O FOLE DO MEU AVÔ JACINTO
Meu tempo de sonho e mudança
Reviver dentro
A seiva do ciclo suspenso
Na hora da simplicidade
Das estevas da serra algarvia
Num tempo curto
De grande beleza e êxtase...
O meu avô Jacinto tocava
fole de celeiro em celeiro, em todo o lado do sul da península,
onde o chamavam, desde aldeias a povoados, especialmente nos montes e cortes
escondidos na serra Algarvia, ao lado do rio Guadiana fluindo, com histórias
de Espanha e mouras encantadas Rio atravessado de memórias de barragens,
Alqueva esquecida, no sentimento da Aldeia da Luz, afundada nas margens
da civilização, ao longo das lágrimas perdidas, com
símbolos atómicos, eventos do tempo de dar água ao
progresso incompleto da alma, em que tudo fica por lavar, dos corpos e
dos trapos sobre aqueles seixos de veludo, antigos de saber da passagem
dos peixes para algumas desovas. Nesta energia líquida brincavam
as lavadeiras secando nas moitas de morangos silvestres, em canção
dedicada ao mediterrâneo, que nunca conheceram, quando os seus beijos
tocam no infinito salgado de sonhos e contradições.
O meu avô Jacinto
despejava musica nas almas e nos corpos das moçoilas e mancebos
dançando e voltejando sobre o desejo, no corridinho malandro, coxa
em riste numa velocidade frenética em ilusões de serra algarvia,
nas quadras picantes de montanheiros de olho vivo e pé ligeiro.
O meu avô Jacinto,
de olho azul profundo, ao passar por ali, de vez em quando, transformava
estes lugares, quando ali passava, de vez em quando, levando notícias
de outras paragens e outras danças, num céu aberto, quebrando
a monotonia nocturna dos animais, mudos de espanto naquela confusão
de corpos bailando, rebolando depois na palha seca, noite diferente de
candeia perdida, perto de alfarrobas e de histórias distantes, da
raiz das estevas, atentas, nos primeiros cheiros de primavera.
Eram dias de festa, esquecendo
a rudeza do sol sobre rugas de terra gretada amamentando frutos secos,
transportados em cânticos de boca seca, do pó dos caminhos
tortuosos, quando já não havia água nas enfusas de
barro, para as carroças de mulas famélicas, paciência
de bestas resignadas na sorte, mastigando espinhos e cardos, com insultos
de arre macho que já é tarde e que o sol se vai tombando.
Vinham de todo o lado, onde
a notícia chegava, ao ajuntamento combinado, entre amigos, de bicicleta,
burro, a pé ou voando, se fosse possível, pela grande necessidade
de distrair sentimento inconsciente. Procuravam o par na festa, no frenesim
nervoso, e talvez, naquela noite, a sorte melhorasse e a mãe da
mocinha estivesse ocupada com alguma comadre, em conversa atenta de mexeriquice
ou meia mentira sobre outro monte, outra corte, nas “ vergonhêras
— parece — impossível”, de um outro vizinho ou vizinha que estão
nas bocas do mundo por motivos, sabe-se lá, de alguma bruxaria ou
mau olhado a precisar de mezinhas contra as tentações do
demónio.
As moçoilas guardavam
entre si uma sabedoria de malandrice, mais tarde notada, quando as candeias
ateavam os celeiros da imaginação e da cabeça, à
roda no baile mandado, com estrelas cadentes. Era o princípio do
vulcão da serra, nas raízes de um sonho de preenchimento.
No fim, os rapazes regressavam
com dúvidas, do encanto do feno e da luz das labaredas, ainda acesas
no coração triste da partida com os restos do fole do meu
avô Jacinto borbulhando na cabeça e do último beijo
tímido, na cara rosada num espanto de tanta lua cheia.
As mães, que só
comunicavam pelos cheiros das vibrações dos montes, sem telefones
ou outras coisas modernas, inventadas pelos homens das cidades, eram muito
mais eficazes porque iam mais fundo aos veios do coração
e conhecimento da terra.
O meu avô Jacinto,
em compasso de bota, sorria feliz, no seu pequeno palco, dedejando e premindo
ferozmente o seu fole levando rodopio, aos corpos livres, teclas a ferver
nos dedos, num olhar atento e perdido, para que tudo fosse perfeito, em
perfeitos bailares e outras virtudes, de mãos a cima, com o coração
perto do cerco maroto, no olhar de soslaio e interessado da vida, que deve
ser assim sem maus pensamentos, mas a continuidade para acalmar os desconfiados
do amor.
