BATEM NA PORTA
Batem na porta, continuam batendo e quando batem chamam meu nome mas o
sono que me aprisiona no colchão é de inverno, cobertores
me agasalham, meu corpo sua e transpira suor de noite indecifrável.
O que se vê no céu é o plúmbeo de borrasca,
nas montanhas o vento endoidecendo árvores geme e açoita
a cordilheira toda, chega ao leito do rio pra encapelar as margens com
sorvedouros, margens que não tem os bueiros da ponte.
A ponte ainda se agüenta nos alicerces submersos, até ao cair
da noite fustigados cimentos armados com formas de pilastras, de arcos
e de traves onde lorpas ficam cobiçando a prata de peixes magros,
peixes quando pescados assados em trempes, vendidos na feira onde eu regateio
só pra aborrecer.
A ponte, quem quiser vê-la, ainda pode ser divisada de qualquer outeiro,
basta esperar o rasgão vermelho de um relâmpago mas eu duvido
que alguém se atreva a se encapotar, tamancos nos pés ou
galochas nos sapatos, chapéu na cabeça e pesadão,
encharcado e tiritando suba o íngreme de qualquer cocoruto, aclive
lamacento, escorregadio e com corredeiras tanta é a água
lodosa que se despenca, pra ver a ponte submersa.
A cidade inteira dormita e nem eu que tenho meu nome na boca de um
intruso, de um aflito que martela, esmurra a porta da rua me pedindo que
eu escancare a porta, - nem eu ainda estou de pé pra acender a luz
do município que não funciona, pois neste instante me encontro
sobre um colchão de luxo, colchão de cama de meu quarto de
casal.A usina de energia elétrica invadida por águas de enchente
e inesperados destroços desmoronou com suas telhas quebradas, encardido
telhado onde ratos corriam, gatos os caçavam e corujas faziam cara
feia pra lua redonda sobre poleiros de ripas do forro e claridades envidraçadas
de circulares clarabóias.
Eu fiquei sabendo do desmoronamento da usina devido a um telefonema e o
vigia, que vigiava essa maquinária todo o dia consertada, mesmo
assim falhando de noite quando menos se esperava, o jantar esfriando, acenda
a vela, esgravate o pavio do candieiro, dizia a gente pra empregada tropeçando
numa saliência de taco de cozinha mal pregado ou esbarrando numa
quina de porta, ou metendo na parede sua cabeça de pixaim enquanto
a minha casa toda num breu metia medo em quem demoravaem acender uma vela
- o vigia Clodoaldo que morreu me devendo muitos cruzeiros, agora, neste
instante de tempestade deve ir aos trambolhos rio abaixo, afundando, voltando
à tona pra afundar mais depressa nos abismos dos redemoinhos enquanto
meus ouvidos escutam pancadas na porta principal de minha casa, moderníssima
num conforto invejável.
Desde comecei a viver nesta cidade ladeada de morros, o milharal de um
lado, a plantação de algodão embranquecendo o caminho
do matadouro, os pés de mamona de seu Zoroastro colhidos de vez,
aquelas carrapateiras dando emprego a mulheres descalças, pés
esparramados onde bichos se aninhavam em bolsas de pus — desde comecei
a escutar as cantigas das mulheres trabalhando eu me debruço na
janela e depois não deixo de ir vê-las, cabeças amarradas,
mochila nos quartos, catando as sementes que vão virar óleo.
Elas só sabem trabalhar com rimas às bocas, disso eu me convenci
quando a espiava numa amplidão de visão.
No pé do morro das carrapateiras burros atrelados à velhas
carroças chicoteando as caudas também abanavam as orelhas
mas as moscas voltavam pro sangue escuro das pisaduras dos seus couros
como se em Sant'Ana do Ipanema não houvesse monturo.
O coronel, cigarro de palha no beiço, me pedia fósforo, eu
me fazia de desentendido, de mouco e de mal-educado só pra ouvir
a voz do pão-duro, cauteloso e matreiro, rastejar mais uma vez.
Equilibradas no inclinado abrupto do morro resinoso as cabrochas se esguelhavam,
só sabiam trabalhar cantando, botando longe suas vozes de catadeiras
dir-se-iam incansáveis gargantas.
