Aconteceu
 

                            -I-
 

     A senhora cuida da pensão a quantos anos? - Perguntou o delegado Jonas.
     — Faz uns 20 anos aproximadamente. - Respondeu Dona Josefa.
     — E nunca aconteceu um fato como este?
     — Não.
     — Como são os moradores de lá?
     — Alguns normais, outros estranhos.
     — Fale-me sobre aquela noite, o que aconteceu ?
     — Bem, tudo parecia normal. A Silvia sempre saia toda arrumada perfumada, ela era dançarina numa boate ai da periferia.
Não que   eu concordasse   com  a   vida  dela  mas  ela  sempre  me pagou  direito e parecia ser uma boa pessoa.
     — Continue.
     — Bem, ela se arrumou e saiu.
     — E dai?
     — Bom, eu estava dormindo quando acordei com uma sede danada,  Desci a escada e vi a Silvia sentada no sofá de costas
para  mim. Eu cheguei perto e vi que sua cabeça estava meio pendendo  para o lado. Quando a toquei no ombro ela caiu
estirada no chão.  Nossa nunca vou me esquecer daquilo, ela tinha nos olhos uma expressão horrorosa e sua blusa estava toda
ensangüentada. Não gosto nem de me lembrar.
     — Que horas eram aproximadamente ?
     — 4:15 hs
     — Mas o que foi que mais chamou a atenção da senhora?
     — Ela tinha uma agulha de costura fincada nos lábios.
     — Muito bem Dona Josefa, vou precisar que a Senhora me fale   um pouco de seus hospedes, são 9 ao todo não é
mesmo?
     — Oito agora.
     — Muito bem fale-me deles. Vamos começar por este Ronaldo.
     — É o morador mais antigo. Mora comigo há quinze anos. Já esta meio  gagá e se esquece de tudo facilmente. Seu
principal passa tempo é  colecionar carteiras de cigarro. Ele é meio antipático e rabugento mas todos de maneira em geral
gostam dele e o tratam com respeito. Ele é um velho muito só, seus filhos o abandonaram totalmente. Ele  só sabe ver TV e
colecionar as tais carteiras de cigarro.
 

                         - II -
 

     Na noite do Crime  -  22:00 hs

     Ronaldo era um homem extremamente infeliz. Depois de perder a mulher num acidente de carro tornara-se seco por dentro.
Não culpava seus filhos por não quererem vê-lo, afinal ele fez por merecer. Trancou- se para o mundo e por muito tempo só se
dedicou a sua coleção de carteiras de cigarro. O tempo passou e ele aos poucos começou a viver novamente. Só que já era
muito tarde para tudo.

     Ronaldo andava de um lado para o outro, estava naquele dia mais cansado que nos outros. Já não tinha mais o vigor da
mocidade. A única coisa que lhe trazia um pouco de alegria para os seus dias tristes era a presença de Silvia naquele lugar. Ele
a achava linda. Tudo nela era encantador. Ronaldo estava com a porta de seu quarto aberta. Quando Silvia passou, ele a
chamou. Meio impaciente ela parou.

     — Seu Ronaldo estou com pressa.
     — Eu queria falar com você, não vai demorar muito.
     Ela entrou no quarto e sentou-se numa cadeira. Estava chateada.
     — Sabe Silvia eu gosto muito de você. Você é a alegria deste lugar.
     — Obrigada. Disse Silvia olhando para o relógio.
     — Eu ...
     — Senhor Ronaldo, não quero que diga coisas que eu não quero ouvir. O senhor é legal mas, velho e pobre. Não quero
ouvir mais nada. E além do mais eu estou atrasada.
     — Mas...
     Ela levantou-se e virou as costas saindo sem olhar para trás. Ronaldo ficou parado olhando para o nada. Sentiu um grande
aperto no coração. Uma lágrima escorreu de seus olhos espatifando-se contra o chão.
 