No intervalo, quando havia,
o som do fole, era ocupado por uma algaraviada medonha, com risos e confusão,
numa linguagem lógica, harmoniosamente minimalista (mistura de conversa
Algarvia), alegria para uns e talvez isto melhore para outros, logo que
o baile continuasse. No fim, os sons iam pelas pequenas serras cobertas
de lenços sobre a protecção das estrelas no rastejar
do corpo de tanta volta ter dado, vitórias e derrotas que o futuro
o dirá amanhã, ou foi tudo imaginação de olhares
de toques ou de baile.
Eram silêncios de
terra vazia a procurar as raízes para que as seivas brotassem e
a vida tivesse um sentido.
Todos procuram o aconchego
da continuidade, nem que seja para deixar marcas de presença na
terra e no seu movimento. Ninguém, nem que seja por segundos, consegue
escapar à grande vertigem do cerco rotativo e mágico dos
planetas, fluindo para o grande espectáculo dos corpos circulando
sobre o amor.
E lá estava outra
vez o fole do avô Jacinto, curando as feridas dessa necessidade secreta...
No dia seguinte, quando
a necessidade chamava, tudo era normal, no armazenamento da memória,
no trabalho das sesmarias, nas linhas dos comboios, na construção
de casa para uns, nos “amanhamentos” da terra para outros no ir para fora,
Lisboa ou estrangeiro . Outros tentavam a sorte no mar, quando este era
generoso e repartia um pedaço de cardume, bivalve, ou polvo de maré
baixa.
Iam todos com o peso do
fole e das candeias prometidas, naquela dança mais mole de coração,
na memória de sentirem, por momentos a sua verdade.
Era o tempo em que os medronheiros
se misturavam com o mel e o calor inundava, ainda mais as faces queimadas
pelo sol, destes algarvios que comiam o joio na falta do trigo, princípio
de guerra, lá longe, crise das securas da terra, em pães
que os transformava em crianças rindo e pulando como coisa estranha
do demónio.
Ao relevarem estas sensações
estranhas aos pastores, pescadores nos seus antepassados, estes, encolhiam
os ombros pela insignificância da história. Eram tão
familiares esses estados de espírito. Quando lhes faltava o tabaco
na onça, enrolavam na mortalha uma planta que chamavam losna, crescendo
no alto da serra, próximo da semente das estevas, secreta por ter
vindo com as marés, quando os oceanos ocupavam tudo até à
mais alta montanha. A losna é uma planta oriunda, de África,
do fundo dos mares, transportada nas barbatanas dos cavalos marinhos dragões
quando a água ocupava as vertentes e a arca de Noé tinha
ainda uns restos para acalmar a profunda solidão dos homens e animais.
Planta forte de grande encanto, tornada tímida e secreta para os
pastores.
Quando as águas desceram,
ficaram muitas histórias por contar até aos nossos dias.
Ao utilizarem aquela planta, ficava tudo bem, no seu devido lugar, junto
às ovelhas e às cabras. Tudo tinha um rumo certo e a terra
girava de uma forma mais perfeita e serena, no alívio dos javalis
e raposas, admirados de tanta paz enlouquecida por perto.
Dizem que tem alguma ligação com o joio, na verdade inconsciente
de cada um, por causa dos veios do interior da terra que comunicam com
as raízes.
Existem plantas que curam
ou destroem os homens, na proporção dos seus desejos, ou
das suas necessidades. Vêm do fundo dos oceanos e quando descobertas,
nas suas características terrestres, vão ajudando ou destruindo
no contacto com os corpos vivos, sôfregos de liberdade ou experiência.
Dependem do toque, ou ideia de quem as colhe ou de como as transportam
para o interior do físico ou da alma. A planta solitária,
da mais alta montanha, tem o mesmo sentimento de algas marinhas dentro
dos corais, na confusão e sobrevivência, entre os peixes que
vivem na parte mais funda do oceano. Prevalece um ligeiro toque de coração,
onde o Homem coloca a sua vida ao alcance do tempo de curar feridas.
A saúde do corpo
tem mensagens estranhas, dos fluídos das glândulas onde não
cabem contornos de um tempo absoluto na descoberta inventada na passividade
das rochas do longo deserto do desconhecimento.
