MINHA NOITE DE NATAL

A lua brotava rosada por trás dos velhos casarões de cor cinza no bairro de Santo Antonio, trajando seu  vestido de laços vermelhos, e nas mãos um perfume de flores campestres para jorrar com  ajuda de seu irmã, a brisa,  paz sobre cada pessoa presente naquele dia especial do ano de 1970.

Temi olhá-la diretamente, e acho que foi por susto, pois passou  tão perto ao telhado da minha casa  que  pude sentir o  calor  de seu rosto. Parecia até que em passagem, levaria consigo nossos mais íntimos desejos infantis… de fada, de príncipe, de duende, de riqueza. Fiquei só a olhá-la através da janela, suspensa sobre um banco de sucupira.

A casa onde estávamos morando era ainda  um pouco desconhecida e estranha para nós pois havíamos nos  mudado há menos de um mês.  Estava suspensa, por longas pernas de paus em forma de esteios sobre um igarapé, no pobre bairro  de Santo Antonio. As brechas distavam alguns centímetros umas das outras imitando pessoas em cujos olhos a  doçura da vida se retirou e não mais deu as caras de visita. De joelhos, através delas, podíamos ver a rua do lado de fora.
Havía uma só dependência para todo aquele ambiente – un único quarto – e nada mais. O banheiro ficava do lado de fora, num pequeno quadrado cercado também de madeiras com uma torneira plástica suspensa com água fria, fria, típica daquela região tropical onde a úmidade é constante o ano inteiro.

Na rua,  as crianças esbanjavam sua alegria; macacas coloridas desenhadas ao chão, cordas-cipós deitadas ao relento, montinhos de pedras tomando conta de buracos e restos de plantas demarcando territórios vencidos da barra bandeira. “ seu lobo, seu lobo  estou aqui..”; “cheguei primeiro, a manja é tu”;  “o pote é meu, você vai para o inferno porque riu. No céu ninguém entra rindo desse jeito…”;  “ pega a bandeira agora, pois se você não correr a gente perde o jogo, corre Celeste, corre !”. Algumas, ainda insistiam em  aparecer enlameadas  no faz-de-conta das piscinas naturais que elas  acreditavam ter sido criadas por Deus, especialmente para elas. E nós, da casa-palafita, víamos tudo.Dava vontade de descer lá também .. se já não fosse aquele horário !

A lua , belíssima cobriu momentaneamente nossas cabeças seu brilho prateado, e deixou-nos trigais como se fôssemos anjos do Senhor, mas ainda assim, não conseguiu tirar do rosto da querida Madalena a melancolia daquele momento.

Dormíamos  sempre por volta das sete horas da noite; após uma jantinha de peixe cozido ao modo amazonense (sem verduras, com sal, e uma pitadinha de cominho), acompanhado, é claro, da típica farinha d’água.Sobremesa, nem pensar, lar de gente simples não existe sobremesa. Naquele dia, tão logo a lua surgiu, Madalena insistiu em nos mandar para a cama mais cedo Então seguimos, levadas pelas mãos brancas daquela mulher, rumo às redes que atravessava nosso pequeno quarto.Eram duas, uma minha e outra da minha mana  Angelica.

Os sapos e  rãs cantavam alto naquela noite, alheios aos a movimento das crianças que pulavam sobre os paus; dos homens trabalhadores que regressavam das fábricas onde certamente eram carpinteiros, pedreiros, eletricistas, pintores ou quem sabe capatazes de alguma obra; das lavadeiras em cujo lábios havia a certeza de que houve o  recebimento do salário naquela semana ; dos trocadores de ônibus  em cujos ombros ainda ardia  o cansaço do longa permanência num daqueles tantos coletivos que cruzavam a cidade Sorriso no trecho Santo Antonio São Jorge Centro.