                           - III -

     — Muito bem Dona Josefa, vamos para o próximo da lista. Quem é esse Rubens?
     — O Rubens? Ele é um amor de pessoa. É estudante de medicina. Muito alegre e comunicativo. Só tem um problema.
     — Qual?
     — Mulheres. Ele não pode ver um rabo de saia que já vai logo correndo atrás.
     — Ele se envolveu com a vítima ?
     — Claro que sim.
     — Eles estavam juntos.
     — Não, eles brigavam demais. Ele é muito mulherengo. Silvia até propôs a ele largar a boate se ele largasse as outras. Mas
é claro  ele não quis.
     — E ela?
     — Ficou possessa. E disse que o mataria se pudesse.
     — Bom neste caso eu acho que ela tinha muito mais motivos para querer matá-lo do que o inverso.
     — Não sei.
     — Por que a senhora disse isso.
     — Silvia tornou-se um estorvo para Rubens, entrava no quarto dele quando ele estava com outras garotas, fazia escândalo.
Tive que trocar a fechadura da porta dele muitas vezes pois ela insistia em entrar onde não era chamada.
     — E o que ela fazia?
     — Rasgava roupas, pegava objetos dele.
     — E isso ainda estava acontecendo?
     — Não porque eu cheguei ela contra a parede. Ou ela parava com aquilo ou podia arrumar as coisas e ir embora.
     — E daí.
    —- Ela parou.
     — E ele?
     — Continuou a aprontar com todas as mulheres que podia.
 

                          - IV -
 

     Na Noite do Crime  -  3:30 hs
 

     Rubens fazia o tipo de rapaz cuca fresca. Era extrovertido, inteligente e é claro muito atraente. E usando dessas qualidade
era tido como o Dom Yuan de sua faculdade. Nenhuma lhe escapava. Ele ainda não satisfeito estendia seu domínio para fora
da  faculdade. Feias, bonitas, casadas ou solteiras. Toda mulher tinha um lugar especial no seu coração.

     Rubens tirava a roupa de uma garota quando ouviu uma batida na  porta.
 

     — Espere aqui que eu já volto. Disse Rubens à garota.
     Quando abriu a porta e deu de cara com Silvia perdeu a paciência.
     — O que você quer em?
     — Por favor fale baixo senão a Dona Josefa...
     — Vá embora!
     — Não, não vou.
     — Você está bêbada.
     — Rubens eu te amo, deixa eu entrar.
     — Silvia você nunca vai me deixar em paz?
     — Só se você me matar queridinho.

     Ela empurrou a porta a força e entrou no quarto. A moça que estava com Rubens a olhou assustada.
     — Dá o fora daqui sua piranha! Disse Silvia.

     A moça vestiu-se rapidamente e saiu correndo. Rubens tentou impedi-la mas não conseguiu.
     — Satisfeita agora, ela foi embora!
     — Rubens meu amor fica comigo.
     — Sabe quando eu vou ficar com você, nunca!

     Ele a empurrou com extrema violência para o corredor e fechou a porta. Sua cabeça estava a mil por hora e apenas um
pensamento dominava sua mente. "Isso vai ter que parar, custe o que custar isso vai ter que parar"
 

                           - V -

     — Dona Josefa me fale dessa Senhora Raquel.
     — É uma senhora muito honesta e trabalhadora, mas é muito fofoqueira. Se mete na vida de todo mundo lá da pensão. É
sozinha, sem filhos e aparentemente não tem nenhum homem. Quando fica em casa adora costurar na sala.
     — A senhora falou em costura?
     — É, ela arruma a roupa de quase todos daqui. Só não arrumava as roupas da Silvia. Elas não se davam muito bem.
     — Por quê?
     — Ela não concordava com o modo de vida da Silvia, as duas viviam batendo de frente.
 

                           - VI -

     Na noite do Crime  -  22:15 hs

     Raquel sempre fora muito gorda. Na escola era chamada de balão. De atraente nunca teve nada. Era chata e até os amigos
era poucos. Cresceu e tornou-se moça o que fez sua situação agravar-se ainda mais. Não conseguia achar ninguém que a
quisesse. Os anos passaram e ela envelheceu, tornando-se uma pessoa triste e amarga.