As águias de Castro
Marim vão sobrevoando, sabiamente num controlo de ventos a favor
o que dela resta. Os pastores sabiam, muito bem o significado daquela notícia
do joio. Era uma questão de aproximar uma flor de esteva ao tímpano
da serra... A guerra, lá longe, havia de acabar.
Certo, é que as conchas
e os fósseis, encontrados na serra Algarvia, têm resíduos
destes cavalos marinhos encantados, ainda desconhecidos do principio dos
tempos, quando tudo acordava de um longo sono de espera, para que a terra
ficasse mais calma, depois das águas irem inundar outros planetas
perdidos nos pecados.
Não deve haver muita diferença entre o mar e serra, pastores
ou pescadores.
O fole do meu avô
Jacinto, lá quereria dizer alguma coisa naquele rodopio de linguagem
no seu sopro sonoro na paisagem nocturna.
O sitio continua lá,
impávido e sereno, mesmo ocupado de vez em quando por outros corpos
de animais e de outras pessoas, aí passando e bailando como se tudo
estivesse na mesma com algumas alterações exteriores.
Era o tempo do voo das cegonhas indo e vindo, numa azáfama de
ninhos, na reserva de Castro Marim, planando de vez em quando para matar
saudades daquele encontro do rio com o mar.
As cegonhas, quando partem,
fazem um bailado de pares, nos píncaros do céu, planam durante
horas, experimentando as correntes de ar. Não querem ir, pelo apego
à reserva ou às andorinhas do mar. Então, ficam muito
tempo, por ali, valsando em espiral, falando, com os deuses das tempestades,
interrogando-os do porquê, desta constante alteração
de estações, obrigados a ir para longe e outras temperaturas,
quando ali têm climas e amizades amenas. Os deuses respondem soprando
num som protector, de ter que ser, por questões energéticas
de equilíbrio, se encontra sempre algo de melhor, na partida e na
chegada e que haverá sempre um bom regresso no contacto com o Mediterrâneo.
Agora que estão,
são arquitectos felizes, a contar as peripécias do ir e vir
das viagens do outro lado do mundo.
Castro Marim tem uma missão ingrata de ser o anfitrião
do rio com o mar, do doce com o salgado, de Espanha com Portugal, do ir
e do vir, numa reserva secreta para os viajantes de todo o mundo que não
querem ser incomodados. Encontro a dois, com África tão perto
da Europa e do silêncio das dunas, afastadas pelas placas interiores
deste planeta aparentemente dividido por fora. Na sua fortaleza virada
para o exterior estão fronteiras onde o tempo guarda as marcas mágicas
das aves que todos os anos vêm nidificar com a saudade de uma renovação
segura.
Ficam as conversas gravadas
nas margens do Guadiana, só entendidas por alguns golfinhos sem
medo das história dos corsários indo, de vez em quando, rio
acima, comunicando com os sinos das capelas das aldeias dos dois países
e recebendo notícias do norte.
Quando repousava o fole,
o meu avô Jacinto, sentava-se sob a velha alfarrobeira, secular de
milhões de rotação de sóis e de adormecimentos
profundos, fazendo cestos de cana e capachos de vime, colhido no terreno
do Vale Grande, onde a água tem uma presença de cascata interior,
visível nos tufos verdes, espetados como espadas à aridez
das amendoeiras de Agosto, implacável de calor e camaleões
do Norte de África.
A avó Mariana levava-lhe
o jantar, quando o sol estava a pique, a sombra do corpo quase desaparecia
de vista, e as cigarras, fazendo um barulho ensurdecedor, como se tivessem
bocas nas asas, em árvores com folhas de sombra, olhavam de soslaio
a azáfama das formigas, desconhecendo a parábola contada
pelos homens que não entendem a necessidade da quebra de monotonia
numa estação mais calorenta, sem pensar no futuro.
Haviam formigas tristes,
impedidas de parar para ouvir uma só asa ou observação
do capacho...
Os meus avós tinham,
por vezes, a companhia do Joaquim das Sortes, vizinho do outro monte subindo
a serra, com peixe quase fresco na canastra, coberta com folhas de figueira
e algum tempo, vindo do mar, lá ao longe onde os barcos descansavam,
para trocar com algum pedaço de gaspacho, carapaus alimados, papas
de milho, ou rancho, feito na velha panela negra de três pés
(a trempa) com que calmamente acarinhava aquela mistura, num sabor calmo
de lenha de azinho.
