mão macia! Isso está me dando um tesão louco!”, ela ronronou com aquela voz de Billie Holiday depois da terceira dose.
    Ficamos um tempo nisso. Eu de pau duro passando bronzeador naquelas curvas, derrapando de vez em quando para dentro do abismo daquelas coxas, Teresa gemendo baixinho, e o Moisés ao lado, de pé, com o copinho de plástico cheio de batida, bebendo devagar, nos observando com os olhos semicerrados como se ele estivesse flutuando dentro de uma bóia em pleno alto mar. Depois resolvemos sair dali porque o calor estava começando a transformar a areia da praia numa imensa chapa de zinco a 45 graus Célsius e a sola dos nossos pés em carne tostada para hambúrgueres bem passados.
    Voltamos para o apartamento, preparamos o macarrão de domingo e o comemos na sala, entre as almofadas, com os copos sempre cheios de vinho gelado. “Coloca aquela música e deixa rolar!”, Teresa pedia com os olhos tão vermelhos quanto o traço vertical do molho de macarrão que escorria-lhe por entre o veio dos seios. A música era uma balada romântica do Leonard Cohen, The Future, e ela passou a ser imediatamente a nossa trilha sonora. Eu ouvia a canção, colocava uma garfada do macarrão na boca e pensava: “Como ela consegue se transformar tão rapidamente? Algumas horas atrás ela não passava de uma mulher cansada da orgia, quase uma vagabunda de rímel manchado, a boca borrada pelo batom, de biquíni e salto alto na areia da praia e, agora, não passa de uma menina comendo macarrão na minha sala, é espantoso!”, pensava isso e Teresa, como que adivinhando meu pensamento, olhava para mim e sorria seu sorriso vermelho de molho de macarrão e então eu sorria de volta, bebia mais um gole e deixava o sol forte bater suas asas iluminadas pelo domingo.
    O Moisés era um loiro de olhos verdes, uma espécie de Apolo decadente viciado em bolinhas coloridas que provocassem resfriamento instantâneo a qualquer sentimento mais forte. As mulheres ficavam logo caídas por ele, as mulheres são assim: se apaixonam imediatamente pelo que atrai os olhos, vivem da Forma, da aparência do belo, o conteúdo para elas não faz qualquer sentido. Eu já estava acostumado com isso, com minha cara de muro de orfanato, meu corpo esquelético de costas curvas e com o meu par de olhos de noite submersa, eu já sabia que não conseguiria muita coisa. O máximo que eu conseguia despertar nas mulheres era uma vaga piedade maternal. Mas não me preocupava com isso, como todo erro biológico, eu sabia aproveitar muito bem as migalhas que me cabiam. Foi por isso que não senti nada quando Teresa me disse dois dias depois, no corredor do prédio, que aquele meu amigo era uma gracinha. Dei um sorriso de esguelha como resposta, já me preparando para assumir o fim da fila na sua preferência, quando Teresa se aproximou bem de mim, grudando todo aquele corpo maravilhoso no meu, roçando o bico dos seios no meu peito, enfiando as coxas entre as minhas pernas e me disse: “Mas beleza não põe mesa. O que eu gosto mesmo é de ouvir você falar essas merdas sem sentido que você diz, me dá um beijo gostoso agora!”
    O beijo de Teresa mereceria um volume de doze fascículos ilustrativos e mais um ou dois fascículos suplementares para as notinhas de rodapé. Os lábios eram suaves, a sensação era como se você estivesse beijando uma nuvem, a língua sabia trabalhar macia como uma bailarina na hora do padedê. O sabor era de um gosto limpo, gostoso como vinho gelado as três e meia da tarde.
