British
Realmente estava me dando um grande prazer estrear
aquele terno que comprara há dois meses na British, a loja mais
chique do centro da cidade. Comprado no crediário, que iria me sacrificar
por mais longos cinco meses. Mas, tudo bem, a ocasião não
poderia ser melhor: uma entrevista de emprego para trabalhar na Cia. de
Seguros Bela Vista. Com o salário eu poderia tranqüilamente
pagar o tal crediário e poderia me dar ao luxo de, quem sabe, abrir
uma conta permanente na British; iria ser um dos mais elegantes da cidade.
Antes de dormir, dei uma repassada no terno, pois,
desde que o comprei, ele ainda estava dentro do guarda-roupas, intacto.
Coloquei o paletó sobre a cadeira de encosto alto para ir dando
um caimento. A calça eu deixei no próprio cabide onde havia
um brasão inglês. Coisa fina mesmo. Aproveitei, também,
para dar uma engraxada nos sapatos, que estavam um pouco foscos.
Acordei cedo no outro dia, às seis horas.
O meu compromisso era às nove e trinta, mas tinha que fazer os preparativos
para me sair bonito na entrevista. Tomei um bom banho, com sabonete glicerinado
e fiz a barba com capricho, o que era coisa rara. Usei até colônia
pós barba, para dar um toque especial. Fiz um lanche rápido,
mas reforçado, pois não podia me apresentar com cara de esfomeado.
Tinha de honrar o nível do terno. Após o café escovei
os dentes e fiz um gargarejo com Água de Jasmim, para manter o bom
hálito, mesmo que, para prevenir, eu estivesse levando algumas balas
Mentinha dentro do bolso do paletó. Comecei, então, os preparativos
do vestir. Peguei minha cueca de seda chinesa e iniciei por ela e pela
calça cuidadosamente retirada do cabide do brasão. Peguei
uma meia e, ao calçá-la, vi que havia um pequeno desfiado
na lateral interna do pé direito.
Nada que atrapalhe. pensei comigo A
calça de puro linho inglês cuidará de esconder.
Coloquei os sapatos, o cinto de couro marrom e a
camisa de seda branca, com um detalhe sutil em bege no bolso. Peguei a
gravata vinho com um pequeno brasão dourado e coloquei-a, dando
um nó duplo, de qualidade superior ao nó tradicional, que
dava uma maior finesse. Vesti o terno e estava pronto. Fiquei em pé,
olhando no espelho, admirando o conjunto. Realmente estava bacana. Ensaiei
uma entrevista, preparando os meus atos, trejeitos e até algumas
respostas de perguntas, que, com certeza seriam feitas. Parfait! Peguei
minha carteira e as balas de menta e pus no bolso do paletó.
Fui andando pela rua até a estação
do trem. Algumas pessoas me olhavam dos pés à cabeça.
Era difícil aqui no subúrbio ver alguém vestido de
forma tão impecável, realmente era para se olhar. O Sinval,
do armazém, gritou ao me ver passar do outro lado da rua:
Bacana, hein, senhor Leônidas!
É a ocasião, seo Sinval, é
a ocasião...
Peguei o trem às oito e vinte, para um trajeto
de meia hora até a estação central, onde desembarcaria
rumo à sede da seguradora, que ficava a uns doze minutos dali.
Dentro do trem não havia lugar sentado, o
que eu achei até bom para evitar amarrotar a minha roupa. Fiquei
em pé no meio do vagão e não pude deixar de reparar
em um grupo de moças olhando para o meu lado. Eram quatro, duas
mais bonitinhas, uma estilo grego clássico e uma mais magrinha,
que usava um lenço estampado na cabeça e tinha uns dentes
proeminentes. Como elas ficaram olhando muito,
cumprimentei-as com um gesto de cabeça. Elas riram envergonhadas
e viraram o rosto. Na primeira parada do trem, vagou um assento. Pensei
até em sentar, mas resolvi cedê-lo a uma senhora que entrava.
Muito bem vestida e educada a senhora agradeceu a minha atitude e sentou-se
bem a minha frente. As mocinhas continuavam a me olhar e cochichar umas
com as outras.
Devem estar me confundindo. falei baixinho para
a senhora que olhava para mim e para as moças de modo reprovador.
É a sua roupa. respondeu ela com a mesma
cara de reprovação.