O Joaquim era bruto da solidão,
sozinho de analfabeto, sem família que tivesse paciência para
o seu cheiro de montanha sem água, sábio inconsciente na
procura, falando com os animais perdidos sem significado para continuar
por ali, com a canastra às costas, a pé, à torreira
do sol, apedrejando a sua condição quase humana e parando
junto a outros seres que lhe dessem alguma atenção no estômago
num gesto mais que desprezo ou “mangação”. Mesmo sem família
ia ao mar três vezes por semana e quando acalmava a fome falava de
coisas sábias que aprendia no pó dos carreiros e na paragem
para acalmar a sede.
O meu avô pegava na
navalha, comprada em Espanha, partia um pedaço de pão, amassado
pela avó Mariana, cortando, entre dedos um pequeno naco de presunto
salgado na arca. Olhava para este amigo de infância e apetecia-lhe
tocar uma moda do seu fole para o despertar de tanta falta de espanto pela
vida. O pão da avó Mariana tinha tudo completo. Desde o trigo,
que os animais pisavam na eira, em grandes voltas, sem eira nem beira,
cereal descendo da palha para alimentar os corpos e as almas, ao transporte
de burro até a moagem em vila nova de cacela, viagem de duas horas,
calmamente, no início do nascente, quando as sacas sobre as cangalhas
do burro e o som das ferraduras faziam um barulho seco de impressionar
as corujas em vias de dormir.
Quando vinha a farinha,
cantarolava, debruçada sobre a alguidar de barro, as rezas de amassar
o pão, misturando o fermento com que a verdade é aumentada,
num diálogo de relação com o forno esperando, num
calor bom, envolvendo a humidade do trigo numa magia e cheiro na mensagem
do sol. Antes, fazia o sinal da cruz espetando o dedo sobre a massa, naquelas
esculturas redondas para que quem comesse aquele pão, estivesse
abençoado pela sorte, aconchegado no corpo e protegido no espírito,
sem as bruxas a incomodar.
E era num diálogo
de serra e mar que os três se juntavam à volta das últimas
novidades, vindas ainda frescas da maresia de Cacela Velha, um dos últimos
redutos finais da ria formosa onde antigamente, se observavam os corsários
nos ataques às aldeias de pescadores, serenos de ria e mar na espera
de um bom amanhecer nas redes e outras generosidade de mar.
Depois do jantar e de olhar um pouco para dentro, era o amanhar da
terra seca, com alguma rega, o balde a mergulhar no poço, o dar
água ao burro, o apanhar das amêndoas, para que o sol, com
o seu calor as despisse de mansinho sobre as casas, o milho escasso deitado
na pequena eira, o olhar para o céu e para o mar ao longe, consulta
de tempo e esperança conforme a cor da linha do horizonte.
Ao fundo, na encosta do
Vale Pequeno, existia um pedaço de vinha que todos os anos bons
ofertava, aos amantes dos sonhos, entre uns duzentos a trezentos litros,
dum néctar divino esplendoroso, convidando ao grande encontro com
verdades quase absolutas, em noites de altos voos de sabedoria, onde o
céu de lua nova, multiplicava estrelas na alma, na coragem e na
continuidade da vida. E o tempo parava na noite longa da imaginação.
Numa nessas noites o meu Avô Jacinto chamou-me mais perto e revelou-me
a história do início daquela vinha generosa de espantar filósofos.
Houve, naquele Vale, um
encontro casual de namorados, profundamente apaixonados em silêncio,
descansando os olhos no mar ao longe, comunicando de relance, numa observação
tímida de lágrimas internas, projectadas para a terra onde
o sol os abraçava, comovido Tinham feito um pacto de terra e mar...
Nessa inclinação
especial de Vale mágico, um pequeno raio fecundou, com ajuda da
terra e orvalho da Primavera, uma estaca de vime celestial esquecida por
um vagabundo, Monge eremita que ali ia contemplar, todos os anos, o pôr
de sol de Abril da Corte António Martins, quando tinha saudades
do sol do Oriente.
As conversas do futuro eram as tais inclinações para
o passado. A procura entre o amor e a sabedoria dos silenciosos solitários
.
O ir dormir do sol é
o mesmo, todos os anos, na Corte, a magia tem a mesma história.
O mundo ainda gira da mesma maneira, no sonho dele e das suas personagens
de luz intensa e variada. Nesse beijo de astro rei sobre as uvas, numa
inclinação diferente, havia uma mensagem sentida de união
quase perfeita com o sonho e a imaginação. Aquelas posições
de sol que vêm de um longo encontro com as estrelas da última
noite.
