O HOMEM QUE VOOU PARA FALAR COM DEUS
 

                                     I
 

O homem  sempre quis voar. Se há idades para os  sonhos, penso que deva ser este o mais velho de todos. Esta estória é sobre José Berlindo Monteiro, um homem  que sonhou  em voar  e voou.  Ouvi-a de  um vaqueiro, que  me contou enquanto  estive visitando  a  pequena cidade  de Parnaguá  dos  Montes, no extremo sul  do Piauí. Lá todos  conhecem a saga desse  homem que voou para falar com Deus.

Por volta de 1779,  chegou à cidade de Parnaguá o novo pároco. Era um jovem que devia  ter seus trinta anos, alto, nem  magro nem gordo, cabelos pretos engomados  e  uma cara  comum,  dessas  de jovens  padres.  Seu nome,  José Berlindo Monteiro. O padre Monteiro, como era conhecido, caiu logo na graça dos  fiéis,  apesar da  sua  pouca idade.  Talvez  por conta  da sua  muita simpatia.

Formou-se aos 23 anos no seminário do Rio de Janeiro. Sua primeira paróquia foi a  de uma cidade nos  arredores da corte. Porém,  sentiu em seu coração que deveria ser mandado  para outras fronteiras, e foi para o sul do Piauí, para  Parnaguá dos  Montes. Tivera  antes seu  coração se  aquietado. Seria melhor. Mas é possível que este já estivesse sentindo o doce perfume de Ana Capitão.

Ana Capitão, era filha  do coronel Cândido Capitão. Dela ninguém sabe dizer qualquer característica física, exceto  essa: a mais bela mulher que jamais existiu. Mulher perigosa essa Ana. Havia nela um encanto, uma mágica: O dom de seduzir. Ela porém nunca foi seduzida por nenhum homem. Pobre mulher que foi  amada por  todos,  e nunca  amou ninguém.  Poderosa mulher,  pela qual vários homens  já haviam  se matado. O  certo é que  se os  homens tinham o poder sobre o mundo, Ana Capitão tinha o poder sobre os homens.

Ela  porém fingia  ignorar  sua dádiva.  Fazia-se parecer  frágil  como uma boneca  de  porcelana.  Sua  voz  transmitia  uma  paz e  uma  doçura,  que hipnotizava,  como canto de  uma sereia.  Sua graça, leveza  e ingenuidade, inebriavam o ouvinte. Sabia-se bela e graciosa por fora, e sabia-se forte e decidida  por dentro.  E  aí temos  a  combinação de  uma perigosa  mulher.

Sim amigos, o inevitável aconteceu. Padre Monteiro também não pode evitar a paixão  por Ana  Capitão.  Da primeira  vez  que a  viu, apaixonou-se.  Foi durante  uma missa,  onde  o padre  pregava sobre  uma passagem  em Mateus.

   * Olhai os lírios do campo

   * Seus olhos sentiram os de Ana Capitão, encantou-se.

-  E eu  vos digo que  nem Salomão, em  toda a  sua glória, se  vestiu como qualquer deles...

Seu coração viu Ana Capitão. Apaixonou-se.

É  claro que  o  padre Monteiro  sabia que  não  era lícito  para  um padre apaixonar-se,  e ele  lutou como  pode contra  isso. Sofreu  os sofrimentos comuns desse  tipo de pecado, e  dissimilou como pode seu  amor, tanto para si, tentando  se convencer de que  não se apaixonara, como  para os outros, cuidando  para  que  ninguém percebesse.  Ana  Capitão,  no entanto,  podia perceber  nos olhos  do padre a  fraqueza do  homem, afinal já  vira muitos olhares apaixonados, e eram todos iguais, trôpegos e tolos. Não se importou com o que o padre sentia.

Em uma bela tarde  de outubro, Ana foi se confessar ao padre, mas encontrou ao homem. Depois de seis meses de sofrimento, dissimulação, o homem decidiu que iria se libertar do padre.

