ENQUANTO DORMIA, O MUNDO CORRIA

         Caprichosamente prepara a  mercadoria. Banha-se com perfume, abundantemente. Os cabelos procuram, ante o espelho, o melhor desenho, a fim de atrair o olhar do cliente. Surgem os beiços, à medida que a cor encarnada do batom impregna seus contornos. Ínfimos pedaços de pano cobrem-lhe o artigo, enganando-lhe a vergonha e a moral.
         Fecha a porta do quarto, que alugou em um subúrbio qualquer, auxiliada por uma chave, solitariamente presa ao chaveiro-brinde da farmácia da esquina, onde comprou o remédio para uma moléstia adquirida em uma das várias noites, como aquela  que enfrentaria logo mais. Na escada, os passos de sua sombra ecoam, como se estivesse só em um grande salão de festas. O bafo enregelado desvirginou, enfim, suas narinas.
         As ruas a embalam com intimidade materna, como também o fazem com as outras filhas, que montam nas esquinas suas tendas e expõem seus produtos aos faróis dos carros, caçadores ávidos por consumir. Ela embarca em um deles.
         A viagem é silenciosa. O motorista cobre a cabeça com um boné, veste calça e uma jaqueta grossa e folgada. Displicentemente, pára o veículo defronte a um beco imundo, escuro e malcheiroso. Ele explica que precisa urinar e sai do carro. Entre uma inspiração e uma expiração, o homem a extirpa do carro estupidamente. Tirando a coberta da cabeça e mirando a comerciante pelo cano de uma pistola, ele revela que, na verdade, era uma mulher. Antes que o projetil  atingisse aquela vida, se realmente ela constituísse uma, a outra gritou confiante: “O sangue de Cristo tem poder! Satanás, és um perdedor.” A bala, pelo foco da vítima, percorreu, lentamente, o percurso até causar sua morte.
         Caída ficou, ainda com seus adornos e acessórios, entre as lixeiras e o limo da lama. O sol espiou por detrás do horizonte e, enquanto ela dormia para não mais despertar, o mundo escrevia a história dos vivos, sem esperar por ninguém. 

Ramon Arruda
 

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