    O fato é que depois daquele inesperado beijo aquele corredor do prédio nunca mais foi o mesmo. As vezes eu abria a porta do apartamento e ficava ali parado no corredor, os braços idiotizados estendidos ao longo do corpo, os olhos fora de foco, fixos no interruptor da luz. Os outros moradores quando entravam no prédio e me viam ali parado não entendiam direito o que estava acontecendo e é claro que eu não perdia o meu tempo tentando explicar-lhes que eu só estava tomando o meu vinho gelado das três e meia da tarde, eles não entenderiam, eram abstêmios convictos, desconheciam a embriagues aérea que um beijo inesperado provoca. Para eles nada de oceanolábios.
    De repente todas as notas se encaixavam e a melodia fluía solta. “Aumente isso!”, pedia Teresa e então eu rodava o botão do volume até o último grau e o Mick Jagger ficava gritando dentro de nossos tímpanos I Miss You e isso nos embalava.
    Teresa possuía uma maneira toda especial de dançar, ela sabia movimentar os quadris como ninguém, aqueles movimentos de cintura deixavam eu e o Moisés a ponto de bala. A maneira como ela jogava o ombro em curva para os lados, levantava o cabeça em perspectiva e abria a boca mostrando só a pontinha da língua me dava calafrios. Aquilo sim é que era se mexer. Se Ana Botafogo visse Teresa dançar certamente penduraria as sapatilhas na mesma hora.
    Numa tarde abafada, depois de dançarmos até ficarmos com o corpo formigando e com os músculos das pernas repuxando como pequenos choques elétricos de 20 volts, Teresa sentou-se na poltrona amarela, tirou um dos seios para fora e perguntou se eu queria chupá-lo.
    Sempre fui vencido por nocaute pela timidez e também não estava acostumado que me oferecessem os seios para chupadas grátis, foi por isso que não aceitei. Teresa então deu aquela gargalhada de mulher que está contente com o que tem e disse guardando os seios dentro da blusa: “É por isso que eu gosto tanto de você! Parece que você não se importa e é isso que dá tesão!”, ela disse isso colocando suas mãozinhas na minha coxa, alisando os pêlos de minha perna, me deixando de pau duro por pura maldade. Depois ela se voltou para o Moisés e deu-lhe um beijo demorado, com estalos e barulhos moles de línguas se enroscando. Foi assim que nós três começamos a ensaiar um outro tipo de dança.
    A coisa foi se desenvolvendo exatamente como um solo de Miles Davis. Todas as harmonias e dissonâncias fluindo pelo ar e só dava nós três no salão. Em tempo recorde Teresa se transformou na essência das coisas. Os dias ficaram mais luminosos, a música mais alegre, as noites e, sobretudo, as madrugadas, muito mais quentes.
    Passávamos a maior parte do tempo dentro do meu ou do apartamento de Teresa. As dissonâncias do mundo ao nosso redor não nos feria os tímpanos, estávamos em plena harmonia.
    O Moisés me chamava e eu ia ver o que estava acontecendo. Quando o encontrava ele estava de pé na porta do banheiro. Eu olhava lá para dentro e Teresa estava nua debaixo do chuveiro. Ela ficava um tempo ali se alisando debaixo da água morna, depois se enrolava numa toalha e nos prensava contra a parede do corredor. Abraçava o Moisés e o envolvia com um beijo de língua de primeira linha, enquanto as mãozinhas dela buscavam meu pau. Eu deixava ela achar e ficar mexendo por um tempo. Em seguida eu me encaixava atrás dela e estava feito o sanduíche.
    Ficávamos ali naquele esfrega-esfrega até as pernas começarem a bambear. Então, inesperadamente, Teresa parava com tudo e caia na gargalhada. Eu e o Moisés ficávamos ali encostados na parede do corredor, de pau duro, disfarçando. Ela corria para o quarto porque estava atrasada para o baile. Abria a porta do guarda-roupa, deixava a toalha cair e ficava por um tempo se admirando nua diante do espelho. Tinha esperança que o cara que ela gostava, naquela noite, ia ceder ao seus encantos.