Neste alongar das asas,
vinham também, memórias de grainhas ácidas, da razão
de Lisboa e de outros mundos, na distância do tempo e espaço
que esqueciam quem por ali andava a labutar ressequido de promessas e sonhos
de ir e vir, sem fim à vista, na dependência da distância
e do Algarve fora da península. Nestas conversas, coragem momentânea
de seres, governando o mundo, num sentimento único de constelações,
com a cumplicidade afectuosa, dos anjos de cauda luminosa que nos observavam
na distância, deliciados de tanta sensação infantil,
igual a Cervantes ou aos loucos do Telhal, seres de alcance especial.
E a velha alfarrobeira gostava
daquelas conversas pela noite dentro.
Quando a tarde caía,
os montes transformavam-se em crateras lunares, escuras de contornos suaves,
viradas para Espanha, onde os contrabandistas antigamente atravessavam
o Guadiana pelos carreiros, só conhecidos pelas raposas e aves de
Castro Marim e alguns favores de guardas "compreensivos".
E assim passavam os dias,
entregues ao destino da grande visão de mar ao fundo, V. R. Sto.
António e Ayamonte, com o farol virado de noite para todo o lado,
penetrando em casa de cada um, sem pedir autorização, comunicando
com os barcos ou outros ataques na memória dos pescadores.
O meu avô Jacinto,
homem de visão larga, conhecedor dos cheiros e melodias da serra,
da parte humana e do peso do fole da vida, chegava solitário por
atalhos, com histórias da terra e do céu. Um dia contou-me,
com voz pausada, num tom sereno de grande revelação, no sitio
do ritual onde se matava o suvanito, festa habitual de convívio
familiar, em que todos os anos se encontravam, disfarçando o tempo
diário de monotonia, uma história de amor, imaginada somente
no coração das crianças espantadas, nos velhos melancólicos
dos desertos, nos amantes das estrelas luarentas com notícias de
outras galáxias.
Existiu em tempos, uma jovem morena que vivia com o seu camelo, branco
como a neve, no norte de África de grandes espaços, camelando
entre dunas de sonho e oásis de livre escolha, terras de estar bem,
mesmo quando os ventos eram mais violentos para alterar os grãos
de areia, maleáveis de encanto e volúpia de solidões.
Havia qualquer coisa de triste, no olhar desta jovem que o seu amigo dromedário
reparava por vezes quando se aproximavam do mar, mais ao norte, onde a
água reflectia uma presença de necessidade de alongamento
para lá do mediterrâneo.
Em verdade, numa pequena
ilha do sul da península ibérica, junto à cidade de
Faro, no princípio da ria formosa, de conchas enormes onde não
havia ainda o naufrágio das mãos e a erosão dos turistas,
um jovem descansava os olhos, naquelas dunas imaginadas ao sul comunicando
com a respiração e um sentimento que lhe chegava sem saber
porquê o prenúncio de uma mensagem ou libertação.
Tinha vindo do norte com os navegadores, fartos do frio e dias pequenos,
passear para aí, onde os territórios eram diferentes das
outras penínsulas, de sol mais intenso e uma outra magia de luz.
A jovem morena olhava através
da água o sonho do norte. O jovem sonhava mais a sul nas dunas imaginadas
as calmas elevações de algo onde o corpo descansasse e a
fluidez da água tivesse a miragem de um sonho em espiral como os
contos do norte da Europa, nas noites longas das lareiras acesas, contadas
pelos sábios que percorreram os países dos glaciares eternos
iguais às parábolas dos desertos.
Era uma história
de amor distante daquela ligação com África, separação
única de água absoluta, por causa dos barcos circularem até
ao sitio dos Gregos, na inveja dos mercadores onde a sabedoria vinha alterar
a estrutura das raízes do pensamento e ligar o coração
com a razão. Circulavam as mercadorias para a evolução
e circulava o amor onde as fronteiras não tinham portos certos.
A água fluía nas mesmas margens, umas vezes mais agitada
outras mais calma, dependia da disposição dos corsários
que conheciam as raízes do conhecimento. Dependia também,
do tipo de mercadorias...
A jovem morena olhava o
espaço que podia descansar e viajar, sem estar em movimento, no
seu camelo de excepcional de cor branca e camelava, camelava como qualquer
amazona, do outro lado do mundo o fazia, sobre o dorso de cavalos selvagens
na extensa pradaria, perdida de tanta procura achada.