Eu chutava pedregulhos, chegava na coroa do morro esfregando a testa, enchia
de ar puro os desenhos de meus pulmões, pra ficar mais vermelho
na pele ensolarada me afastava das árvores.Gostar de movimentos
sempre foi preferência de meu tino e ao ouvir cantigas de quem trabalhava
eu tirava do meu corpo o pijama suado e metendo no bolso traseiro da calça
charutos grandes, atravessava a praça da igreja pra subir o serrote
frutificado.
Minha mulher fez algumas cenas de ciúme, mas acabou por não
se incomodar mais eu saísse de casa pra escutar mulatas cantando,
pernas cor de canela subindo grossas pra coxas que se agachavam, ficavam
escondidas pelos pés de velame, coxas após perderem urinas
mais puras, desintoxicadas e satisfeitas tendo as bexigas vazias.
Eu namorei algumas delas, no fim de minhas férias algumas dessas
sertanejas receberam presentes de minhas mãos, mãos que eu
lavava à beira do rio muitas vezes silencioso como costumam ser
alguns lagos, caldeirões do calor do sol ou espelhos de brancos
luar.
Minha mulher não podia desconfiar de mim.De noite eu ficava em casa
estralejando dados numerados de um gamão de cedro ou bebendo uísque
e dando cartas pra ganhar dinheiro no pôquer de baralho novo.E ao
escutar o relógio bater a hora dos sanduíches levantava os
olhos do colorido do baralho pra ver minha mulher arrastando a cadeira,
se afastando da mesa onde círculos de osso, numas fichas pretas,
vermelhas, verdes e brancas valiam muito.E despertavam interesse sobre
a carpeta, verde pano semelhante a flanela de sinuca, onde bolas são
pra mim ovos corredores.
Empanturrados agarravam os guardanapos, limpavam a manteiga aderente aos
beiços os esfregando com força e quando os guardanapos lembravam
bolas desfeitas, panos amassados, novamente minha mulher embarafustava
corredor adentro. Escutando o jorro da torneira dir-se-ia também
escutasse barulho de louça quebrada mas minha mulher retornou sorridente
muitas vezes, dizendo da beleza do céu estrelado, tinha visto um
planeta lá do céu da cozinha, luminosidade gratuita, lindíssima,
pra mostrar pra mira perfeitos dentes brancos de brancura do leite, dentes
que também na certa se mostraram pra empregada, sertaneja redonda
nos olhos primaveris.
As janelas abertas deixavam o vento fustigar as cortinas, varrer o assoalho
que ninguém sujava.
Cada um com o seu cinzeiro tinha o seu monte de cinzas, cinza de charuto,
cinza de cigarro, cinza compacta de cigarro de palha à esquerda
do coronel Zoroastro, que não sofria de bronquite mas tossia e alisava
os bigodes da tosse com mão de pele amarela, tostada, enegrecida
mão só nas unhas pelos reflexos das fichas quando encandeadas
por uma certa lâmpada elétrica.
O coletor, o delegado se irritavam com a tosse fingida de Zoroastro, coronel
que tossindo alertava o seu "four" de ases ou o seu "royal-street flesh",
talvez seqüências num crescendo de hierarquia às cartas
emudecidas nuns desenhos de símbolos.
Fichas num montão de apostas no centro da mesa acendiam nos olhos
da gente centelhas de cobiças.
Ninguém corria, mesmo se escutando a tosse do coronel à paisana,
todos nós apostávamos, cada um de nós ia ver o jogo
que ele tinha, botasse logo as cartas na mesa, dispusesse-as sobre o verdume
à maneira de um leque.
Borboletas tontas batendo desorientadamente asas aquecidas, fugiam do globo
da lâmpada elétrica e nuns borboleteados de doidas varridas
se estatelavam nas paredes de taboas enceradas, como se metros de cedro
fossem meias, sacos que as aprisionassem.
O gato as esmagava, o cachorro também não as comia após
espezinhá-las e pramos de pêlos e entranhas dando nojo nessa
imundície, nessas manchas de intestinos arrebentados e abocanhados
chamavam a atenção de minha mulher que jogava consigo mesma
uma paciência aparentemente interminável.
As pedidas de carta num certo jogo não foram decisivas mas coronel
Zoroastro junta os dedos e agarrando fichas pretas num monte que valia
dinheiro, sem demorar três segundos tossiu. Sendo viúvo jogava
com as pretas, cada uma delas valia cem cruzeiros nas apostas de raríssimos
blefes nessa noite de estraçalhadas e imprestáveis borboletas
devido a uma certa lâmpada elétrica e a um gato que não
as comia.
