OLHOS MISTERIOSOS
 
Muito tempo decorreu antes de perceber a situação em que se encontrava. Lembrava-se apenas que ontem ou anteontem, não sabia bem ao certo, fora visitá-la à noite, e isso é tudo o que lhe vinha à mente. Seus pensamentos estavam confusos, o que fez crescer dentro de si profunda ansiedade. Há quanto tempo estava nessa dormência que lhe entorpecia os sentidos?

Escutava sons à sua volta. Sabia que algo ou alguém o observava. Seria apenas auto-sugestão? Tudo não passaria de fantasia criada por sua mente em desespero? Parecia que não mais era o mesmo, sentia que algo mudara nele, não sabia o quê. Morrera? Não, era impossível, podia perfeitamente sentir sua respiração, mexer as mãos, tatear o corpo; mas não conseguia se levantar.

Ela estava fantástica naquela noite. Sempre fora linda, é certo; porém, naquela noite sua beleza parecia de outro mundo, irradiava suaves, misteriosas vibrações, que o estremeciam de alto a baixo e lhe causavam, confessava, estranho prazer. Usava um vestido longo, que lhe caía até os pés; ao pescoço trazia imenso medalhão dourado onde se percebiam formas místicas, orientais. Um diadema prateado lhe adornava a fronte; farta cabeleira negra repartida ao meio e disposta em tranças realçavam seus belos traços fisionômicos. Tão logo se acomodou no sofá, ela se aproximou trazendo dois copos de vodca; ofereceu-lhe um, ficou com o outro. Foi a primeira a beber; seus lábios carnudos, rubros como massas de sangue, sorviam lentamente a bebida, enquanto fitava-o com os olhos negros, misteriosos. Teve a impressão que aqueles olhos tentavam lhe dizer alguma coisa, pareciam ter vida própria. Esse era o mistério que mais o intrigava naquela mulher.

Durante alguns minutos, passados como séculos, ela ficou a olhá-lo fixamente, a lhe examinar cada gesto, cada movimento, como se ele fosse um extraterrestre. Essa observação o inquietava, teve vontade de sair correndo, ganhar a rua e sumir na escuridão da noite, mas conteve-se; afinal, ela era uma mulher como outra qualquer, é evidente que estranha, mas não deixava de ser uma mulher, uma bela mulher. Assim, dominou o medo e fitou-a, também demoradamente, olhos nos olhos. Ela desviou o olhar, colocou o copo no braço do sofá e lhe pediu um cigarro; deu-lhe e ficou a examinar cada gesto seu. Primeiramente, colocou o cigarro à boca, aqueles lábios carnudos, voluptuosos; depois acendeu-o e, por fim, tragou-o com incontido prazer. Soltou algumas baforadas que impregnaram a sala, provocando nele ligeiro acesso de tosse; detestava fumaça de cigarro.

Ela, de súbito, começou a se aproximar. Chegou bem próxima, envolveu-o em seus braços. Colou-se a ele, seu abraço o apertava; e, quanto mais o abraçava, mais o cobria de beijos quentes e adocicados. Pode sentir o frescor delicioso de seu hálito perfumado, que dilatava suas narinas, sensação gostosa, sensual, dava-lhe prazer. Os beijos cada vez mais se intensificavam e seu rosto começou a arder. Pediu que parasse, mas ela continuou enlouquecedoramente. Viu-se obrigado a afastá-la, tomando o cuidado para não ofendê-la agindo assim. Ela, a princípio, resistiu, agarrou-se mais a ele e, louca, cobriu-o mais, sempre mais de beijos. À custo pode se desvencilhar dos seus braços e sentou-se no sofá. Ela lhe imitou o gesto, sentou-se também. Ficaram nessa posição, estáticos, sem proferirem qualquer palavra, os gestos paralisados.

Por fim, ele quebrou o silêncio lúgubre e disse que ia embora. Ela nada respondeu, apenas olhou-o indefinivelmente, desviando em seguida o olhar para um vaso de porcelana encima da mesa à sua frente. Nada disse, continuou a olhar para o vaso e parecia nisso concentrar toda sua atenção. Tentou tocá-la, fez movimento nesse sentido; quando ia acariciar seu ombro, ela virou-se, olhou-o no fundo dos olhos e apontou a porta da rua. Atordoado, ele nada disse. Ela se limitava a encará-lo com seu olhar inquietante. Percebeu que era melhor se levantar e ir embora. O ambiente se transformara subitamente, pareciam dois estranhos. Levantou-se, caminhou até a porta, sem olhar para trás, girou lentamente a maçaneta, abriu a porta, fez menção de sair. Virou-se para ela e viu-a de cabeça abaixada. Parecia não se preocupar com a sua saída.

Ouvia sua voz bem próxima a ele, sentia sua presença ao seu lado. Sua respiração estava ofegante,  apressada. Alguém o observava, percrustava-lhe o corpo. Tentou se mover, não conseguiu; aquela paralisia lhe tolhia qualquer movimento. Abriu a boca, tentou falar, apenas pronunciou sons inintelegíveis. Tentou abrir os olhos; de início, sentiu violenta dor nas pálpebras e quase desfaleceu. À medida que forçava a vista contra a luz ofuscante, percebia que a dor diminuía, até que conseguiu abrir os olhos totalmente. Nada distinguiu à sua volta, tudo estava embaciado. Um temor se apoderou dele, sensações incômodas lhe dominaram o espírito. Pôde apenas escutar a voz, que soava gutural, nada compreendeu. A voz era distante, não, a voz vinha ali do seu lado, ele tinha certeza, ela estava ali, ao seu lado, observando-o, examinando-o como se ele fosse um alienígena aprisionado dentro de uma vitrine inquebrável.

Roberto Fortes

 

 
 

 

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