PATA DE ELEFANTE

               Era  hora  do  almoço, ou do café da manhã,  já nem me lembro mais. Só sei que estavam todos à mesa e que os talheres tilintavam. De repente, ele, ainda uma criança, levantou-se e passou a mão aberta  pelo  ar, agilmente, como  quem pega  um mosquito em pleno vôo. O punho fechado,  chegou-o bem junto  ao  rosto. Aproximou a mão do ouvido  e franziu  o cenho, atentamente. Com o dedo indicador puxou, cuidadosamente, o fura-bolo da outra, com expressão muito séria; em seguida, puxou o pai-de-todos, mas não chegou a abri-lo completamente. Assustado, como que com medo de deixar escapar sua presa, fechou  a mão de novo, rapidamente. Todos olhavam para ele, curiosos.  Fez-se silêncio profundo.  Alguém perguntou-lhe o  que  havia pegado e ele respondeu, gravemente:
                — Um elefante!
               Subiu as escadas correndo e trancou-se no seu quarto, de onde, a partir daí,   vinham barulhos estranhos — gritos, risos, arrastações. Ninguém podia entrar. Ele saía poucas vezes, quieto, não  falava com ninguém, mas mantinha sempre um riso bonito e um brilho nos olhos, de quem guarda um segredo e detém um mistério exclusivo.  De dia, subia com pacotes; de noite, descia com outros, sempre furtivamente. Conseguiram  segurá-lo algumas vezes para que algum  médico o examinasse, mas todos disseram que não tinha cura.  Levado a bruxos, médiuns, videntes, passaram-lhe poções, dedicaram-lhe trabalhos e orações, mandaram que tratasse de  desenvolver seus dons, mas nada conseguiam; ele desvencilhava-se rapidamente e voltava correndo para o seu quarto. Lá de dentro  vinham barulhos cada vez mais pesados, como se tudo estivesse sendo destruído. Em baixo, diziam perceber o teto balançar; e que, às vezes, a lâmpada pendurada pelo fio oscilava como um pêndulo. Arregalavam os olhos para cima. Assustavam-se com o barulho da porta se abrindo. Às vezes  descia sujo, despenteado. Outras  vezes vinha  de banho tomado, a barba feita. Ele trancava a porta, passava, como se não fosse deste mundo, voltava, trancava-se.  Os barulhos recomeçavam. Soltava altas gargalhadas, entre ruídos de pulos, corridas e  tombos, arrastar de coisas, pancadas de objetos caindo. Por vezes, o silêncio  da noite era cortado por gritos  selvagens de elefante, vindos do seu quarto.  Os embrulhos com que entrava e saía  aumentavam de tamanho. Vinha com braçadas de mato, capim, galhos e folhas; voltava à rua com  sacos de estopa  cheios, que retornavam para casa vazios. Tentou-se espionar pelo buraco da fechadura, sempre  tampado, e pela alta janela, trancada e vedada. Essas tentativas foram desestimuladas por baldes de água suja e fedorenta lançados sobre algumas cabeças. O cheiro que vinha do quarto atingiu níveis insuportáveis, repugnantes.   De manhã bem cedo, quando o sol nascia no  horizonte, começava o tum-tum-tum pesado e compassado, indo e vindo, que não deixava ninguém dormir mais.
           Um dia, finalmente, quando ninguém agüentava mais, resolveu-se pela adoção de providências drásticas. Não era só por eles; era mais pelo bem dele mesmo, que, quem sabe, poderia um dia voltar a ser normal, viver uma vida decente, de gente.
             Ao ser interceptado  na saída,  manteve o olhar sereno de quem adivinhava que um dia iria acontecer e que seria inútil reagir. Apenas levantou a cabeça, pregou os olhos na porta do quarto  e deixou-se levar, com a sensação de nunca mais, as mãos agarradas nos seus braços, conduzindo-o,  o rosto banhado de lágrimas, a família atrás, seguindo-o, todos cabisbaixos, os mais velhos segurando a aba dos chapéus com as duas mãos, como quem acompanha um enterro.
            Quando  a família retornou para casa,  deixando-o internado no hospício, traziam a  mesma imagem de tristeza de quando  saíram,  no dia anterior, para levá-lo. Havia aquele silêncio profundo, sentia-se aquele vazio por dentro, aquela impressão de nunca mais. Não tinha cura mesmo, não iria voltar.
           Abriram a porta da  casa e entraram, de cabeça baixa. Espalharam-se pelos assentos, quietos, os olhares perdidos, os olhos vermelhos, parecendo um velório.
           De repente, o silêncio foi quebrado. De cima, veio o barulho descomunal, de  destruição, de raiva, de ódio, de coisas pesadas batendo, arrastando, pulando e caindo,  como nunca.
            Os olhos espantados viram, cheios de horror, o teto abrir-se, com estrondo, e dele  brotar, entre uma nuvem de  poeira, pedaços de madeira  e  de alvenaria,  bem em cima da sala, a formidável, descomunal e gigantesca pata do elefante.


              Goiano Braga Horta

 

 

« Voltar