Esperamos voltasse a higiene pro assoalho varrido, lavado com bordalesa,
enxuto com estopa, antes tão limpa, se eu quisesse poderia enxugar
as mãos nesse entrançado grosso, passado a ferro como se
fosse de linho pra limpar tábuas compridas de assoalho gigantesco.
Bebendo uísque eu esperava minha mulher voltasse a jogar o seu jogo
preferido para chamar a empregada e dar-lhe gorjeta.O coletor federal também
bebia uísque, todavia, quem mais bebia uísque de nós
três era o delegado em mangas de camisa, escondia o revólver
no bolso de dentro do paletó distante.Não queria minha mulher
se melindrasse vendo homem armado — disse-me rouquenho à voz, diapasão
soturno, certa vez. Iniciativa dele mesmo, do delegado que queria ser gentil,
amável, pois procurava uma cadeira de canto de parede, lá
numa sombra da sala, pra enforcar o paletó grandão de magro
desbarrigado, insubornável homem valente criatura qual um enfezado
touro nos chifres de punhais.
Coronel Zoroastro sempre destoando da gente virava uísque puro como
se o amarelo quentena bebida líquida, somente quente, sem nenhum
gelo pudesse satisfazê-lo.
Fazia menção de cuspir mas saboreava a saliva ardente e nós
escutávamos o ruído de alguns dentes chupados pela língua
que lambia a mortalha do cigarro de palha, fumo cortado e picado por canivete
amolado, reluzente à lâmina comprida, perigosa cortando fácil
como navalha qualquer corda de fumo.
Quem queria cuspir queria chegar a janela, não havia perto dos sapatos
de nenhum de nós nem escarradeira de louça tampouco maceta
de ferro outrossim éramos educados pra transformar em calçada
de ponta de rua o plano assoalho, ecos de nossos pés, onde o gato
caçava tontas borboletas.
Nenhum de nós se julgava matuto. Quando vestíamos gibão
era por brincadeira, vaqueiros de pilhéria procurando o tresmalhado
num exercício violento.
A caatinga imaginada por mim nas cordilheiras cultivadas só tinha
pras correrias do animal as margens do rio e o animal ferrado, geralmente
touro de cupim, estrelado muito brabo à testa de chifres arqueados
e pontiagudos era um desembesto como se estivesse fugindo, fugindo de um
curral sem vacas nem bezerros, todo vazio.
Quando chegava a vez do coronel Zoroastro laçar, deter a correria
do touro desembestado que não deveria passar por baixo da ponte,
eu gritava, os outros também berravam mas não acabávamos
com a pasmaceira com estas mãos cheias de cordas. Depois o coronel
nos dizia que a afobação era doença, não adiantava
viver apressado, correndo à toa.
E a cada um de nós pregava aposta perdida.
— "Deixei o bicho solto porque não gosto de ver ninguém preso"
-mal educado no chão jogava o gibão, com grosseirice sacudia
as calças de couro no esterco pra em seguida enfiar o chapéu
de couro numa estaca de cerca, chapéu de couro que ficava defendendo
o curral num espantalho grotesco embora nenhum urubu voasse negramente
pra engolir carniça.
— "E por que aceitou a aposta?" – perguntava eu com sorriso na boca de
deboche; e não tardava com as cédulas desdobradas em afugentar
moscas vorazes por pele sadia pois zumbindo ágeis perto de meu rosto
eram repelentes pontos pretos, com asas e pertuitos de ferrões como
se abelhas fossem.
Um vaqueiro de verdade voltava com um touro amarrado, touro sujo nas mãos,
pernas molhadas, do seu lombo cansado escorria água do rio barrento,
água de banho de fojo pro nadar do fujão, todo preto como
a cor de certos esquifes mas veloz, sempre ligeiro, danado pra correr;
touro somente estrelado na testa de reprodutor.