Sentadas  à beira de nossas redes agradecemos a Deus por mais aquele dia e pedimos ao Senhor  um período de tempo maior junto a nossa genitora,  pois a dor da saudade de Luciano, papai,  era grande,  e aquele seria o primeiro ano sem ele; depois da sua ida para o céu, a situação piorara muito e sentíamos falta do seu afeto e segurança.

Nossa mãe trabalhava como doméstica e nós duas – Angelica de quatro anos e eu de seis – ficávamos sozinhas o tempo todo,  tendo que resistir aos apelos da meninice, da molequeira, e de maturidade para não faltar às aulas da escola pública e , além de tudo, não comer toda a comida pois era pouco o que dispúnhamos para cada dia. Mas ainda assim, com as diferentes manhãs que surgiam em nossa vida de criança, tínhamos o sorriso  nos lábios… exceto, naquele dia no qual Madalena estava. Então deu-nos as bençãos  e se retirou para a cama que também ficava  próxima às nossas redes.

“Bum, bum bum…” foi com um desses estardalhaços que despertei naquela madrugada e sentei, gelada, na  beira da minha rede. Angelica minha mana permanecia dormindo, alheia a tudo que estava ao  seu redor. Ao olhar para o lado esquerdo da janela próxima à minha rede  vi , os clarões dos piscas-piscas  nas casas  com suas luzes coloridas  como se fossem filhotes do Arco-Íris em procissão na terra; as pessoas cantando em gozo ante os fogos que subiam aos céus  para levar seus grito de adoração e vivas à jovem noturna , a qual, suntuosamente,  reinava plena acima de todos; e,  no canto direito do quarto escuro, minha mãe… chorando, sentada na velha cama de capim…sim ela chorava. Não sei porque, mas chorava.

Curiosa, eu era assim e permaneço até hoje, levantei-me e fui até ela, pois tão absorta estava em seus pensamentos que nem se deu conta de mim. Olhei-a nos olhos de onde rolavam tantas lágrimas e indaguei o por quê? “nada, respondeu ela. Volte para sua rede”. Fiquei triste e insisti na pergunta, querendo saber qual razão poderia estar levando aquela mulher guerreira, alva como as pombas da paz e de rosto rosado como a lua naquela noite,  a soluçar silenciosamente em um momento aparentemente  cheio de brilho, de cores, de calor e de alegria. Madalena permanecia calada e de quando em quando levava as mãos aos rosto, num  ímpeto de calar o coração de onde certamente jorrava a nascente daquele rio. Ainda assim, ela se conteve e pediu-me , com as mãos sobre meus longos cabelos dourados, que eu fosse dormir. Numa última tentativa, perguntei-lhe o porque de nos ter mandado dormir às seis, e percebi, então, que ela não poderia mais guardar a dor do seu coração e ouvi, numa voz bem sussurrada a resposta para minhas perguntas: “hoje é Natal e  não temos nada para comer. Foi melhor para vocês  apagar  o ronco da barriga com o sono dos anjos, e menos dolorido para mim não ouvir suas vozes me culpando do porque de não termos janta. É melhor dormir que ouvir a alegria do lado de fora. É muito melhor”.

Fiquei a olhá-la por alguns segundos e num ímpeto de socorro, abracei-a e beijei-lhe as lágrimas. Ela então, sem saber, pois há coisas que fazemos na vida insconscientemente deu-me naquele momento o maior presente que já recebi até hoje nesta vida: AMOR. Ele veio enrrolado com a fita da ESPERANÇA… de nunca mais vê-la em sonhos, chorando como naquela noite de natal.

Hoje já não estou mais na favela, já não ouço o canto dos sapos e rãs, já não sou mais tão criança, mas ainda ouço o sorriso de Madalena, com o rosto rosado da lua daquela noite, falando no meu coração, “ vai, que natal é todo dia. Sonhe, posto que a vida é sonho diário. Trabalhe, pois só com ele se constrói  a escada da riqueza material e ame, ame porque é esta a única força capaz de dar vida, assim como te dei. 

Denilza Munhoz
 

 

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