Este camelo mágico
excepcional, tinha o condão de viajar no espaço, como um
albatroz do outro lado do oceano, no tempo e na imaginação.
Planava durante séculos sobre os continentes do impossível
como as pirâmides sobre as areias suportando gerações
de planos inconformados pela erosão da memória.
Nesta tristeza acumulada,
o camelo observava a jovem, num silêncio sábio de animal do
deserto, sabendo do porquê daquele sofrimento e transmitindo-lhe
uma mensagem de libertação, foi dando pistas de rota nessa
viagem que é vencer a barreira dos afectos. No aconchego habituado
da bossa, nasceu a vontade de partida, numa necessidade incompreensível
de ir para algo que a esperava do outro lado norte.
Depois de tanta lamentação
silenciosa através do suspiro, o camelo lembrou-se do seu poder
de viajante aéreo, doado por um mago do deserto personagem das histórias
das mil uma noites, no tempo em que as águas ocupam tudo e os animais
tinham poderes anfíbios de mar, terra e voos em céus azuis
ou tempestades, sem limites de espaço e de tempo.
No regresso ao oásis,
concentrou-se na respiração mais algumas palavras e sensações
mágicas, levantou voo com a emoção espantada da jovem,
sobrevoando em suaves oscilações sobre as águas azuis,
secretas de tantos corais escondidos com os seus milhões de habitantes
observando a dança dos cardumes.
Num voo rápido e
estava perto do jovem debruçado dobre a prata dos peixes sonâmbulos,
na ria formosa, onde agora os aviões se levantam, próximo
dos pinheiros, mansos de esperarem as partidas e as chegadas.
Como qualquer história,
foi inevitável o fluxo e influxo do mar, da terra, do universo,
da união e outras coisas de grande espectáculo, das ondas
entre o oceano, a ria e a vida. Os dois jovens entrelaçaram-se num
longo beijo de uma profundidade de maré cheia, energia de abraço,
numa intensidade de maremoto, força onde só se vivência
na prática do amor, do desejo com o seu reconhecimento faz transparecer
a rotação dos planetas.
Com tanta energia, projectada
em espiral, o pelo branco de algodão do camelo voador, espalhou-se
por tudo o que é árvore sôfrega de adornar a paisagem,
com algo mais que a secura de entre águas da terra frágil
que comunica com as raízes, ideia de princesa que chorava a nostalgia
da neve e do outro príncipe encantado pelo outro norte onde a temperatura
se multiplica em flocos sempre diferentes como as impressões digitais
do nascimento e da individualidade. As árvores estavam lá,
como o coração dos amantes, esperando uma ligação
de paisagens e costumes de sensações, algo novas com os afectos.
As andorinhas têm essa consciência nas
suas viagens e por isso nos contam da dificuldade dos ventos alterarem,
muitas vezes, o percurso do homem estar ao contrário dos impulsos
das suas virtudes para que tudo esteja estável no seu preciso lugar.
As andorinhas lá sabem desse regresso aos ninhos quando são
amadas pelo olhar dos homens, na procura sempre renovada de outro ciclo
de nascimento.
Esta história, contada
pelo meu avô Jacinto, tem uma ponta de verdade, pelo seu conhecimento
das amendoeiras, pelo mel envolvido das abelhas que ali iam tocar, entre
Fevereiro e Junho, nas flores, esperando os frutos, em intensa harmonia
e contraste num bailado sábio de ir e vir para que os hexágonos,
quase perfeitos, para preparar os efeitos do verão que se aproximava
com o despertar da cigarras. E as colmeias eram universos perfeitos de
comunicação e gosto no céu da boca, numa serra de
melodias, inventadas pelas asas dos insectos sobre a estevas protegidas
pelo verniz de tacto difícil para que o belo continue sem a interferência
da seca do tempo e da transformação.
O meu avô Jacinto,
que vive actualmente em Cacela Velha, no seu olhar de um azul intenso,
dizia-me sobre esta história, que tudo é possível
na vida, depois daquela néctar divino e de saber que quando se unem
os corações com a separação da água,
fica tudo com mais intensidade, fica sempre um silêncio bom, a saber
a celeiro, a suor do beijo e tudo é possível quando se abrem
as comportas do amor.