Depois no matadouro, perto da ponte onde pescadores sonham peixes nos anzóis
de interrogação, pescadores bêbados, outros sifilíticos,
alguns impaludados, pescadores escutando o rio numas músicas de
estrondos de água imensas que não desalojavam nenhuma pedra
secular um centímetro sequer de suas molhadas raízes à
maneira de polvos abissais, falsos pescadores, amadores pescadores também
vendedores de "poules" de jogo de bicho além de carregadores de
malas, qualquer bagagem de passageiro da estrada de ferro ou embrulho de
viajante apeado à rodoviária — depois perto da ponte vis-à-vis
da porta livre de Zefa gorda onde belas sertanejas todas jovens túrgidas
vendem e continuam vendendo amor em camas de ferro, rangideiras camas nos
lastros de arame, e precisamente a quinhentos metros da beira do rio e
começo da ponte o matadouro, como se nós antropófagos
fôssemos, me dava fome até eu comer iscas, nacos e grandes
pedaços de fígado cru, vermelhos pedaços como certas
orelhas ruborizadas pelo sol, pedaço gelado no saco do meu estômago
sadio devido a doses de uísques de copo bem lavado, enxaguadíssimo
copo, copo quase transparente, vidro bom, quase cristal todavia copo de
fábrica sem nenhuma concordata em nenhum tempo.
Zoroastro e os meus outros amigos se comiam fígado como quem em
vez de uísque bebia cachaça, pra mim bebida fedorenta, ruim
mesmo pro meu organismo, bebia pra esquentar meu tórax, somente
misturada com suco de limão, batida quase enverdecida se não
fosse a água nem o gelo além do mel adicionado, tudo isso
mexido com prata de colher pequena, toda comprida no inflexível
cabo, vezes pela mão de minha mulher que a girando rapidamente.
Perto dos animais esquartejados nos bois, vacas, bezerros, novilhos, porcos,
cabritos e ovelhas sem lã nem pele dependuradas nos forquilhões
perto de tudo isso ensangüentado e gostoso nas panelas de frigideiras
de fogões acesos, nossos cavalos árabes na raça vermelha
escarvavam terra preta.
No dia seguinte ao lançamento do touro estrelado e quase todo negro
escutando o pedido do coronel Zoroastro eu me fingia de surdo, negava-lhe
o palito de fósforo pra não ficar conversando o mesmo assunto,
não atendia. Galgava o morro, aspirando forte, sentindo o peito
cheio de ar puro, me sentia mais moço, o desejo de andar com mulher
chegava com requinte que eu escolhia a mulher mais bonita que trabalhava
cantando, colhia mamona com a cabeça amarrada, suava no corpo também,
suava as mãos que enchia o saco, saco cada vez mais pesado, o saco
com sementes oleoginosas, fortuna num peso de tonelagem de grãos,
logo mais industrializados na fábrica silenciosa nos motores nacionais.
Coronel Zoroastro queria por força saber porque eu adquirira tanta
terra, comprara terras ainda devolutas após tantos meses de escritura
passada. O coronel sabia que um segredo se escondia na minha boca, também
numa gaveta de minha escrivaninha, uma escritura ficaria guardada até
quando eu quisesse esconder uma surpresa. E por isso insistia que eu não
subisse o morro, não galgasse o morro dele, ficasse conversando
com ele, não andasse pelo seu morro, cuscuzão esgarçado
nas folhas verdes dos pés de mamona, milhares de carrapateiras debaixo
de um sol que rachava, pipocava as cascas dos frutos das árvores
do óleo de rícino, nada enjoativos nas mãos calejadas,
ásperas, mãos humildes de mulheres catando sementes, mulheres
nesses instantes também cantando, com umas bocas que não
desafinavam cantando versos rimados de quadras agrestes.
Certa vez Zoroastro, coronel dos matutos, acovardado mas embirrante disse
propondo vantagem pra mim: — Eu lhe pago o que você quiser, mas me
diga o que vai fazer com as terras?.
— Fique sossegado, não vou plantar mamona — e voltei para junto
de minha mulher.
Era hora do almoço e, segundo telegrama recebido na véspera,
o agrônomo quer iria supervisionar o plantio do canavial imenso deveria
chegar logo mais. No fim do ano, dentro de três meses a usina estando
montada, despertaria a única planície do município
silvando no apito estridente das oito horas de trabalho; às sete
de cada manhã os operários escutariam a sirene, mesmo nos
domingos de missa a sirene funcionaria e pouco se me dava o padre me caluniasse
afirmando fosse eu um anticristo, um herege, minha usina uma botija dos
infernos, tentasse me arruinar, com palavras de púlpito ou de altares
me detratasse.