Não entendi como uma velha tão elegante
e, aparentemente educada, poderia olhar daquele jeito para um homem trajado
desta forma. Era alguém do nível dela, ora essa.
Preferi reparar nas meninas que continuavam assanhadas
para meu lado. Repeti o meu cumprimento, que foi retribuído por
uma das bonitinhas, antes de mais risos e rostos virados. Já previa
meu futuro: eu na companhia de seguros, com um bom salário, boas
roupas e garotas de verdade, que eu pudesse levar para jantar no Toscano.
Reparei que outras pessoas me olhavam também, inclusive dois rapazes
sentados um pouco à minha esquerda. Engraçado, pois nessa
altura do trajeto, o trem passava por lugares de nível social melhor,
onde as pessoas já estariam mais acostumadas a esse tipo de trajar.
Mas minha roupa é especial, é da
British. pensei orgulhoso.
O trem continuou a seguir seu caminho e as pessoas
continuaram a me olhar, sendo que a senhora mantinha o seu de reprovação.
As moças estavam lá com seus risinhos em minha direção.
Agora a mais feia é quem ria mais. Comecei a me sentir um pouco
desconfortável dentro daquele vagão, pois, apesar da esperada
melhora do nível das pessoas, o reparo na minha pessoa continuou
o mesmo.
Coisa de quem se veste assim a primeira vez...
fui logo pensando Vou ter de me acostumar com o assédio...
Os rapazes que estavam ao meu lado desceram na última
estação antes da minha. Desceram olhando e, antes da porta
do vagão fechar, vi um deles apontando em minha direção
e rindo, mostrou a parte do quadril para o outro que caiu na gargalhada.
Olhei para a senhora sentada no banco e ela riu sem jeito antes de voltar
à sua eterna cara de reprovação. Será que havia
alguma coisa errada na minha calça? Tentei dar uma discreta olhada
para trás, mas não vi nada. As moças já não
me olhavam mais, apenas a magrinha que me olhava de forma esquisita agora.
Comecei a ficar preocupado com a situação. Será um
avario no meu traseiro da minha calça, ou será apenas que
os rapazes eram uns afeminados?
Chegando na minha parada desci rapidamente, nem
lembrando em despedir das moças, que ficaram dentro do vagão
abanando as mãos e rindo muito. Corri até o banheiro da estação
no afã de descobrir se havia algo errado nas minhas calças.
Entrei e já fui logo procurando um espelho, que achei ao lado da
pia. Virei para um lado, para o outro e nada de errado. Graças a
Deus! Era apenas uma desconfiança, minha roupa continuava impecável
do mesmo modo de quando saí de casa. Saí do banheiro um pouco
mais aliviado, mas logo continuaram as olhadas em minha direção.
Alguns chegavam a rir. O que será que estaria errado comigo? Afinal
de contas era uma roupa da British, exclusiva e de qualidade e bom gosto
comprovados. Continuei andando rumo à seguradora com um pequeno
mal estar me perseguindo.
Será o volume feito em meu bolso pelas
balas de menta. pensei e já fui agindo, retirando-as do bolso.
Coloquei uma na boca e joguei o resto, umas cinco, na lixeira de um bar.
Não adiantou, sentia cada vez mais o olhar
das pessoas sobre mim.
Tá certo que eu estou elegante, gente,
mas podem me deixar de lado um pouco, vocês se acostumam... tentei
pensar para minimizar minha situação.
Umas duas quadras antes de chegar na companhia,
resolvi fazer uma pequena volta e passar na porta da British apenas para
me sentir mais confortável e dentro do meu ambiente. Estava adiantado
e poderia me fazer essa gentileza. Continuei a caminhar constrangido, mas
esperançoso de levantar a moral ao passar pela loja.
Tudo errado. Um pouco antes da entrada da loja,
avistei uma faixa que ia de um lado a outro da rua com os dizeres:
Liquidação British. Compre tudo com desconto.
Aquilo foi uma ducha de água fria nas minhas
otimistas previsões. Puxa! A British, a loja que vende para a nata
da sociedade, os melhores produtos, a melhor qualidade da cidade, está
fazendo liquidação?
O nível não é mais aquele.
falei baixinho para ninguém escutar. Será que o meu terno
é da qualidade de liquidação?
O desespero aumentou e resolvi ir rápido
em direção à seguradora e sair logo da rua, onde sentia
todo o povo rindo de mim no meu terno de liquidação.