Num dia de Agosto, os habitantes
dos montes, cortes e povoados, vêm do alto da serra com os seus animais,
visitar o mar, numa peregrinação, para o tocar e oferecer
presentes e comparar, se o sal do rosto é o mesmo do elemento dos
peixes. É como sentir o gosto do sol com o perfume de lágrimas
salgadas, numa parte húmida onde o passado nunca se esqueceu do
tempo do ataque de embarcações que vinham estranhamente agressivas
ocupar a costa sem pedir desculpa de chegar. Estas visitas, todos os anos,
era uma forma tímida de agradecer ao mar nunca se esquecer dos de
lá de cima onde ainda existem as estevas e os sons das marés.
Tudo se repete
Tudo é diferente.
No coração
da serra ocultam, sabiamente a sobrevivência das faces ocultas. São
sábios por o não saberem. Têm milhões de deuses,
de sonhos breves. Mesmo que o não saibam, não têm culpa
dessa consciência de comunicar com as raízes de uma maneira
diferente.
O meu avô Jacinto
passeava com o seu cajado, num compasso de fim de tarde, sobre o pavimento
de tijolo burro, amassado ao sol pelos ancestrais, perto dos poemas de
adolescente encantado com os cheiros do ar diferente, casa de chiste e
lama a afastar o calor com a cal branca a ignorar os reflexos do sol outros
insectos.
O meu avô Jacinto
vive actualmente sobre uma fraga, ouve o som do mar, é feliz com
a repetição lamurienta das ostras abrindo e fechando em comunicação
com os viveiros das amêijoas. Quando tocava fole toda a noite e chegava
a casa com a presença do nascer dum sol igual a um enorme ovo estrelado,
pegava num pedaço de pão, que trazia dos celeiros, da melhor
padeira local, velha com faces de lua cheia em início de noite e
saciava nele, a fome com a cumplicidade dos primeiros sons dos pássaros
e inveja das corujas e do farol que tinha um relógio de luz suspensa
sobre o tempo e as surpresas do horizonte.
Ao chegar a casa, a avó
Mariana, ralhava–lhe marafada de tanto esperar, no desalinho de aflição,
da espera com os sons da noite, que aumentam tudo, dizendo das suas verdades
na solidão de uma casa abandonada,e o homem ausente, vagueando por
aquelas serras onde só o tacto e a experiência ultrapassam
os perigos físicos e mentais. De tanto ralho, justo ou injusto,
o meu avô foi-se fechando, muito por dentro, com a sua música
de céu aberto, com a presença constante dos celeiros no coração
e o cheiro da palha fecunda dos animais espantados mas serenos e do toque
do sol nascente com o murmurar do cérebro livre e borbulhando numa
intensidade de liberdade e recusa de morte próxima do mar.
O meu avô Jacinto,
de tanto se fechar deixou de ouvir de fora para dentro, não sei
se por causa dos ralhos da avó Mariana se por outra razão
de origem normal, nada a ver com a sensibilidade dos sons ou outras vibrações,
que fazem encolher os ombros à incompreensão dos verdadeiros
silêncios.
Quando não se ouve
de fora para dentro, a comunicação fica ao contrário.
É um olhar de gesto entendido pela intenção, pelo
esforço da imagem. Quando tocava naqueles palcos improvisados, o
meu avô Jacinto, sarava feridas com o fole de corridinho vadio e
as pessoas compreendiam esse movimento de se juntar tudo, céu e
terra numa única noite, para esquecer o tempo de outros dias passados
e futuros.
A história, que o
meu avô Jacinto me contou, dos jovens do norte e do sul, é
um encontro de seu desejo com o tempo e a continuidade do sonho. Viver
é como o som que existe dentro da capacidade de amar, que ninguém
consegue explicar mas somente sentir. As amendoeiras têm o perfume
do som, como a palavra vai tecendo a sabedoria, através do zumbido
das abelhas, as amêndoas vão tocando no leite das cabras solitárias
da serra, e as velhas de rugas sábias vão falando das raízes
das árvores seculares que transformam as lareiras em rostos dos
que tocaram nos seus troncos.
Agora, vive junto ao mar,
sente o pulsar dos pescadores, sabe das mensagens dos grandes cardumes
e volta na volta, vai pelo mar fora com o seu fole, tocando para todos
aqueles que dançavam ao seu som naqueles tempos de candeias acesas
e medronheiros mágicos com os corações abertos em
tanta roda plena. A avó Mariana, lá está no seu monte
de nunca sair, independente de tudo, de todos e das coisas modernas, com
a idade de um século, seca de comunicar com ele, olha para o fundo
da serra, e vai sabendo do tempo da mesma forma que o mar ao longe dá
na cor e movimento. A vida tem ainda a presença do fole, tocando
ao fundo em cacela velha com rezas de solidão que lhe vão
acalmando esse estado familiar e ilusão numa presença constante
da consciência dos ralhos e outras injustiças.