     Silvia acabara de sair do quarto de Ronaldo quando encontrou Raquel no corredor. Tentou ignora-la mas a outra foi
tratando logo de falar:
     — Lá vai a nossa dançarina. Disse Raquel.
     — E lá vai a solteirona encruada que só sabe pegar no pé da gente.
     — Olha aqui menininha!
     — Quer saber eu sou é muito mulher. Tenho muitos homens e todos me adoram, sou linda e maravilhosa. E você? Você é
uma cinqüentona encalhada  e feiosa que não tem vida própria e só sabe se preocupar com a vida dos outros.

     Raquel ficou muda, por segundos o ar lhe faltou e ela calou-se. Silvia não lhe deu mais atenção desceu as escadas e se foi.
Raiva e ódio explodiram no seu peito, ela estava ferida e machucada. Silvia a havia tocado no seu ponto fraco. Era feia e não
tinha ninguém.

     — Você vai engolir tudo que disse. Disse Raquel num sussurro.
 

                         -  VII -

     — Próximo da lista, Anderson.
     — Sujeitinho esquisito este. Calado. Vive mais trancado naquele quarto do que outra coisa. Diz ele que é cientista.
Sobrevive de uns trabalhos que faz para revistas de ciência. Ele é muito fechado, não se dá com ninguém. Sei lá, parece louco
mas eu acho que é inofensivo.
     — Não tem parentes e nem amigos?
     — Nunca levou ninguém lá na pensão. Nem amigos, nem namorada nem nada. Aliás depois que aluguei o quarto para ele
nunca mais pus meus pés lá. Ele não permite que ninguém chegue perto.
     — E como era o relacionamento dele com a Silvia?
     — Acho que nenhum, ele não conversava com ninguém da pensão.
 
 

                        -  VIII -

     Na Noite do Crime  -  3:40 hs

     Anderson adorava seu quarto, organizara-o da melhor maneira possível. Revistas, material de pesquisa, fotos. Era como se
tudo fizesse parte de um templo. Levara anos para deixar tudo como ele sonhou. Mas agora estava completo. Nada poderia
perturbar agora aquela harmonia.

     Anderson nunca se dera com pessoas, apenas tratava com elas o estritamente necessário a sua sobrevivência. Namoradas
então nem pensar, achava as mulheres incapazes, vulgares e histéricas. Elas também nunca haviam lhe dado a menor bola. Ele
era franzino e usava um óculos que mais parecia um fundo de garrafa. Que mulher se interessaria por um tipo como ele?

     Naquela noite Anderson acordou com o barulho no quarto ao lado. Ficou muito irritado, com certeza deveria ser aquela
histérica da Silvia brigando com o tarado do Rubens, pensava ele. De repente ele ouviu batidas no seu próprio quarto.
Levantou e ao abrir a porta se deparou com Silvia.

     — Você precisa me ajudar.
     Disse isso e foi logo se jogando sobre Anderson. Enquanto ela o abraçava ele pode sentir o seu corpo palpitando junto ao
dele. Ela o encarou e passou a língua nos lábios dele de maneira sensual.
     — Você gosta disso?

    Ele permanecia imóvel e atônito enquanto ela lhe beijava a boca, o pescoço e a orelha. Ele começou a sentir uma excitação
que jamais sentira antes. Num extinto maior que sua razão a agarrou vorazmente. Ela se desvencilhou dele no mesmo momento
dando uma gargalhada sonora.

     — Puxa eu até achei que você não gostava de mulher

     Anderson estava desconcertado não sabia como agir.
     — Vamos ver o que você tem aqui neste quarto.
     — Não toque em nada!
     — Por que não ? — Disse Silvia quase gritando — Vai querer você também me maltratar.
     — Não ...
     Silvia perdeu a razão e começou a jogar ao chão tudo que encontrava. Dizia coisas sem sentido e chorava sem parar.
Anderson assistia apavorado a destruição até ter uma reação inesperada. Lançou-se sobre Silvia e gritou:

     — Vá embora daqui. Disse com ira na voz, segurando com força os braços dela.

