Lá estava
eu, atravessando novamente a rua com a minha mulher, só porque o
Vanderlei estava daquele lado da rua. Já tinha cansado de explicar
para ela que o rapaz não fazia mal a ninguém, era só
uma pessoa meio diferente. Mas ela, sempre cismada com o Vanderlei, evitava
ao máximo o contato com ele. “Não gosto dele”, ela falava,
“ele é muito pegajoso e além do mais é doido, não
se sabe o que ele vai fazer”. E lá, ao longe, passava o Vanderlei,
com a cabeça baixa, conversando sozinho. Às vezes ele levantava
a cabeça, fazia um aceno meio torto para o meu lado e continuava
seu caminho. Nunca vinha conversar comigo quando percebia a presença
da Cátia.
O Vanderlei era um cara
já de meia idade, morador solitário do número 713
da nossa rua. Um senhor, seu Roberto, aparecia muito por lá e se
dizia seu primo. Ele uma vez me contou a história do Vanderlei.
Falou que ele era de uma tradicional família judia, que já
teve muitas posses. Disse, também, que ele não era doido,
era um homem de paz, com inteligência em excesso. Fez faculdade de
matemática, chegou a dar aula no colégio Dom Pedro, mas começou
a ficar assim um dia e nunca mais foi o mesmo. “Não vê que
ele fica recitando o teorema de Pitágoras ? O forte dele era a geometria,
mas acho que foi ela que deixou ele meio desligadão”. Hoje em dia,
o seu Roberto não aparece mais, sumiu de repente. Quem aparece agora,
de vez em quando, é uma senhora bem vestida, que fica algum tempo
lá na casa e depois vai embora, deixando os mantimentos que garantem
a sobrevivência do Vanderlei.
“É minha irmã”,
me disse um dia. “Você sabia que o marido dela foi piloto de avião
na Segunda Guerra Mundial, depois trabalhou na NASA, na época em
que foram à lua? Ele trabalhou no projeto dos motores de propulsão
dos foguetes da Apolo. Engenheiro dos bons. Trabalhou depois no finado
SNI, hoje faz um bico no Ministério da Justiça”.
Era sempre assim, o Vanderlei
sempre tinha uma história ou uma teoria maluca para me contar. Eu
me divertia com aquilo, nunca sabia se era verdade ou mentira, mas me interessava
pelas coisas que ele falava. Às vezes ficava na janela da minha
casa, observando seus movimentos e ficava com dó. Lá estava
ele com seus quadrados, catetos e hipotenusas. Ficava imaginando se algum
dia ele fora casado, se tivera uma mulher ou filhos, como teria sido sua
vida antes dele ter ficado assim. Lembrava dos meus tempos de escola, no
primário, onde havia um menino que tinha o apelido de Juqueri. Era
um menino muito inteligente também, mas que tinha atitudes estranhas
no jeito de falar, de agir e até mesmo de se vestir. Os outros meninos
ficavam lhe enchendo o saco, mas ele não parecia ligar muito para
aquilo tudo. Eu imaginava que ele fosse o Vanderlei de alguns anos atrás,
que o nosso vizinho também tenha sido um Juqueri na escola dele.
Mas essas coisas do passado ele evitava falar, eu não sabia quase
nada, apesar de toda a curiosidade.
“Você sabia que no
Taiti os filhos de um casal sempre têm o mesmo nome? É como
se fosse uma convenção. O primeiro filho se chama João,
o segundo José e o terceiro Manoel. Não são esses
nomes, é claro, são aqueles nomes de índio oriental,
mas em todas as famílias de lá é assim, só
muda o sobrenome.”. Dessas coisas que ele dizia é que eu gostava.
Ficava pensando de onde ele tirava isso, se lia em algum lugar, se já
teria ido lá e visto isso ou se, simplesmente, inventava. Só
sei que depois dele falar suas histórias, ficávamos viajando
e divagando em cima daquilo que ele contara.
Eu gostava de ir na casa
dele, pois achava interessante o mobiliário antigo e os cartazes
e fotos de ídolos, programas e filmes do passado. Passava um bom
tempo lá, olhando aquelas figuras. Ele gostava de companhia na sua
casa, para soltar os seus conhecimentos ou mostrar os quadros na parede.
Convidava todos os vizinhos para ir até lá, mas ninguém
ia. O único que ele não convidava e não gostava era
o velho João, um senhor de nome complicado, que morava no número
745 e cujo passado também era uma incógnita. Acho que por
causa disso é que os dois não se davam muito.