—  Padre, pequei.

O homem replicou:

—  Ana,  perdoa-me, mas hoje eu  vou me confessar a ti.  Sou um padre, e por sê-lo pensei  estar imune  às paixões e  lascívias da carne.  Quando te vi, descobri  que não  estava. Ana,  te amo.  Quando te  viram meus  olhos pela primeira  vez, já  estava apaixonado.  Muitos já  amaram, em  muitas outras épocas, mas nenhum amor  foi, é ou será tão grande quanto esse que eu sinto por você Ana Capitão.

A mulher  pensou por um instante. Nunca um  apaixonado havia lhe tocado tão fundo com palavras quanto agora. " Malditos homens que estudam a retórica e o Latim", pensou. Porém  ela era Ana Capitão. Não cederia. Porém também não diria que não. Afinal, era uma mulher.

—  Tu  és padre, e  seu casamento é com  a Santa Igreja. Porém  se queres me desposar, há  uma maneira. Terás de  ir, em carne e  osso, pedir ao próprio Deus para que te livre das obrigações eclesiásticas. Dessa forma me casarei contigo.

Ana saiu alegre da  Igreja. Pensou que com aquelas palavras, havia colocado um fim  na paixão do homem.  Mal sabia ela, a  que loucuras poderia levar o amor.

O padre decidiu, naquele mesmo momento, que iria construir uma máquina, uma máquina de voar para falar com Deus.

                                     II

O homem  enclausurou-se como  nunca tinha feito antes  nenhum outro asceta, monge  ou  papa. Viveu  para  o amor  de  Ana, e  consequentemente, para  a construção  da  máquina.  Lentamente o  amor  foi  transformando-se em  uma espécie de loucura, obsessão.

Não demorou  muito para  que os fiéis  notassem que o  padre Monteiro havia enlouquecido. Se  negava a  rezar as missas,  vivia trancado dentro  de uma oficina, e  dizia bentinho, um guri  que ajudava o padre  nos afazeres, que este estava construindo uma máquina de voar. Uns diziam que sua loucura era coisa  de  família, outros  coisa  de  mulher, outros  ainda  coisa de  Ana Capitão. O arcebispo mandou um novo padre para Parnaguá dos montes, e achou melhor  deixar  padre Monteiro  onde  estava. Tirá-lo  de Parnaguá  poderia piorar-lhe   a   loucura.  "Melhor   que   morra  louco   por  lá   mesmo."

O padre  se dedicava com  uma paciência meticulosa a  sua estranha máquina. Nunca quisera  nada de maneira  tão intensa como queria  voar, afinal, para ele, voar seria o  mesmo que amar. A máquina que o padre estava construindo era bastante simples. Eram  duas grandes asas, que se acoplavam ao braço do padre,  tornando-se uma  espécie de  prolongamento desses.  Quando Bentinho perguntava se  não seria muito esforço para ele "  bater as asas até Deus", ele dizia que deveria ir assim, batendo as asas como um pássaro, e que essa seria sua penitência, e  Ele haveria de reconhecer o esforço, e dar a ele o coração de Ana Capitão,  afinal, maior prova de amor do que essa não havia.

Ana achava graça na loucura do padre. "Como são tolos os homens, " pensava. Todos evitavam  falar na frente da bela moça  que havia uma desconfiança de que a loucura do padre fosse por sua causa. Afinal, " como reagiria a pobre menina diante  de tão  dura sina, ser  causadora da loucura de  um homem? " "Por certo  enlouqueceria ela também," pensavam uns  " não, com certeza ela se trancaria  em seu quarto e  nunca mais se deixaria  ver por outro homem" arriscavam  outros. E  ela  seguia, fingindo  nada  saber, sendo  a bela  e inocente Ana Capitão que todos pensavam conhecer.