     Silvia o olhou e se conteve. Teve até medo neste momento. Saiu do quarto sem dizer palavra. Anderson a observou sair e
calmamente disse:

     — Você nunca mais fará isso.
 

                             - IX -

     — Dona Josefa, como é esse Henrique?
     — Ele é homossexual assumido. Adora tudo quanto é coisa de mulher. Já peguei ele de camisola e cinta liga. Durante o dia
ele é auxiliar de escritório e a noite sei lá. Sai por ai e sempre volta muito tarde.
     — Ele se dava com a vítima?
     — Acho que sim. Conversavam normalmente. Nunca brigaram nem discutiram.

                            - X -

     Na Noite do Crime  -  21:20 hs

     Henrique tivera uma infância um tanto diferente de seus colegas. Não gostava de jogar bola e muito menos de andar com
garotos de sua idade. Do que ele gostava mesmo era brincar com sua irmã de bonecas e ajudar sua mãe com os afazeres
domésticos. Ele adorava o universo feminino. Tudo era muito mais interessante. Quando chegou a adolescência seu pai cismou
de levá-lo a um prostíbulo, foi então que veio a primeira briga das muitas que viriam. Henrique não queria saber de mulheres e
seu pai insistia que ele tinha que provar sua masculinidade. Ele sabia que era diferente. Queria ser uma mulher pois sua alma era
feminina, apenas tinha nascido num corpo errado. Depois de muitas brigas saiu de casa e nunca mais voltou. Cortou todo e
qualquer contato com sua família. Eles nunca o entenderiam.

     Henrique teve sua primeira experiência sexual com um homem muito mais velho. Foi muito ruim, foi espancado e humilhado.
Depois disso se isolou e não quis saber de homem nenhum até conhecer Ricardo, um colega de trabalho. Ficou muito
apaixonado, achava que tinha encontrado sua alma gêmea. Foi quando veio o golpe fatal : Ricardo o trocou por uma mulher e
com isso ele jamais poderia competir. Depois deste dia passou a odiar todas as mulheres bonitas. Principalmente uma, Silvia.
Silvia era tudo o que ele queria ser. Ela era a mais bela de todas. Seu corpo era perfeito, tudo nela era perfeito. Henrique não
conseguia entender como Deus podia dar tanto privilégios a uma pessoa e deixar outras tão desprovidas.

     Todos os dias Henrique esperava a hora da saída de Silvia para segui-la com os olhos e ver como ela estava vestida.
Naquela noite em especial ela usava um vestido transparente vermelho. Ele era esvoaçante e Silvia parecia flutuar com ele.
Henrique ficou obcecado por ele. Precisava daquele vestido. Talvez ficasse lindo como era ela. E naquele momento disse para
si mesmo:

     — Ainda esta noite vou estar vestido com ele.
 
 

                          -  XI -

     — Quem mais estava lá?
     — Bom a Gisele e o Pedro estavam viajando na noite do crime. Faltou o Victor.
     — Tenha um pouco de paciência e me fale dele.
     — Esse sujeito é muito misterioso. Eu particularmente morro de medo dele.
     — E por quê?
     — Eu acho que está envolvido com o crime. Para mim ele é assaltante, traficante ou sei lá o que. Apenas sei que coisa boa
não é. De repente ele pára ai na porta com um carro importado, usa roupas caras e relógios de ouro. Depois fica como um
Judas, mal vestido, sem carro, e até barba por fazer. Existe algum lance na vida dele que eu não entendo.
     — E a vítima.
     — Victor não pára muito aqui na pensão. Acho que ele só vem aqui quando está por baixo. Duvido que os dois se
falassem.
 

