A REDUÇÃO

   Através da persiana penetrava uma luz filtrada, nostálgica como uma segunda feira, quebrando o breu monótono da noite cansada. No ar, uma vaga azeda pairava lenta, que vinda dos suores moribundos exalados durante a noite, não opunha resistência à luz baça que a trespassava, invadindo até mesmo o leito oposto à janela, quando o quarto ainda dormitava.
   Lázaro, sentado na cama, tomava sem pressa, nem vontade seu desjejum. Um café-da-manhã sem café! — pensava com a resignação tomando conta de si. Num último sorvo de laranjada e num último hausto de vitalidade, largou o copo por sobre o aparador. Parecia amanhecida, azeda como a onda gordurosa que vagava no espaço mesquinho da alcova. Amarela, intensamente amarela, amarela como a luz filtrada que vinha de fora. Ácida, precisamente igual à urina envolta num saco, proveniente da sonda de seu colega de quarto.
   A sonda era como um grande e comprido carrapato translúcido que bebe mijo. Ele também bebera mijo — considerava Lázaro quando percebeu que sua perna coberta por um lençol umedecido de um pegajoso suor, que grudando-se à sua perna, dava-lhe um contorno grotesco de coisa deformada. Poderia quase sentir uma leve calidez naquela amarelada bola de massa. A luz do sol também lhe envolvia a perna..., um corpo grosso e molengo, estranho ao seu próprio corpo, nada além de um inútil prolongamento. Dir-se-ia um flagelo morto, saído de um aquecido pedaço de carne, tomando para si o calor próprio do outro corpo. Sua perna era também um longo carrapato, não bebia, porém retirava o calor do ambiente.
   Lázaro mirava o membro morto como se esperasse pela ressurreição. Preferia dores à idéia de invalidez. Seu vizinho de leito, insistentemente sugado pela sonda, sentia dores. Tirar-lhe-iam o rim doente, com certeza, mas a Lázaro tirariam a perna. Havia ainda uma derradeira chance, se o sangue voltasse a correr, se as artérias e veias se desobstruíssem.
   Sentiu-se movido por uma indulgência plena que o libertava de todas as regras morais. Era agora divino. Libertava-se de sua entidade moral que o prendia à mortalidade. A perna era sim um par de asas ruflando rumo ao alto, acima dos homens, próximo a Deus, era agora o mais novo demiurgo. Magnífico aleijado a quem todos respeitariam e reverenciariam.
 
 
 

   Lázaro conquistara a eternidade, todos seriam seus servos, todos, por motivo da piedade que sentiriam, permitir-lhe-iam  imperar livremente sobre seu pequeno mundo. Nada fariam que ele não quisesse ou não permitisse. Ninguém se atreveria a desapontar um aleijado que sofresse diante da humanidade inteira. Por quê razão um aleijado mendiga senão para alcançar a piedade? Por quê motivo um aleijado se sente segregado? Porque pretende imperar livremente com o setro da compaixão - pensava.
   Mais uma vez volveu o olhar ao carrapato que de dentro do saco agora o ameaçava. Contemplou o seu companheiro, retorcendo-se no leito, parecia um verme energicamente aguilhoado por formigas, contudo, aguilhoavam-lhe as dores renais. As dores do outro era o que ameaçava a Lázaro. Ele desejava ter dores em lugar ter a perna cortada. Mas não, nada de dores tudo era tédio, a perna, o quarto... Lázaro então sorriu um sorriso áspero, quisera urinar, ali bem perto, ou melhor, urinar sobre aquele homem que podia andar, mas mijar, isso ele não podia. Era o desejo de vingança, sem o requinte que lhe é  próprio. Era o desejo de vingança tomando conta de si. Era o desejo de vingança que lhe esgotava as forças. Mais uma vez o carrapato o ameaçava. "Eu me vingo mijando!" - Pensou com angustiosa autopiedade.
   O carrapato sugava lentamente a urina de dentro do infeliz companheiro de Lázaro. Enquanto gota a gota a urina o enchia a bolsa, a perna de Lázaro inchava. Seria menor o sofrimento se sentisse dores, estas o fariam esquecer a perda da perna, melhor, o fariam desejar não tê-la.
   A sensação de abandono, a noite mal dormida, a ansiedade anteoperatória fizeram com que um cansaço arrebatador e mole de tarde de verão tomasse conta de seu corpo. Sentia-se viscoso como papel-pega-moscas. Cerrou os olhos desejando dormir a espera do médico. Desejara intensamente o esquecimento. Desejara dormir e não mais acordar. Dormiu.
   O quarto continuava com o peso da nuvem rançosa e com o cheiro agreste da urina. Fora o sol já ia alto, dentro, plácido e morno, agitando lentamente a bruma amarela. Perfilados, três leitos, ocupados, dois. A seção cirúrgica do hospital em meio ao sonho surdinava lento aos ouvidos de Lázaro o mal presságio. A perna, cortá-la-iam!
 