Nesta cidade de duas torres, cemitério novo com brancura de luar,
rio poderoso levando, carregando num leito faiscante cascalho de muito
ouro, pros garimpos de dois quilômetros adiante, nesta cidade de
morros cultivados como se nas covas residisse a fertilidade, nelas se encontrasse
o húmus do solo que frutificasse árvores com frutos de laranjais,
abacateiros, jaqueiras e bananeiras, com mel nas polpas das bananas doces,
nesta cidade que tem um doido Sansão que vive cobrando imposto,
Sansão se passando por funcionário da prefeitura que termina
se contentando com qualquer níquel — nesta cidade de estrada de
ferro e de ponte para automóvel, depois do Sansão que não
é tão doido assim porque gosta de dinheiro, com dinheiro
no bolso diz que a gente não deve nada mais a prefeitura, somente
o coronel Zoroastro seria capaz de dizer o que devo escutar, logo mais
nesta apocalíptica madrugada.
No meio do quarto minha mulher fica estampada num pegnoir florido, robe
berrante de cor sangüínea que assustaria qualquer vaca doida,
fera de curral. Já tirou da gaveta o revólver, não
quer que eu vá desarmado abrir a porta, vê quem está
esmurrando as tábuas, chamando pelo meu nome aos berros, gritando
debaixo da chuva, voz rouca e assustadora me pedindo proteção.
— Não é o Sansão não.De tarde ele já
esteve cobrando para a prefeitura — e a minha mulher me estende o cabo
do revólver niquelado. E colhe os cabelos das tranças desfeitas
na hora de dormir, desnastrados fios, pretos como cordas de betume que
não fossem pegajosas.
Vejo minha mulher sumir os dentes dos trepa-moleques nos cabelos amarfanhados
e afugentar o sono de seu rosto bebendo café de cafeteira térmica
antes de juntar os cabelos numa súbita cauda de meio metro que lhe
roça as nádegas, bem feitas, sumarentas e ótimas como
certas frutas, certas frutas com polpas de pouco caroço.
A luz elétrica do meu dínamo lá nos fundos do quintal
clareia o quarto de cama remexida, amassados então os lençóis
sobre travesseiros suados.As janelas trancadas, a impermeabilidade dos
vidros lavados por fora pela chuva de córregos aquece o quarto barulhento
com o barulho de minhas negaças através de repetidas frases
peremptórias.
Eu não quero ir armado, com revólver engatilhado, abrir a
porta pro coronel Zoroastro, seria covardia da minha parte. Todavia, minha
mulher continua a dizer-me: — não tenho vocação pra
viuvez.
Beijando-a na boca minha mulher me abraça como o perigo armasse
uma arapuca contra a minha vida, mas como não sou nenhum cagão
tampouco medroso, começo a assobiar. E a caminhar assobiando pelo
corredor como se estivesse vendo a beleza de um dia bonito e fosse caminhando
subir os morros das mamonas, mexo a chave, cobre numa meia-volta no serrado,
olho aqui e ali, da fechadura dentada.
Jurava fosse o coronel Zoroastro, que estivesse martelando a distância
os meus ouvidos. Ele, numa alucinação de insone, quisesse
mais uma vez saber o verdadeiro motivo de ter eu comprado tanta terra.
Dissera-me pagaria o que pedisse. Mas eu lhe disse que não iria
plantar carrapateira, competir com ele, coronel que diria, para todo mundo
saber ser eu o melhor homem do mundo, seu único amigo sobre a face
da terra se meus lábios não estivessem mentindo.
Chego perto da porta cheia de murros ainda jurando que num instante de
segundo veria a magreza nariguda de Zoroastro, estar sendo estouvada por
um acesso de temperamento descomedido, exaltado, tão diferente do
seu instinto pacato, índole controlada por uma calculada inércia,
falso sono de venenosa cobra pra terríveis botes, nesse caso ganância
num sinônimo perfeito. Um vento gelado entra casa adentro enxotando
o gato enroscado sobre uma almofada de veludo. Miando sempre o gato procura
a cozinha de fogão apagado e quem está do meu lado, latindo
e pulando nas patas agressivas, mostrando dentes da boca vermelha, na língua
agitada é o cachorro Serapião, cão de caça,
todo preto e orelhudo, todo zangado com o que está vendo. Deixo
entrar o abade do convento, abade despido, nu e tiritante abade que me
conta porque ficou em pêlo.
