ADÃO E EVA
Um conto aos pedaços
 
1
             Trovão trabalha no 9º Distrito Policial. Limpa as unhas minuciosamente com a ponta do canivete, real como uma caricatura. O telefone antigo estridula a campainha, Trovão atende.
             Do outro lado:
             – Oi, Trovão, é a Ivete.
             Deste lado:
             – Oi.
             Do outro lado:
             – Tô com saudade. E chateada...
             Deste lado:
             – Pô, gata, sabe como é, esses meus horários!
             Do outro lado:
             – Não é isso. Adivinha: o Orestes me acertou. Tô toda roxa.
             Trovão ri fora do telefone. Agora perto, diz:
             – Garanto que andaste aprontando.
             Do outro lado:
             – Só contigo, benzinho.
              Deste lado:
             – Conta pra outro!
             Do outro lado:
             – Não tenho mais ninguém pra contar, só tu.
             Trovão boceja, cansado. Olha o relógio na parede suja a sua frente.
             – Bom, tenho que desligar.
             Do outro lado:
             – Espera, morzinho, espera! Tô tão tristinha... Como eu sou besta, me enroscar com um confiado como o Orestes. Um grosso!
             Deste lado:
             – ...
             Do outro:
             – Tu tá aí, Trovão?
             Deste lado:
             – Claro, né.
             Do outro lado:
             – Então me diz alguma coisa boa, eu só liguei pra ouvir a tua voz e me alegrar e esquecer um pouco toda essa humilhação.
             Deste lado:
             – Vamo saí um dia desses...
             Do outro lado:
             – Trovão... – a voz fica apertada, depois chorosa.
             Deste lado:
             – Que que foi?
             Do outro:
             – Tu não é violento, né, Trovão?
             A voz do investigador não parece vir de lugar algum.
             – Claro que não, claro que não...
 

2
            Felipe Ernesto fez um curso de contabilidade, mas os computadores apresentaram programas contábeis bem mais capazes e sofisticados que a tímida teoria do aplicado aluno do Professor Turíbio. Desta forma, os empregos não se apresentaram.
            Com vinte anos de vida e oito meses de desemprego, o rapaz resolveu tentar o setor de cobranças. Tinha má dicção, e o telefone era a principal ferramenta das financeiras que lhe exigiram teste. Reprovado, procurou seu tio Gastão, dono de uma transportadora, que lhe ofereceu vaga na Pesagem. Felipe Ernesto: “Pesagem? Tão brincando...”
            Retomou a busca, sem empenho visível. O tempo era mais rápido que ele, e logo um ano se passava, algum amigo arranjava um biscate confortável porém transitório, e depois de um mês de salário sua renda voltava ao mínimo e sua disponibilidade ao máximo. Não parecia sofrer, nem mesmo preocupar-se.
            Nesse trajeto, um casamento apressado e um emprego fácil com o sogro. Ambos duraram dois discutíveis anos. Fim de um ciclo, começo dos trinta, e a idade da razão não parecia nunca bater à porta de Felipe Ernesto.
            Dona Eulália a princípio ficou apreensiva com a dificuldade de colocação profissional do filho. Da apreensão passou à pena, e desta à impaciência.
             – Não batalhas, Fê, não batalhas!
             – Quem me garante que vale a pena? Dar um duro danado pra nada, isso é coisa de mangolão.
             – Queres garantia, é? Garantias!
             – Não grita, mãe, olha os vizinhos.
             Felipe Ernesto passou exatos nove meses sustentado pela mãe, nove meses que ela contou dia a dia.
             – Já não chega ter te carregado no bucho, já não chega? Queres um segundo parto? Vou te segurar no colo até quando?
            A decisão dos anúncios foi um ato de coragem. Muita gente fazia. Era mais que comum. Mulheres de segunda, e até de terceira – muitas, no entanto, financeiramente estáveis e algumas inclusive com posses pra lá do invejável.
            O telefone começou a tocar todos os dias na casa de Dona Eulália, em busca do filho.
             – Que que houve, que agora te procuram?
             Sorria superior diante da mãe, mas não teria coragem de contar.
             Aos amigos, sim, receitava o êxito afinal encontrado: “Bucho endinheirado”.
             – O negócio é comer mondongo pra poder comer caviar...
 