 
 
 
 

   Lázaro agora não percebia o quarto, ressonava envolto numa escuridão inexplicável, palidamente cinzenta porém nítida. Dormiu e teve a certeza de ser encontrado pelo médico. Acordou na dúvida do que lhe acontecia. Removiam-no do leito como a uma rês abatida e incômoda. Levam-no para fora do quarto sobre uma cama com rodas incontinenti. Fora, no corredor, rodopios e após, uma sinistra e inexprimível corrida de luzes em sentido contrário ao que trafegava,  lá no teto, todavia a impressão que davam era de percorrerem distâncias infinitas num sonho mudo, lá em baixo nas profundezas de seu ser, rapidamente perfazendo o périplo de seus dias naquele hospital. Dentro em pouco sofreou a corrida, uma única lâmpada parava sobre si, grande e redonda, uma lua obscura em meio à noite tumultuosa.
   Já numa outra sala, mãos fortes subpostas a bocas caladas por máscaras hospitalares lhe retiravam as roupas, remexendo-o da maca para a mesa de cirurgia, sistemática e inautorizadamente. Compreendia então. A perna, cortá-la-iam. Não havia mais solução. Atônito, sentiu uma aguilhoada em seu corpo, fazendo com que caísse num torpor feérico e aflitivo, como que deixando cair sobre si um pesado manto carmim. Adormeceu. Desta vez pesada e sem consciência ou certeza alguma. Acompanhava-o uma única sensação, grave e certa, a de que estivera num tribunal de inquisição, cujos objetos de tortura, enfileirados como aparatos para um ritual mórbido, deram-lhe sentir calafrios, por todo o corpo, pode até mesmo sentir o sangue embotado em sua perna.
   Como que milagrosamente houvesse passado breves instantes, Lázaro a pouco e pouco retomava consciência. Sutil e frouxa, a princípio, como a vaga amarela que até então pairava no ar. Posteriormente pôde perceber indistintas vozes zunindo ao seu ouvido, como insetos distantes. Abriu os olhos e a claridade entrou vagarosamente em seu ser. Sentia-se mal, revirado por dentro. Aos poucos, a visão periférica, que até então não diferia da neblina amarela, voltava. As vozes passaram a ser ouvidas e distinguidas, eram enfermeiras e arrumadeiras. O quarto era o mesmo e cada canto reconhecido, o leito vago `a sua  esquerda, e à sua direita viu somente o saco com urina. Seu companheiro também fora para o abate — pensava com grande tédio e melancolia. O rim, tirar-lhe-iam.
   Foi quando sentiu uma leve e aguda pontada na região lombar, percebeu que seu companheiro retornava ao quarto, coitado desacordado. Lázaro em meio ao completo desespero. Tudo em sua volta era confusão e medo.
 
 
 
 

    Tentou gritar, não conseguiu, a dor era intensa a pontada não se abreviara, tudo era-lhe confuso. Reduzido à invalidez. Seu companheiro, o que acontecera? Onde estaria o outro? Aquela sonda! maldito carrapato que bebe mijo, agora saia dele também! Estava sendo sugado pela sonda, como era possível? E pior, a perna, a grande bola amarela de massa, ainda estava lá, no mesmo lugar, não na haviam cortado. Deus! Arrancaram-me um rim! — bradou colérico
   Súbito suas queixas angustiosas sofrearam, como que enrijecido e pasmado extinguiu com sua revolta. Estava completamente atônito. Seu pobre companheiro de quarto adentrava a alcova. Inerte, sobre a cama com rodas, reduzido à mesma condição que a sua, muito embora fosse precisamente o reverso naquele momento. Ainda com o rim doente e sem uma perna. A redução fora total.


Santiago da Silveira
 

 

 
 

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