Entrei esbaforido no saguão da empresa e
perguntei a um senhor que fazia as vezes de porteiro:
Por favor, meu senhor, onde é a sala de
entrevistas para seleção de corretores?
No andar de cima, primeira porta à esquerda.
O senhor pode falar com a dona Margarida.
Subi as escadas rapidamente, mas pude sentir o olhar
de desprezo do porteiro me vendo apressado subir os degraus.
Lá estavam a dona Margarida e dois senhores
de ternos elegantes, um cinza e o outro azul marinho. Me senti pequeno
no meu linho inglês marrom. Dona Margarida me recebeu com o mesmo
olhar da senhora do trem.
Pois não!
Meu nome é Leônidas Martins.
Eu vim fazer a entrevista para corretor.
O senhor pode aguardar. Será o próximo
depois desses dois cavalheiros. Pode sentar-se ali. falou a mulher me
apontando uma poltrona verde que ficava à frente dos outros dois.
Me sentei na tal poltrona verde, o que me fazia
sentir pior, pois achava que não combinava com meu terno.
O primeiro homem foi chamado logo e pude reparar
a etiqueta da British em seu terno cinza. No primeiro instante aquilo foi
animador, pois seu terno era realmente muito bonito e fora comprado na
mesma loja do que o meu, porém, depois, reparei que no meu terno
não havia a tal etiqueta. Seria uma bobagem qualquer, esqueceram
de colocar, cheguei a pensar. Mas não adiantava, continuava a me
sufocar com os olhares em cima de mim. Sentia a mulher e o concorrente
lançando rabos de olho em minha direção.
É a meia! Só pode ser a meia...
lembrei da maldita desfiada que havia colocado de manhã, com esperanças
de ser escondida pela calça inglesa.
Onde é o toalete ? perguntei meio sem
graça à Dona Margarida.
Corri até o banheiro e tirei a meia, as duas
para ser mais exato. Aquilo aliviaria meu sofrimento. Deixei-as ali mesmo
emboladas dentro do cesto de lixo vermelho, junto a restos de papel usado.
Voltei à sala e já havia um outro
homem esperando a sua vez para a entrevista. Era mais um a caçoar
da minha roupa. Fiquei um pouco mais aliviado quando o outro foi chamado
para ser entrevistado. Tentei me ajeitar na poltrona verde, mas não
conseguia, já me sentia arrependido de ter tirado as meias, não
podia nem mais cruzar as pernas... Agora era tarde, elas já estavam
sem condição de serem usadas novamente, descartadas. Pensei
em tirar a gravata, quem sabe não era o brasão inglês
dourado que estaria estragando o conjunto. Senti o olhar de dona Margarida
olhando por sobre a mesa em direção aos meus pés.
Foi o fim!
Com licença um minuto! pedi meio sem
graça e levantei rapidamente em direção à porta.
Esperei um pouco no alto da escada, quando vi o sujeito que entrara para
a entrevista sair pela porta e tomar o rumo do pequeno elevador. Desci
as escadas correndo enquanto ouvia a voz de dona Margarida dentro da sala
chamando meu nome.
Não, eu não tenho condições.
Trabalhar na Companhia Seguradora Bela Vista nesses trajes. Não
irão me aceitar.
Saí rapidamente pela porta antes que o porteiro
ou o outro concorrente me vissem. Fui andando sem direção,
mas com a clara intenção de tirar aquela roupa e jogar no
primeiro lixo ou dar à primeira pessoa que visse. Acalmei um pouco,
pensei melhor e resolvi não fazer isso, afinal de contas, sendo
de liquidação ou não, era um terno da British, me
serviria para um aniversário ou um velório qualquer. Do outro
lado da rua avistei uma das bonitinhas do trem, que, mais uma vez, me olhou
rindo. Mais animado, pensei até em uma nova tentativa na seguradora,
porém não hoje, em uma outra ocasião, com um terno
British mais elegante, com etiqueta e garantia de origem inglesa e qualidade
superior, que eu pudesse vestir para levar aquela menina ao Toscano. Por
enquanto, resolvi apenas comprar um saquinho de pipocas para comer, que
é o que mais combina com meu trajar atual.
Leonardo Rezende Rodrigues,
já comeu kibover em Itapomgi-Açu
«
Voltar