3
            Júlio é um pensador ou um amante? Ambos não combinam, sustenta. Mas é o primeiro a se contradizer.
             – Quando você ama, a lucidez vai pro beleléu, mas aí o pensamento entra em crise, e a crise é sempre benéfica, inspiradora. Amando você pensa mal mas pensa mais.
            Enquanto não resolve essa dicotomia, Júlio termina uma carteira de cigarro, abre a segunda do dia – recém a penúltima –, e proclama:
            – Não vejo vantagem nenhuma em ficar ao lado da pessoa amada. Bonito mesmo é ficar ao lado da pessoa que não se ama, isso sim que é respeito, isso sim que é humano. Conviver com quem se deseja é mais do que óbvio, é mesquinho, é agir apenas em interesse próprio. Admiro mais o sujeito que nunca amou e, mesmo assim, constituiu família.
            As mulheres querem o couro de Júlio, mas ele sorri, compreensivo.
            – Nunca broxei, sabiam?, nunca broxei! – Diz isso com evidente orgulho, ainda mais que tem 49 anos e já seria tempo de ter tido um bom número de falhas na hora do vamos lá.
            A afirmação parece banal pelo juvenil exibicionismo, mas é aí que surge impávido o espírito iconoclasta de Júlio.
            – Sabem ao que se deve minha infalível ereção? À humildade! Sim – grita, eufórico – à humildade!
            Olham-no, confusos.
             – Digam-me: vocês não acham muita pretensão do sujeito ele ficar broxando porque não tá a fim, porque acha a mulher feia, ou indigna do seu sacrossanto pau?
            Silêncio entre os ouvintes. Ele arremata.
            – Eu sei que sou um merda, que não sou melhor do que ninguém, e que portanto não posso deixar de endurecer o pau pra quem precisar disso. Seria como negar água, comida....
 

4
            Era o velho hábito. Um homem falando a outro, sem freios, derrapando, sobre a intimidade de uma mulher.
            E a frase ainda vem coroada de risos.
            – Ela goza como uma ovelha morrendo.
 

5
             Tem sempre um homem polindo um carro, tem sempre uma mulher conferindo a bunda.
 

6
            Nina estava mesmo decidida a mostrar a Pedro o que ele mais temia.
            “Quero que tu goze na minha cara...”
            Pedro a olhou com demora, procurando descobrir afinal qual a intenção da amante.
            “Te masturba, pensa em mim, em nós, ou em qualquer outra puta que te deu melhor do que eu, não me interessa, mas, por favor, pelo amor de Deus, goza, goza!”
            Nina pegou a nikon e a apontou para ele, decidida. Era embaraçoso mas Pedro acabou concordando. E depois, masturbar-se era já uma prática tão antiga que a palavra constrangimento soaria ali como uma enorme imprecisão.
            Houve uma breve demora, o pau já arroxeava, doía às vezes, mas o prazer fazia seu anúncio.
            A nikon era um leopardo à espreita, um leopardo que o amava, que jamais iria feri-lo, Nina não, nunca, e isso deu forças a Pedro, e em seguida o amoleceu junto com o jato forte, caudaloso, que foi agarrar-se como um lagarto às pernas de brim azul desbotado da mulher, postada a meio metro, um pouco tensa.
            Nina saiu quase correndo para o laboratório, como demoraram as fotos, os olhos assustados do parceiro.
            Aquele era o seu rosto? Congestionado, a boca crispara-se, os lábios estavam mais finos, um ó de agonia, a testa denunciando uma hora grave, o olhar branco, opaco, sem vida. Difícil dizer-se: eis aí um orgasmo. Então gozar o fazia ficar assim? Era a cara de um instante de tortura, o retrato de um louco, de um psicopata, de um coitado, um epilético. Aquilo fora feito por amor. De ambas as partes, um falso ato generoso, um egoísmo devasso. A aparência de Pedro era a de um condenado ou de um criminoso.
            Bastava recordar alguns quadros, algumas gravuras, alguns depoimentos acerca da radical aventura dos amantes na cama para concluir-se: o homem estava maquiando o amor para poder suportá-lo.
 

7
            Sai do quarto a clássica imagem dos amantes. Abraçados, um amparando o outro. Tontos ainda, se vê claramente isso no rosto. Estarão salvos agora que aceitaram a condenação plenamente? Há uma forte mistura de paz, depois de tanto sofrimento semeado pelo desejo, e tristeza, após a doce explosão da qual restou uma indisfarçável fragilidade. Saem da penumbra esvaziados da alegre fúria e levam vários minutos até reaprender o precário equilíbrio de todos os dias: a luz costumeira da janela aberta, a força exata ao segurar o açucareiro, a necessária tensão do rosto que precisa preparar-se de novo para olhar tudo aquilo que não se dá.
 

            Últimos pedaços
            Mauro deseja Lia, casou com Sílvia, Lia transou com Mauro, era bom amigo, embora preferisse Ricardo, Ricardo esqueceu Renata, esqueceu Joselaine, esqueceu Rita, Ricardo esqueceu todo mundo, só lembra duma prima morta aos treze anos.
            Sílvia admira Mauro, respeita Mauro, mas um dia masturbou-se pensando em Felipe. Felipe nem sabe da existência de Sílvia, é um apresentador, trabalha na rede de televisão local.
            Lia já deu pra Mauro uma única migalha e não está disposta a repetir a dose. Cansou-se de Ricardo e sua distração, procura atenta um homem atencioso, compra toda quinzena revistas de bordado enquanto torce que alguém fora do prédio, o mais estranho dos estranhos, lhe diga algo familiar.
            Renata deseja Sílvia. Joselaine só reza por um emprego. E Rita, bem, Rita todo mundo sabe que é fogo. 

Paulo Bentancur

 

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