    O Moisés deitava na cama, eu ficava de pé na porta e nós dois ficávamos assistindo Teresa se arrumar. Aquilo era um maravilha. Não existe espetáculo mais grandioso do que uma mulher se vestindo. A coisa fica ainda mais fascinante quando essa mulher se arruma para abater o pretendido. Era um verdadeiro ritual de sacrifício e eu não sentia nem um pouco de pena da vítima.
    Depois de arrumada, Teresa nos dispensava. Ficava o Moisés e eu ali de graça, olhando um para a cara do outro, ouvindo o Lou Reed cantar baixinho, vigiando pelo olho mágico todo morador que entrava. Eu morava no térreo e qualquer um que entrasse teria de passar por minha porta, isso era inevitável, ninguém seria louco de querer escalar os doze andares do prédio.
    Por volta das quatro da madrugada eu ouvia alguém mexendo na porta de entrada, corria para olhar pelo o olho mágico enquanto o Moisés aumentava o volume da música: era o nosso código secreto. Eu via Teresa se aproximar de minha porta, o corpo lindo dela distorcido dentro do olho mágico, via ela sorrir. Algumas vezes ela entrava, outras não. Tudo dependia de como fora sua noite de caça. Eu adorava o estilo dela.
    Teresa morava com uma irmã que era o reverso dela. Mas isso não comprometia em nada. As duas trabalhavam num motel. Teresa era gerente e a irmã cuidava do resto. As coisas funcionavam assim entre as duas e elas se davam bem.
    Rosana, ao contrário de Teresa, não possuía qualquer atrativo especial. Era mirradinha, aparentando mais idade do que realmente tinha, parecia considerar a vida um saco insuportável e só se dedicava ao trabalho no motel e ao crioulo de quase dois metros de altura, gordo como um deus africano e tão manso como um orangotango com sono. Os dois juntos era uma visão a parte. Ela, Rosana, pequena, muito branca, uma coisinha de nada. Ele, o criolão, enorme, pesado, negro como uma noite na tempestade. Dos dois não se poderia afirmar que formavam um belo par para pousar nas páginas da revista Casal Perfeito. Mas pareciam gostar muito um do outro e era isso o que realmente contava.
    Eu sempre via Rosana carregando sacolas. Ela sempre estava com elas, era uma espécie de vício ou de auto-tortura, nunca perguntei. Lembro que uma vez eu a ajudei a levar uma trouxa de roupas enorme até o apartamento delas. Foi nesse mesmo dia que conheci Kátia, a prima de Teresa e Rosana. Mas não chegamos a conversar nada naquele momento. A porra daquela trouxa havia me deixado completamente sem forças. Tive de ficar sentado um tempo no degrau das escadas para recuperar o fôlego.
    No final da tarde Teresa apareceu com a prima. Dessa vez olhei bem para a garota. Vestia uma calça toda manchada, uma blusa preta com cordões e babados, tinha o busto um pouco grande, os cabelos longos não eram iguais aos de Teresa, eram sim iguais a calça, manchados, todos os fios desbotados, num tom enjoativo, como se alguém houvesse quebrado uma dúzia de ovos moles em sua cabeça. O corpo era desproporcional pelos lados, ainda estava se ajeitando na fôrma, ela estava saindo da adolescência e não havia se acostumado ainda em ser mulher, não me chamou a menor atenção.
    Ficamos ali na sala ouvindo Roger Waters, bebericando a cerveja, até que Teresa teve a idéia de buscar o Moisés no trabalho. Fomos. Teresa era a dona do carro prateado que estava estacionado na frente do prédio e me sentei no banco de trás com minha latinha de cerveja. Teresa pegou a avenida da praia com o sol do fim da tarde desmaterializando todos os prédios da orla e a Laurie Anderson fazendo a trilha sonora de fundo.
