Fia era linda: morena alta,
portentosa, senhora de respeito. Usava uns colares que lhe davam ainda
mais dignidade. As más línguas não cansavam de apontá-la
na rua e virarem-lhe as costas. Ela não dava a mínima e respondia
sempre com um sonoro: Bom dia, fulana! Boa tarde, sicrana! Depois
cuspia e tragava seu inseparável companheiro e continuava seu caminho.
Eu acho que todos tinham inveja da sua imensa popularidade e da disponibilidade
que ela tinha para conosco.
Sua casa, muito grande,
estava sempre ajeitada e meu olfato registrava: era a mais perfumada de
todas. O odor do chão brilhante e das panelas ariadas só
perdia para o cheiro das jabuticabas. Quando o fruteiro passava ela gritava:
seu Zé quanto está a bacia? Nós parávamos tudo
que estávamos fazendo, porque sabíamos o que nos aguardava.
Nossas mães, apesar
de serem amigas de Fia, sempre repreendiam-na. Mas de nada adiantava brigar
com ela... As mães não aprendiam nunca e sempre se repetia
a mesma ladainha: “Fia de novo? É hora do almoço, as crianças
vão perder a fome!”
Ela (para a nossa felicidade) nem dava bola, apenas sorria e
preparava a festa: bacia brilhando, cheia de água que fazia
as jabuticabas fresquinhas boiarem. Fazíamos uma roda em volta para
saborear aquelas maravilhas.
Ela não comia, nunca
vi Fia comendo.... Mas ficava sempre na roda, jogando conversa fora. Perguntava
como cada um estava na escola, porque a Jane estava triste, o que tinha
acontecido com a perna do Carlinhos, porque Hamilton e Marcos estavam de
cara amarrada. Olhava para mim e comparava meus olhos à jabuticaba.
Brigava com o Guto, seu filho e meu amor secreto.
Fia era assim, uma mãe
sem os defeitos de fábrica. Com sua delicadeza conseguia arrancar
de nós segredos incríveis. Quantos problemas impossíveis
não solucionei nessas rodas de terapia em grupo?
O marido de Fia, Sr. Hélio,
mudou de emprego e carregou minha adorável terapeuta para bem longe.
No começo eu demorei para acostumar. Olhava o vazio enorme que restou,
naquela disposição de cinco casas em que todos os fundos
davam para um terreno abandonado. Ali era meu mundo, as mães pegavam
abóbora para o almoço e os filhos se revezavam no trecho
cimentado: meninas jogavam amarelinha, meninos transformavam o cimento
liso numa pista pra carrinhos de rolemã.
Vez por outra eu perguntava
para minha mãe como andava Fia. Minha mãe dizia que ela estava
bem e ríamos recordando suas peripécias. Gostávamos
de lembrar de suas travessuras, nessas horas minha saudade aumentava. Evitávamos
falar dos momentos em que Fia sofria: ela era alcoólatra e não
admitia.
Quando estava ébria
parecia possuída, perdia a doçura das jabuticabas, subia
na mesa, largava a casa, quebrava as coisas e falava um monte de palavrão.
Mas, mesmo neste estado,
não abandonava o carinho pelas crianças, nunca nos feria,
nunca. Nem ao Guto que se enervava e tinha uma enorme vergonha nessas horas....
Vergonha que tomava conta de Fia quando ficava sóbria. Uma vez a
vi chorando, porque tinha se dado conta dos sentimentos do Guto.
Eu, aos doze anos, tinha
presenciado duas bebedeiras que - mais tarde - soube que eram muito freqüentes.
Aos dezesseis, recebemos
um telegrama do Sr. Hélio. Minha mãe chorou e pediu que nos
apressássemos.
Quando chegamos a primeira
pessoa que vi foi Guto. Ele era o mais velho entre nós e o caçula
de Fia. Lembrei-me do quanto ele não gostava de se misturar com
a “molecada” como pejorativamente nos apelidou. Enquanto minha mãe
e meu pai cumprimentavam a família, fiquei parada, observando-o.
O menino intransigente havia
se transformado num belo homem. Chorava muito. Eu tinha vontade de me aproximar,
mas detesto a cor roxa, detesto essas flores sem perfume e essa madeira
preta lustrosa. Guto, por sua vez, não saía dali, não
largava as mãos de Fia.
Fiz um esforço incomensurável,
caminhei até ele e vi minha encantadora vizinha muito feia. Feia
como nunca eu a havia visto, nem quando estava cheia de cachaça,
fazendo pirraça para todos que queriam abrandar seu vexame. Até
nessas horas ela não perdia seus encantos. Mas ali, sem seus
colares, com um vestido sem cores e sem decote, sem o batom vermelho encarnado,
não parecia a minha terapeuta.
Nesse milésimo de
segundo, achei que ela sorriu, como sempre fazia com seu olhar cúmplice
nas rodas de jabuticabas. Guto me olhou e, por um instante, acho que me
compreendeu: nesse dia, meus olhos de jabuticaba não podiam vê-lo,
não podiam consolá-lo. Saí correndo e atravessei a
porta de vidro da funerária. Do meu dente tirei uma lasquinha que
nunca consertei.
Quando como jabuticabas,
sinto as sementes tocarem meu dente quebrado e me recordo do cheiro do
chão que Fia mantinha impecavelmente encerado. Lembro-me do instante
que Guto me viu e eu não podia consolá-lo. Lembro de colares
lindos que encantavam meus olhos de jabuticaba. Revejo um círculo
onde foi cimentado minha infância ao lado de Fia.
Nessas horas, ela sempre
vem me visitar, escancarando seu sorriso cúmplice, anunciando
seu bem estar com a vida, apesar dos pesares...