                        -  XII -

     Na Noite do Crime  -   3:45 hs

     Victor tivera uma infância de extrema miséria. Filho de mãe solteira, conheceu de perto a fome e a humilhação. Apesar de
tudo não pedia na rua. Sua mãe lavava roupa para fora e conseguia manter um barraco na Favela. Nunca teve brinquedos para
brincar e muito menos televisão. Sua vida era um inferno. Quando tinha doze anos sua mãe adoeceu e faleceu de câncer. Victor

foi para um orfanato, mas fugiu logo em seguida. Começou a sobreviver com pequenos assaltos até conhecer um homem
chamado Heitor. Este o apresentou ao mundo do crime organizado. Victor ganhava muito dinheiro mas tinha um grande
problema: era jogador de cartas e péssimo jogador por sinal. Perdia tudo que tinha em questão de horas.

     Victor gostava da pensão porque era um lugar seguro, onde ninguém podia atrapalhá-lo. Apesar de alguns serem um pouco
curiosos, não haviam perguntas.

     Naquela noite Victor perdera tudo que tinha mais uma vez. Abriu a porta da sala e deu de cara com Silvia.

     — O que você esta fazendo aqui. Disse Victor.
     — Parece que ninguém quer ver a minha cara hoje. Acho que já briguei com todos aqui hoje.
     — Meu dia foi péssimo também. Perdi tudo que eu tinha no jogo.
     — Nossa, eu nem sabia que você jogava.
     — Meu ponto fraco é esse.
     — Você tem cocaína ai?
     — Tenho.
     — O que você acha da gente fazer uma festinha.
     — Ótima idéia.

     Ele pegou um papelote no bolso e esticou quatro carreiras na mesa. Ele aspirou duas e ela duas.

     — Isso é muito bom. Me sinto bem melhor.
     — Vem cá vem.

     Os dois se abraçaram e beijaram-se com uma certa volúpia.

     — Ponha mais uma carreira para mim. Disse Silvia
     — Acho melhor não abusar.
     — Me dá aqui.

     Ela puxou o papelote da mão dele e jogou tudo sobre a mesa, aspirando aquilo com voracidade.

     — Sua louca você vai acabar se matando!
 

                         -  XII -

     Foram 5 dias de exaustivos depoimentos. O delegado Jonas estava cansado de colocar todos contra a parede. As
respostas eram sempre evasivas e ninguém confirmava ter mantido contato com a vitima naquela noite. Até que tomou uma
decisão, faria uma reunião reunido todos os suspeitos.

     Quando conseguiu reunir todos os suspeitos na sala da pensão, ele começou a falar :

     — Todos nós temos motivos  para deixamos de ser pacatos  e da  noite para o dia nos transformarmos em verdadeiros
assassinos.  Homens e mulheres sem alma que num momento de privação dos sentidos  matam facilmente sem medir qualquer
conseqüência. O que houve aqui foi um ato assim. Tenho certeza que não foi premeditado. Naquela noite Silvia fez algo para
um de vocês que o levou a cometer este crime. A justiça nestes casos costuma ser mais benevolente. Tenho certeza que hoje
vamos sair daqui com a resposta desta incógnita.

     Todos se entreolhavam e um silencio profundo se instalou no ar.
     — Acho que se a pessoa falar podemos chegar a um consenso.

     Raquel começou a chorar de repente e todos a olharam com um certo espanto.

     O Delegado se aproximou dela e disse:
     — Se você quer falar, o momento é esse.

     Eu ainda vejo naquela noite o horror nos olhos dela. Mas eu não a matei, ela já estava morta. Eu desci as escadas aquela
noite pois não conseguia dormir por causa da discussão que eu tive com ela. Eu trazia comigo minha caixa de costura. Foi
quando eu a vi. Ela estava sentada no sofá de costas para mim. Eu não sei o que deu em mim. Peguei uma agulha da minha
caixa e segurei sua cabeça fincando a agulha na sua boca. Ela não fez nada. Nenhum grito, nada. Quando eu me pus a sua
frente vi seus olhos esbugalhados e sua blusa toda ensangüentada, ela estava morta. Fiquei apavorada. Sai dali correndo e me
tranquei no quarto. Mas eu juro, ela já estava morta quando a encontrei.

