Aquela boca enorme, escancarada, oferecia-se
para mim. Alguns dias pude vê-la cuspindo fogo, labaredas enormes
que pareciam querer me engolir. Me esquecia nelas. Mas hoje estava fria,
quieta, silenciosa, num convite de saudade aos dias passados que me aquecera.
Pedras disformes rodeavam aquela bocarra, me rondavam
também. Inquiriam sobre meus pensamentos, minhas angústias,
minhas transmutações. Secretas.
Parei um pouco, deixei de pensar, apertei aquela
espinha feia, avermelhada, que insistia em ficar no meu rosto, já
não tão jovem para espinhas. Agora, como um nódulo
grudento à procura da infecção. Merda! Que infeccione
de uma vez! Por que as idéias não saem em mim com a mesma
facilidade que saem essas coisas incomodativas?
Uma semana, tenho uma semana para terminar isso.
Mas, como? O tempo está girando e meu relógio - de pulso
- marca. Não adianta tirá-lo, escondê-lo, eu não
existo, só o tempo e eu não mando nele. Nem nas espinhas...Há!
Se eu fosse o Borges, o grande argentino Jorge Luis Borges. Por que eu
não sou você? criaria labirintos, espelhos, um Aleph.
Um Aleph! Que pretensão! o infinito
do meu finito é tão parco, que sinto a minha pequenez quase
eterna. Eu não sou você, você foi, eu fiquei. Ninguém
nunca será você, posso me apossar de você, de suas ficciones,
mas nunca me transformar em você.
Me incomoda saber que tenho pressa. Na pressa não
sei como agir, tudo me incomoda. Aquela espinha purulenta me irrita. tento
arrancá-la aos apertões. Um jato de espuma azulada começa
a sair, suja minhas unhas, a pureza do papel que jazia imóvel, sem
máculas,talvez à espera do infinito que jamais poderia vir
de mim. Veio sim, veio a mancha, o borrão da caneta espumada, das
mãos lambuzadas, daquela espuma que se arrastou de minha mesinha,
de minha cadeira, até aquela boca enorme, que se encheu agora daquela
espuma que não aquecia, como as labaredas algum dia aqueceram alguém,
naquele mesmo lugar. Agora, só a mancha, o cheio da espuma azulada,
o nada sujo.
Um isqueiro, preciso de um isuqeiro! antes que seja
tarde, tenho que queimar a espuma, ninguém pode vê-la. Credo,
que aberração da natureza minha. De uma fendinha de meu rosto
saindo aquela criação bizarra! Por que no meu rosto? Por
que não no meu cérebro, mas uma criação menos
macabra e nojenta? A chama! ainda bem, a chama está consumindo tudo.
Mas,...espere! É meu! É minha!. Tenho que guardar um
pouco...tenho que saber que foi comigo...
Afofei, como se afofa um algodão para o travesseiro,
guardei! Não tem peso nenhum, afinal; mas deve servir para alguma
coisa, como forrar o chão para minha gata dormir.
É isso! Tem alguma serventia, uma caminha
para minha gata...feita da minha espuma!
Que sufoco! Um esparadrapo resolveu o meu problema.
Parou.
Vou começar tudo de novo. Outro papel...limpo,
mais canetas...a inércia. não tem mais a espinha... O dia
se foi, a noite, também. E o nada em mim, nem a espinha. É
preciso dormir. Durmo...Sonho...
"A Literatura é a repetição de todos
os livros, o texto é uma resposta à outros discursos, o mundo
é uma trama dos discursos, como um texto a ser decifrado, onde tudo
é significativo, o modelo é a ausência de certezas".
Borges, novamente. Ele me fala no sono e eu descubro, enfim, que a espinha
não é só minha, fora essa a certeza que me impedia
de fazer uma nova criação!
Como é bom acordar!