O meu avô Jacinto
pensa muitas vezes, quando viaja sobre o mar, se a alfarrobeira terá
ainda a mesma recordação do gaspacho e dos cestos de cana
entrelaçados com a conversa do Joaquim, perdido noutros mares ou
noutra lota de peixes vadios, apanhados por pescadores vagabundos.
A serra continua lá,
pelo menos com as suas toalhas de água combatendo a impotência
da Barragem, uns partem outros chegam para descansar os olhos no rio e
no mar, depois regressam ao mesmo povoado da ilusão, transportando
na alma algum pedaço de esteva do sítio da reserva com um
resto de pegada de animal que sobrevoam os seus silêncios e imaginação
para suportar outro ano monotonia e ilusão.
O meu avô Jacinto
passeando-se sobre aquelas fragas, lá vai evitando que o mar, no
Inverno, não venha engolir a ria Formosa, num ápice de energia
alongada, penetre muito no âmago dos viveiros de ostras que têm
ainda a esperança de serem livres para ofertas àqueles amores
conhecidos na Ilha de Faro.
Em Agosto vem uma senhora
tocar violino dentro da velha Igreja secular, com a presença do
velho tocador de fole, imaginar com o voo das andorinhas a diferença
entre o som dos turistas e a cor do sol que acumula desejos do norte.
A ria Formosa e Castro Marim,
têm a visita de animais voadores que vêm de muito longe, todos
os anos, quando sabem que podem descansar das mazelas das rotas e do amor
e que os deixam em paz e liberdade. Quando chegam com as histórias
das suas viagens sabem o que encontram no Algarve na vida de cada um. Histórias
exactamente iguais aos anéis de saturno. Anéis que circundam
o coração de qualquer planeta, como aquele que habitamos.
Como esta ria se apresenta, beijando a parte mais a sul da Europa. A ria
Formosa tem a fronteira com um absoluto dividido, por isso sabe do violino,
do meu avô e do santuário secreto acumulado ao longo de anos
e grande experiência de espera para que algo aconteça, vindo
lá do norte onde os frios são mais intensos.
O meu avô Jacinto
tem o fole sempre atento ao beijo sobre as areias, sabe dos prantos dos
montanheiros, ama tão intensamente qualquer lua, mesmo que seja
invisível e quando as raízes lhe tocam, para que continue,
ele lá vai, sobre as ondas a pedir uma maior delicadeza para este
mundo que vivemos, todos, por vezes, de candeias às avezas, pensando
no futuro com remorsos do passado. O sonho de cada um é transmitido
todos os dias, no compasso das marés, no nascimento e na morte,
no grande aceno da vida e no declínio da hipótese de haver
algo mais para além que um por de sol onde o prazer não se
esgote.
Sobre a ria Formosa, existe
um forte que, antigamente observava ao longe vultos que vinham atacar pescadores
despreocupados com tanto peixe de ondas generosas e medronheiros dos amigos
com todo o tempo do mundo, que necessitavam de entender de perto aquela
proximidade líquida da serra com o sal. Agora existe um adormecimento
da rapidez do coração não comunicar tão facilmente
com as faces.
Para isso é necessário,
o meu avô Jacinto, vir de vez em quando com o seu fole reanimar o
interior das veias, sarar algumas feridas da memória e fazer as
fogueiras um encontro feliz com a realidade de cada um.
A palavra e o som tem qualquer
coisa em comum com o voo em espiral da andorinha sobre o violino que naquela
tarde de Agosto transmitia ao meu avô, comovido pela proximidade
do tempo a mensagem exacta, num terno olhar de acreditar que tudo se poderá
compor ainda no coração do homem numa simplicidade de renascer
constante em harmonia e libertação.
Acreditem que o meu avô
está lá, com o seu fole e que tem um olhar azul e interpolar
e que sara as feridas da monotonia com segredos de sal, sol e lua misturados
com cânticos de corais sem fronteiras de planetas e ajuda a dançar
todas as constelações ao toque do grande movimento onde não
cabe o conceito e a diferença que destrua o sonho.
Entretanto o planeta continua
a girar da mesma maneira...?
E nós?
Eduardo Nascimento
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