     — E porque a senhora não chamou a policia?
     — Eu tive medo.

     — Muito bem, alguém chegou antes de Dona Raquel. Esse alguém teve um tipo de contato físico com a vítima antes dela
morrer. Ela tinha sua blusa rasgada levemente. Na minha opinião esta pessoa queria Silvia nem que fosse a força. Mas Silvia
resistiu e para essa pessoa não sobrou nenhuma alternativa senão matá-la. A única coisa que não se encaixava nesta história
era a agulha.  Para mim isso não combinava com a personalidade dessa pessoa. Acho que agora as coisas começaram a ficar
claras.

     Dona Josefa me contou  uma coisa muito interessante. O assassino gosta muito de laranja, pois a faca que sumiu da cozinha,
provavelmente foi a usada para perfurar a vitima. Alguém estava na cozinha quando a vitima desceu as escadas e foi nesse
momento que a abordou.

     A tensão aumentava cada vez mais na sala. Todos se entre olhavam.

     — Dona Josefa, me diga quem gosta de chupar laranjas durante a noite.
     Antes que Dona Josefa dissesse qualquer palavra, Ronaldo se antecipou:

     — Eu chupei laranjas aquela noite mas nunca a mataria. Ela era tudo para mim aqui dentro. Ela era a única coisa boa deste
lugar, apesar de me ignorar. Eu sei lá, devo ter deixado  a faca sobre a mesa  mas  jamais eu a mataria. Hoje eu sou um homem
muito mais triste. Duvido que alguém  tenha sofrido tanto com a morte dela com eu.

     As lágrimas escorriam de seus olhos e o delegado começou a ficar irritado.

     — Muito bem, existe mais um detalhe que acho que finalmente nos levará ao assassino. Se Silvia não morresse com as
facadas, com certeza ela teria morrido de overdose. Foi encontrado no seu sangue um alto teor de cocaína. Não é mesmo
senhor Victor.

     Nervosamente ele começou a gaguejar:

     — Eu não tenho culpa, ela tomou o papelote de minha mão e esparramou na mesa, aspirando aquilo como uma maluca. Eu
disse a ela para não exagerar mas ela não me ouviu.

     — O que aconteceu depois?
     — Ela ficou estranha, chorava e ria ao mesmo tempo. De repente ficou com uma certa dificuldade para respirar. Fiquei com
medo, achei que aquilo era roubada. Sai correndo dali e a deixei. Não sei o que aconteceu depois.

     O Delegado Jonas tinha voltado a estaca zero. Quando resolveu arriscar:

     — Nossos peritos constataram uma coisa que eu acho que esclarece definitivamente este caso. A pessoa que esfaqueou
Silvia sabia exatamente onde perfurar a vítima. As perfurações foram certeiras. Direto no coração, só um pessoa com
conhecimentos médicos, teria dado golpes com tanta precisão.

     Rubens imediatamente tentou fugir mas foi detido por dois policiais.

     — Eu não queria, juro que não queria, ela me obrigou.
     — Conte como você a matou.
     — Eram umas 4:00 hs da manhã quando eu desci para tomar água. Silvia estava na sala, ela estava muito estranha, louca
mesmo. Quando me viu foi logo me agarrando. Eu fui para a cozinha e ela me seguiu. Dizia coisas para me irritar e conseguiu.
Eu fiquei possesso com ela. Ela não me largava, de repente eu peguei a faca que estava sobre a mesa e a esfaqueei duas vezes
no peito. Ela me olhou com horror nos olhos. Eu fiquei apavorado. Arrastei seu corpo até a sala e a sentei no sofá. Sai da
pensão com aquela faca horrorosa e a joguei no primeiro rio que encontrei. Mas eu não queria, não queria...

    — Podem levá-lo.
     Dona Josefa se aproximou do Delegado Jonas e perguntou?

     — Como o senhor sabia que era ele?
     — Simples, ele era a única pessoa de bem com a vida dessa história.

                                        Cleide Souza Lemos
 

 

 
 

« Voltar