Por  fim  a máquina  do  padre  ficou pronta.  Quando  saiu à  rua, não  se reconhecia  na  figura do  padre  o  homem que  fora,  na  verdade, não  se reconhecia a figura do  homem no vulto que ali estava. Barba de dois meses, roupas sujas e rasgadas,  o já delgado padre Monteiro agora era só ossos, " talvez para  ajudar na  voação da máquina"  pensaram alguns. De  todo o seu corpo destruído  e cansado, a única parte na  qual era possível perceber um sinal de  vida eram  seus olhos. Carregava  no olhos o brilho  do olhar dos homens que  amam, e  a obstinação dos  que querem realizar  o irrealizável, fazer o  "infazível". Saiu carregando  as asas, tinha a  ajuda de Bentinho. Rumaram para  o monte dos dois  irmãos, de onde haveria  de voar para falar com Deus.

                                    III

Chegando ao  morro dos dois irmãos,  o padre acoplou em  si, com a ajuda de Bentinho, as  asas que lhe  conferiam um envergadura de  quase seis metros. Bateu-as levemente, como em  um teste, e percebeu o corpo querendo levitar. O padre  não deixou  que ninguém os  acompanhasse até o  cume, e  o povo da cidade ficou  todo ali no sopé, apreensivo, não  sabendo se o que realmente queria  ver  era o  ícaro rumando  para  o sol,  para  o céu,  ou a  massa, esborrachando-se no chão, sabendo-se da gravidade.

Despediu-se  do  garoto.  Olhou o  horizonte  e  imaginou-se voando.  Tomou distância, correu, como nunca  havia corrido antes, fechou os olhos, lançou o  leve corpo ao  ar. Com os  olhos cerrados,  sentiu que seu  corpo estava levitando. Bateu  as asas, e mesmo  com os olhos fechados  podia ver o povo pequeno  lá embaixo.  Sentiu o  ar frio em  sua face,  e rumou para  o céu. Viajou por  horas, o  céu azul tornou-se  bordô , amarelo, cinza  e por fim negro.  Continuou voando;  viu  a lua,  passou por  ela, viu  outros muitos planetas  estrelas, e  achou que  nem mesmo  eles eram  mais belos  que Ana Capitão. Depois  de passar por galáxias  e cometas, por vias  lácteas e não lácteas viu a porta do céu, e anjos que cantavam à porta.

Entrou  sem pedir  licença, sem  falar nada,  como se  fora seu  o paraíso. Realmente era  lindo. Anjos cantavam em todos os  lugares, e a música nunca parava. Havia  um aroma de flores no ar, para  quem gostava de flores, como havia de  chocolate, para quem  gostava de chocolate. Tudo  era muito belo, mas Ana Capitão era ainda mais bela. Foi quando pensava nisso que viu Deus. É  claro que  "viu "  é maneira  de  dizer, afinal  como poderia  o padre Monteiro ver aquele que nem mesmo Moisés havia visto? Dirigiu-se até Ele, e com todo  respeito do mundo  começou a falar-lhe. Não  entendia as palavras que dizia,  muito menos as que  ouvia. Percebeu então que  estava falando a língua dos anjos. Lembrou-se da primeira epístola de Paulo aos Coríntios, " Ainda que eu falasse a língua dos Homens, e falasse a língua dos anjos, sem amor, seria  como o  metal que soa  ou como o  sino que tine."  Foi como se sentiu.  Foi então  que  percebeu que  nunca teve  o  amor de  Ana Capitão.

Nunca mais  abriu os olhos o padre José  Berlindo Monteiro. O povo atônito, recolheu a  massa disforme do chão. As  asas quebradas, denotavam  um anjo caído. Enterraram ali mesmo  ao padre, no sopé da montanha, em Parnaguá dos Montes. Mais  um que  morreu de amor  por Ana Capitão. Tolos homens esses, dominam o mundo, mas não seus corações. 

David Nogueira
 

 

« Voltar