    O Moisés trabalhava no Setor de Eletrodomésticos do supermercado. Ele havia conseguido o emprego a pouco tempo e precisava mostrar serviço, bom comportamento, ambição e vontade de vencer. Quando ele nos viu entrar em seu setor colocou as mãos no rosto, como se quisesse se esconder. De fato, devo confessar, que nós não éramos nenhum cartão de visitas recomendável. Bastava um rápido olhar para as calças e cabelos manchados de Kátia, para o short de lycra delineando como uma segunda pele a bunda de Teresa e para o meu macacão sujo, com manchas suspeitas por todos os lados, que qualquer gerente de departamento saberia que não iríamos passar pelo serviço de inspeção e qualidade do Ministério da Agricultura.
    Por detrás das lentes ovais de meus óculos escuros pude ver o pequeno desastre que nossa presença causou. A tensão foi tanta que eu não via a hora dos refrigeradores, geladeiras, microondas, enceradeiras e máquinas de lavar, que estavam ali espalhados pelo setor como animais metalizados em exposição, começassem a funcionar em potência máxima, confundindo o pessoal da manutenção.  “Escutem, eu saio daqui dentro de vinte minutos, me esperem no carro!”, pediu o Moisés e nós aceitamos porque senão ele teria um ataque cardíaco fulminante, o cara estava se cagando de medo de perder o emprego.
    Esse é o problema dos homens que são belos: ou eles viram mulher, ou são inseguros demais, ou são insuportavelmente convencidos, nunca levam a coisa numa boa. No caso do Moisés ele era todas as coisas juntas, isto é, não havia virado mulher mas possuía uma queda por garotos, principalmente os de dez, onze e doze anos. Era inseguro porque, apesar de belo, precisava trabalhar como vendedor e isso para ele era humilhante. E era insuportavelmente convencido de suas qualidades sedutoras que, na verdade, eram quase nulas. Isso porque, como as mulheres lindas, ele possuía apenas a inteligência dos bonecos bem empalhados. A natureza é assim, perversa. Ou beleza ou inteligência, as duas juntas só em raríssimas exceções, até agora não encontrei ninguém que preenchesse todos os requisitos básicos de um bom papo e uma boa foda.
    De qualquer maneira, para resolver o dilema, o Moisés havia encontrado os comprimidos coloridos. Eles o estabilizavam ao mesmo tempo que potencializava tudo aquilo que ele gostaria de esquecer. É verdade: “O mundo é uma armadilha que funciona perfeitamente”. Assim, voltamos para o carro. Passamos antes no setor de bebidas e compramos um vinho tinto. Ficamos ali sentados dentro do carro prateado ouvindo as músicas do rádio e passando a garrafa de vinho um para o outro até o Moisés aparecer pálido, de boca seca, os olhos verdes arregalados: “Vocês me fuderam!”, foi o que ele disse quando entrou no carro. Mas isso não era novidade. Estávamos ali para foder mesmo. Teresa deu sua gargalhada em si bemol, arranhou uma segunda e caímos na noite.
    Nossa primeira parada foi num rodízio de pizza. Mas os comprimidos colorido nos tirava a fome e nos limitamos apenas a beber. Os garçons não ficaram felizes com a gente. Eles se aproximavam com aqueles pedaços enormes de pizza e tudo que conseguiam de nós era um “Não, muito obrigado! Mas pode trazer outra garrafa!”, e eles iam embora com as bandejas. Todo o tempo que ficamos ali eles não desistiram nem uma vez de nós convencer a comer os pedaços de pizza, era o serviço deles.