Os fradesos pegaram olhando com binóculo o morro das carrapateiras
e quando ele saiu do banheiro ficou nuzinho, arrancaram-lhe das mãos
até a toalha de se enxugar, felpuda comprada às dúzias
durante um semana de liquidação de uma casa do comércio
local.
Estava doido, que ele abade de cruz de Bispo no peito friorento iria pro
asilo, era só esperar o carro-forte que chegaria silenciosamente
qual uma nuvem nos pneumáticos, chofer e em todos os freios.
E os frades foram jantar, de barriga cheia descompuseram-no, chamaram-no
de amaldiçoado também de tarado, a ele, abade que temia contrair
pneumonia. E por escutar tanto insulto até se esquecera de rezar,
pedir a Deus qualquer coisa também à Nossa Senhora pro menor
amparo sua boca nem se abriu. Quando se viu sozinho na clausura de pátio
encharcado, pulou o muro, ganhou a rua e o seu coração lhe
começou a dizer numas rápidas batidas de telégrafo
que me procurasse, fosse me ver, quisesse a minha proteção
de homem temido pela canalha mas toda a vida equilibrada.
Feridos estão os pés do abade, sangram suas mãos de
rosário e terço, mãos também de livros de rezas
e compêndios filosóficos. Causa-me pena ver tantos talhos
e enquanto procuro gaze, esparadrapo, enquanto fervo a seringa de penicilina,
enquanto abro uma gaveta pra encontrar bicarbonato de sódio e comprimidos
de sulfa iazol, Serapião fica tomando conta do abade que começa
a chorar durante esta madrugada vermelhíssima nos raios. Raios que
ensangüentam, subitamente o aguaceiro, tempestade desvairada. E barulhenta
nos trovões de bombas que se repetem nas marteladas.
Trancada no quarto minha mulher passa ferro no meu roupão de banho,
única indumentária que temos no momento pra quem tanto sofreu
enquanto a empregada sonha luxuriosos sonhos com qualquer polícia
amarelo na farda. O abade não quer ser mais abade de nenhum mosteiro.
Pra ele não sofrer mais eu lhe dou um emprego pra trabalho de cabeça
outrossim dos braços, grossos braços de alemão inteligente,
naturalizado brasileiro há menos de um mês. Que ele está
empregado, isso eu lhe digo enquanto o abade bebe uísque, come carne
requentada de um jantar opíparo, come tudo isso embrulhado pelo
meu roupão, azul muito azul com felpo de luxo — comeu tudo isso
sentado e alegre sobre os fofos de uma larga cadeira.
— Se quiser lhe arranjo advogado pra processar os frades — minha mulher
me escutando se aproxima da gente pra fazer parte do grupo em redor da
mesa e diz estar de acordo comigo. O gato voltando antes pulara pro estrado
de uma cadeira e fingia que dormia pois nesses instantes nenhuma rajada
lhe atormentava os pelos. Minha mulher afagando a cabeça de Serapião
arisco, continua escutando o abade que aceita, concorda com a punição
dos frades maricas.
O abade à última garfada já transborda de contentamento,
iluminado de súbito nos seus olhos de brasileiro naturalizado que
antes do temporal cair estavam gostando de ver o morro das cantigas, me
pergunta aonde vai dormir. Mas neste instante, agora mesmo batem de novo
na porta. É o coronel Zoroastro. Por não poder dormir e estar
apavorado, quer saber neste instante de madrugada terrível o que
eu vou plantar às minhas terras, léguas, vastas léguas
que empregarão muita gente antes do calendário do próximo
mês.
— Que noite, meu Deus! — digo eu enquanto Serapião zangadíssimo,
barulhento e espumado às ventas de cão inteiro não
quer a trela de sua coleira de prata agarrada pelas mãos enérgicas
de minha mulher, que não vê neste instante o gato correndo,
gato correndo, gato carrasco, com este nome desde começou a abocanhar
borboletas e agarrar pra mastigar ratos peludos, gato branquíssimo,
musculoso e enorme outra vez fugindo de frígidos gelados ventos
pra entrar e desta vez ficar no nosso quarto de dormir, amplo como um salão,
luxuoso e todo moderno nos móveis de pau marfim outrossim no relógio
funcionando certo sem nenhum atraso nos despertar logo mais em cima, bem
em cima das dez horas, horas plúmbeas de um dia enfarruscado, no
toldo do céu cinzentíssimo dia, ameaçadora manhã,
as coloridas nuvens engravidadas.
Breno Accioly
«
Voltar