Era junho e o frio se fazia
presente com rigor naquela noite. Tonhão, negro, de idade indefinida,
enrolava-se em trapos.
Encolhido no velho e sujo
cobertor, tentava em vão se aquecer, deitado em um pedaço
de colchão que lhe servia de cama. Ao lado uma fogueira de gravetos.
Foi quando ouviu, em meio ao barulho
do trânsito, uma vozinha fina, chorosa, de moça que já
não é tão moça:
— Hei companheiro, posso
me deitar com você prá me esquentar? To morrendo de frio.
Tonhão esticou o
olho praticamente sem se mover, e viu uma mulherzinha magrinha. Parecia
ser branca e sorria tímida sem um único dente inteiro na
boca. Pensou um pouco. Fez um muxoxo. Chegou-se para o lado dando-lhe a
entender que podia se deitar. Rapidamente ela o fez e aconchegou-se a ele
com um único intento: sentir calor humano. Ele a abraçou
pelo mesmo motivo.
E dormiram, abraçados,
aquecidos e imundos.
Passaram a viver juntos.
Não se questionaram. Ambos sabiam, os neurônios há
muito queimados dificultavam qualquer lembrança. E, afinal, lembrar
o quê? Para quê?
Dividiram o espaço
debaixo do viaduto, a pinga e a solidão.
Pela manhã batizavam
o dia com uma garrafa de cachaça, e depois, separavam-se pelas ruas
da cidade na catança de lixos.
Tonhão freqüentava
as portas das fábricas onde a variedade
de papéis é grande e a concorrência também.
Brigas.
Cida — este era o
seu nome — preferia os conjuntos residenciais. Lixo farto e bom. Ali encontrava
pacotes fechados de pão de forma, verdes de bolor. Latas de conservas
também eram comuns e em geral o prazo de validade há muito
estava vencido, mas quem no viaduto se preocupa com prazos?
E, assim ficou dividido,
sem que ninguém propusesse nada: Tonhão vendia o que juntava
no carrinho e comprava a pinga, quando ganhava o suficiente, comprava também
os cigarros, quando não, enchia um saquinho plástico
com bitucas, encontradas com fartura nos pontos de ônibus. Grandes
e contaminadas.
Cida garantia a comida e
assim subsistiam.
Passavam todo o tempo,
envoltos em névoas de álcool, por isso, nem doentes ficavam
ou não percebiam quando estavam; foi assim que Cida engravidou
e só se deu conta no quarto mês. Encararam a gravidez como
um fato corriqueiro, uma decorrência lógica da vida em comum
que haviam assumido.
Passaram-se alguns meses
e Cida sentiu-se mal. Muito mal.
Devido aos excessos e o
tipo de vida que levava, o feto, há algum tempo encontrava-se morto
em seu ventre. Sentia cólicas terríveis, o que não
os assustou muito, pois cólicas e diarréias eram normais
por ali.
Ela foi piorando. Já
não tinha forças para se levantar e continuava bebendo muito.
Na tentativa de aplacar a sede que a febre produzia, bebia pinga
e água suja do rio.
Cida chorava, Cida ria.
Cida delirava. Cida morria.
Amanheceu dura no pedaço
de colchão em que se encontrava deitada há dias.
Tonhão se viu com
um problema. Esse era um fato novo, algo que ele não previra e que
a cachaça não resolvia.
Depois de muitos goles e
poucos pensamentos, decidiu abandonar o velho lar. Havia tantos viadutos.
Fez uma pequena trouxa com os trapos, inclusive a lata que lhe servia como
panela e amarrou em um nó apertado. Ficou ainda por algum tempo
perdido, parado, com o olhar fixo no rio barrento.
E num gesto de ternura inusitado,
cobriu Cida, com o cobertor imundo e único. Olhou seu rostinho fino,
tão branquinho.
Beijou-a de leve e se permitiu
chorar... só um pouquinho.