    Depois rodamos por outros bares até que chegou aquele momento do estalo. Esse momento é especial e só quem bebe o conhece. É um click dentro dos tímpanos, uma breve parada respiratória, um estremecimento frio no núcleo do coração, um torpor generalizado e, a partir daí, é o estalo, aquele lugar nenhum onde você fica vagando com o corpo cheio de formiguinhas saúvas passeando descontroladas por sua corrente sanguínea. Então nada mais importa e tudo que sobra são flaschs instantâneos de uma alegria gelada, vaporosa, que vai se dissolvendo no ar como espirais de fumaça. Todos falam ao mesmo tempo sobre nada, gargalham até cair da cadeira, os sentidos ficam exatos, aguçados, envolvidos por uma névoa indolor, é uma maravilha, a verdadeira Strututtura Assente que fala Umberto Eco.
    Teve um momento que decidimos que o melhor para nós era mesmo dentro do carro prateado. Ali dentro tínhamos intimidade, música, bebida e a paisagem passando pela janela como um cinema em 3D, o que mais poderíamos querer de uma noite de sexta-feira? Acabamos indo para o alto da ilha e foi aí que quase morremos.
    O negócio aconteceu assim: eu, sentado no banco de trás, meio levantado, beijava Teresa, que estava no banco do motorista, enquanto Moisés trabalhava nos seios dela. A Kátia, sentada ao meu lado, só observava nosso número de malabarismo erótico. Acho que foi o Moisés, louco de desejo, que esbarrou no freio de mão e colocou o carro em movimento. Estávamos ali no alto da ilha, naquela parte mais escura, com o abismo logo abaixo. Quando o carro prateado começou a deslizar rumo ao precipício nem eu, nem Teresa e nem o Moisés notamos. Estávamos ocupados demais com nossas línguas e dedos para nos preocupar com desastres automobilísticos. Foi a Kátia quem deu o alarme: “Estamos descendo! Vamos cair lá no fundo das pedras!”, ela começou a gritar. A voz dela ficou um tempo batendo dentro da cabine até tomar sentido.
    O Moisés foi o primeiro a vir à tona. Percebeu que iríamos virar geléia no fundo do mar e se desesperou. Agarrou o volante e o carro começou a dançar de costas. “Pisa no freio!”, gritava Kátia já histérica. Abri os olhos e encarei o abismo se aproximando pelo espelho retrovisor. Teresa gargalhava de nervosismo. Foram os três ou quatro minutos de terror mais forte que alguém já viveu dentro de um carro prateado.
    Quando finalmente o cérebro de Teresa decidiu dar o comando para os pés pisarem no breque nós já estávamos a quatro palmos do abismo. O carro ficou parado um tempo ali na beira como se decidindo se caia ou não. Depois Teresa acelerou e saímos dali.
    A adrenalina do medo da morte havia atingido seu nível mais elevado e era por isso que estávamos berrando ao mesmo tempo, gritando, gargalhando e chorando como autômatos desgovernados. Só fomos nos acalmar no apartamento.
    Ali no apartamento nos esparramamos no tapete, ligamos o som e começamos a esvaziar o litro de uísque. Quando a garrafa já estava muito abaixo da metade eu inventei um jogo. Peguei o baralho e falei que quem tirasse a menor carta era obrigado a tirar uma peça de roupa. A regra foi aceita de imediata e três rodadas já estávamos todos nus.
    Houve um momento de indecisão porque ninguém sabia direito o que fazer com a própria nudez. Foi, naturalmente, Teresa quem deu sentido a coisa. Ela disse: “Agora eu quero um beijo seu!”, e eu dei e tudo começou a arder, exatamente como se alguém houvesse deixado cair um palito de fósforo aceso dentro de um barril de pólvora.
    Ficamos ali misturando nossas salivas e nossos corpos até a tarde do dia seguinte. Acredito que batemos algum tipo de record no que tange a categoria orgias, nunca consultamos o Guinners para saber se nossos nomes estavam lá, de qualquer maneira eu me sentia revigorado, no banheiro, durante o banho, eu cantava I Fell Good sem qualquer sentimento de culpa.