Domingo passado ele me convidou
para ir na sua casa, mas desta vez ele disse que prepararia uma comida
para mostrar seus dotes culinários. A Cátia não queria
que eu fosse, mas eu fui. Ele fez uma coisa que não tinha uma grande
aparência, mas tinha lá o seu sabor. Para mim aquilo não
passava de um belo contrafilé, ou qualquer outra carne bovina de
primeira, mas o Vanderlei dava a sua peculiar explicação:
“É um lombinho caipira. Custei a achar essa carne para comprar,
por isso te convidei para comer. Você sabe que isso é carne
de um tipo de porco, criado como se fosse um zebu? Toda a alimentação,
medicamentos e demais cuidados, desde que o bicho é um leitãozinho
recém nascido, é feito de modo a torná-lo um pseudo
boi. O princípio é o mesmo daquelas mães que criam
o filho homem como menina e o coitado acaba virando veado”, disse ele,
divertindo-se com a explicação. Eu também havia achado
interessante, mas daí a um porco virar uma vaca já era pedir
muito. Mas não importava, o interessante é que sempre ficava
aquela dúvida sobre o que ele falava e isso nos fazia pensar mais,
exercitar nosso combalido cérebro.
Naquele dia o Vanderlei
não se importou com a presença da Cátia e mesmo vendo
que atravessáramos a rua por sua causa, ele veio até nós
para contar mais uma descoberta sua. “Ô Rafael, você acredita
que os cientistas americanos estão desenvolvendo uma barata robô.
Parece o Robocop, mas é uma barata. Eles pegam a coitada, retiram
cirurgicamente as suas antenas e colocam sensores no lugar, que mandam
informações para um micro chip que ela carrega nas costas,
no lugar das asas. Isso tudo é para explorar lugares onde o homem
não pode ir. Onde o homem não vai, mandam a barata. Aposto
que quando estiver pronta, vão querer colocá-la dentro das
pirâmides do Egito”. A Cátia, que já não gostava
dele, estava mais horrorizada que o normal, pois detestava baratas.
Se soubesse que seria a última vez que conversaria com ele, eu teria
gasto mais um tempinho discutindo as vantagens, utilizações
e a tecnologia da barata robocop. Mas a Cátia me puxava tanto, que
fui obrigado a ir sair dali. “Depois você explica isso direito, a
Cátia tá atrasada”, foi a última coisa que disse a
ele, naquela manhã de quarta feira.
Voltei para casa mais tarde
naquele dia e pude perceber de longe o burburinho na porta da casa do Vanderlei.
Carros da polícia e uma ambulância, rodeados por uma multidão
de vizinhos e curiosos em geral. Não, o Vanderlei não havia
morrido, como cheguei a pensar, mas o coitado havia matado. “Com requintes
de crueldade”, estamparia o periódico sensacionalista. A vítima
havia sido o velho João, ou algo como Helmüt Einbach, que foi
o que conseguira ler no BO feito pela polícia. Estavam tirando o
Vanderlei de dentro da casa, quando ele parou e, como se fosse um político
discursando ou um advogado fazendo sua defesa, começou a explicar
seu ato, enquanto os policiais tentavam colocá-lo no camburão.
“Ele era um nazista fugido da Alemanha. Todas as suas características
batem com as de um homem que os judeus procuram até hoje. Quem sabe
da vida desse homem? Ele nunca conversou com ninguém! É lógico
que ele tinha alguma culpa, algum passado negro. Venho pesquisando isso
há anos. E uma pessoa dessa ruindade não pode ficar por aí,
dando sopa, pode querer fazer algum mal de novo”, tentou explicar.
O carro saiu levando o Vanderlei
e eu fiquei ali pensando naquela história que ele nos contava. Era
mais uma dúvida que ele colocava nas nossas cabeças. Com
certeza investigariam essa teoria toda e talvez pudéssemos solucionar
um de seus enigmas. Mas, de qualquer forma, seu ato o deixaria na cadeia
por um bom tempo. Talvez ele conseguisse cumprir a pena em um hospital
psiquiátrico, onde talvez tivesse inúmeras outras fontes
para suas histórias.
Coitado do Vanderlei. A
Cátia continuava falando que ele era doido e “além do mais,
agora é assassino. Te falei, Rafael, te falei”. Resolvi que tentaria
ajudá-lo, apesar da opinião contrária dela. Procuraria
o cunhado dele do SNI. Ele deveria ter alguma influência, poderia
socorrê-lo, arrumar um bom advogado, fazer uns contatos importantes.
Mas, será que ele
existe?