    Essas noitadas dionisíacas ocorreram durante toda a semana. Depois Kátia precisou voltar para o sul e fomos levá-la até a rodoviária. Ela embarcou e voltamos para o apartamento. Ficamos os três ali na sala dando um tempo, bebendo em silêncio, até que Teresa falou: “Bem, vamos para a cama!”, e a tristeza que estávamos sentindo pela partida de Kátia se desvaneceu assim que Teresa começou a sua cavalgada. Ela sabia fazer aquilo como ninguém, parecia possuir molas nos quadris, era macia, muito bem lubrificada e apertadinha, com a largura exata para duplas penetrações, a natureza havia caprichado naquele corpo.
    Ficamos nesse namoro a três por quase um ano. Durante todo esse tempo tínhamos o que queríamos: música, sexo e bebida com comprimidos vermelhinhos. Nos divertíamos com nossos corpos e os deuses da música, da dança e da luxúria sorriam para nós.
    Numa tarde de sábado, no entanto, depois de mais uma sessão de prazeres totais, o Moisés ficou calado num canto da cama, enquanto Teresa e eu terminávamos o nosso beijo ardente de final de mais uma deliciosa foda. “O que há?”, perguntei com um dos seios de Teresa na palma da mão. “Nada!”, o Moisés respondeu olhando para os meus dedos que brincavam com os mamilos de Teresa. E foi esse olhar que quebrou nosso encanto. “Você se apaixonou! Idiota! Agora está tudo acabado!”, foi o que Teresa gritou. Depois ela pulou da cama, vestiu as roupas e subiu para o apartamento dela.
    Fiquei ali de pau mole vendo mais um sonho lindo escorrer para o bueiro. O Moisés também foi embora e ficamos um longo tempo sem nos ver.
    Como morávamos, eu e Teresa, no mesmo prédio, era inevitável nos encontrarmos de vez em quando. Quando isso acontecia, ela sorria, passava a mão pelo meu rosto, me encarava por alguns segundos e seguia em frente. Só duas ou três vezes é que ela atendeu ao meu chamado de música alta. Então ela entrava, tomava uns goles, dizia umas frases e ia embora. Depois que ela saía ficava um silêncio pesado dentro da sala que nem a mais potente caixa acústica seria capaz de abafar.
    Só fui encontrar com o Moisés muito tempo depois. Isso aconteceu na entrada de um festival de música. Eu ia tocar e ele estava completamente mudado. Não era mais o Apolo de olhos verdes brilhantes dos outros tempos. Estava muito gordo, bastante pirado, não falando coisa com coisa. A última visão que tive dele foi de vê-lo caído ao lado do relógio de sol da praça defronte ao clube onde estava tendo o festival. Alguns meses depois fiquei sabendo que o Moisés havia morrido e fiquei pensando que aquele dia do festival que nos encontramos pela última vez ele realmente não parecia ele, isto é, já era uma outra pessoa, portanto, já estava morto e que a morte é só isso: as pessoas deixam de ser o que são e passam a ser outra coisa sem qualquer explicação suplementar.
    A Teresa, de certa forma, também havia morrido. Quando ela entrou pela minha porta e disse que estava morando com um mergulhador e que estava grávida do sujeito, também não era mais a mesma garota de biquíni listradinho, com molas nos quadris, aquela que sabia me beijar suavemente. Ela havia me procurado porque estava com medo da gravidez e queria ouvir as merdas sem sentido que eu falava, disso ela ainda gostava.
    Ficamos ali na tarde bebendo, falando do passado, ouvindo as baladas que nos aqueciam, chorando um pouco pela morte do Moisés, até ela ir embora para sempre.
    Depois que ela saiu fiquei um longo tempo parado ali no corredor, os olhos fixos no interruptor da luz. Então voltei para o apartamento, tranquei portas e janelas, aumentei o volume do som até ao máximo, tirei o short, fiquei de cueca e pensei: “Ainda não chegou a minha hora de morrer!”, em seguida comecei a dançar.

Jorge Mendes
 

 

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