Ele estava se sentindo péssimo
nesta semana. Continuou nas semanas subseqüentes e resolveu procurar
um médico. Certamente que não tentaria algo legal e foi ter
com um amigo. Um velho companheiro dos tempos de ensino médio agora
no quinto ano de medicina. O amigo deu-lhe um pequeno frasco que disse
conter nove comprimidos calmantes mas que só três seriam necessários.
Um por noite. Prometeu que ao final da terceira noite o amigo estaria normal
novamente.
Ele foi pra casa contente na sua
esperança renovada. Poderia dormir esta noite. Jantou normalmente
à exceção da adição do comprimido e
conversou com os companheiros de apartamento após o jantar para
após jogar o truco e por volta das onze horas já tinha sono
em efeito do remédio. Despediu-se dos amigos e recolheu-se a seu
quarto. Já não sentia mais sono mas um torpor tomando-lhe
conta do corpo. Mal deitou adormeceu profundamente.
Durante a noite acordou sem sono
novamente. Se irritou com o fato. Porém logo sentiu a energia renovada
que lhe possuía o peito. Estava alerta e disposto. Bem diferente
dos outros dias de insônia. Resolveu sair. Vestiu a calça
preta que se escondia atrás da porta mais a blusa de lã de
ovelha negra e o par de tênis também pretos do fundo do armário.
Desfez-se da porta e partiu para
a noite repleta de cheiros sabores e ruídos que ele podia ver agora
com maior intensidade. Podia sentir dentro de si todos os sons desde o
burburinho das tubulações de esgoto à miniatura da
batalha dos ratos por comida e das asas dos morcegos deslocando o vento
gelado à vigília de uma coruja e o sono assustado dos pombos.
Sentia as suas duas pernas martelando dentro do peito: “tum, tum” “tum,
tum”; passadas curtas e firmes aqui na próxima esquina mais longas
e um quarteirão depois puladas. Corria já. Em velocidade
maior do que jamais acreditara ser capaz dobrava esquinas percorria ruas
e atravessava avenidas sem pensar. Sentia. Nesta contínua incursão
noturna em pouco tempo era parte da cidade e dos seus prédios e
seu concreto. Era um só. E encontrou depois da curva companhia.
Ela era bela. Pele tão
alva que seu rosto pareceria uma estrela em meio à cabeleira negra
recortada por velozes fachos vermelhos não fosse a vermelhidão
profunda de seus dois lábios cheios de curvas como também
o corpo dela o era. Vestia-se em preto.
Estava correndo como ele que passou
a acompanhá-la. Sem contemplá-la sentia sua feminilidade
tão próxima e a beleza tão presente quanto a sua própria.
Dobraram juntos esquinas e percorreram
juntos ruas e atravessaram juntos avenidas. Procuravam algo. Quando a base
do céu tornou-se avermelhada encontraram. O homem arregaçava
as portas de seu estabelecimento e em total comunhão o casal precipitou-se
e o agarrou arrancando-lhe violentamente as roupas. Nu e assustado o homem
foi vorazmente degolado com unhas e dentes e cruelmente mastigado. O casal
de corredores em negro se unia agora no prazer carnal por parte de um terceiro
ente. Arrancaram suas vísceras e as mastigaram para saciar sua fome
e dividiram seu coração para saciar suas almas. Amaram aquele
homem e se amaram na fúria dessa alimentação ao mesmo
tempo espiritual e terrena. Quando já não sobrava mais homem
o sol tentou ver o que fazia o casal porém não os encontrou
mais na cena do crime. Voltaram separados para onde têm de voltar.
Rápidos que foram não puderam ser vistos pelos primeiros
habitantes da luz.
Ele acordou com um gosto estranho
na boca porém bem disposto. Sendo sábado foi até a
casa da namorada acordá-la. Há dois anos que ele a acordava
no sábado e sempre faziam amor depois do café. A seguir se
encontravam com os amigos no parque da cidade para banhos de sol com sanduíches
de atum e jogar o truco.
Jantou na casa da namorada com
os pais dela. Comeram lasanha. Ele explicou o motivo do comprimido que
tomava e puseram um filme no videocassete. Eram dez horas e ele reclamou
o próprio sono sem precisar se preocupar por estar longe de casa
já que dormiria com a namorada esta noite. Não fez amor com
ela para adormecer direto.
Acordou novamente à madrugada.
Já esperava e vibrou em júbilo do renovado vigor físico.
A casa da namorada era mais fácil e a malha flexível que
usava sobre as pernas lhe permitiu usar toda a mobilidade dessas pernas
e pular a reduzida janela dobrando-se sobre si mesmo. Pôs-se imediatamente
a correr já familiarizado com a noite que lhe parecia a mesma com
apenas uma única diferença que estava nele mesmo: aprendera
a sua companheira na noite anterior e podia agora sentir seu cheiro e ouví-la
respirar o mesmo oxigênio noturno que ele. Bem próxima encontrou-a
e partiram juntos à caça declarada na madrugada fértil
de almas moribundas como aquela que cambaleava àlguns quilômetros
a frente da extensa rodovia. O casal transpôs tal distância
numa velocidade verdejante inenarrável somente comparável
à variedade de tons de verde que há em suas roupas. Desprovidos
do pudor dos bem alimentados o casal veloz que trajava verde avançou
sobre a presa que não conseguiu perceber a própria morte
antes de dentes alheios cravarem-se-lhe à espinha e abdômen
ao mesmo tempo. Seu grito de horror foi abafado por um beijo de morte que
lhe tirou dos pulmões o último suspiro e morreu. Foi insanamente
deglutido e apreciado em sua carne alcoolizada pelas duas criaturas com
formas humanas que se embebiam da sua vida. Mais uma vez dividiram as vísceras
da caça para saciar sua fome e o coração para saciar
suas almas.
No entanto sua sede era ainda
maior e a comunhão na carne de outro não bastara. Despindo-se
com unhas e dentes rasgando roupas de cima e de baixo se amaram ali mesmo
no frio da madrugada aquecendo-se com o sangue que jazia como seu leito.
Se fundiram num único ser esfomeado e devoraram-se mutuamente explorando
os prazeres infinitos de seus sexos ardentes e cúmplices. Ao final
da madrugada misturaram seus fluidos e o próprio sangue ao sangue
daquele que lhes servira de refeição energética para
o gozo que alcançaram compensando assim sua morte e refazendo a
vida nos gritos e arranhões de carnes vivas tremendo velozmente.
Suados e mesmo pelados não permitiram ao sol o deleite de conhecer-lhes
as formas e depressa se despacharam ambos para qualquer lugar que o outro
não conhecia.
Pela manhã acordando nos
braços da namorada agiu estranho correndo para o banheiro e trancando
a porta sem nem mesmo dar-lhe um beijo. Felizmente para ele as cicatrizes
de poucas horas atrás não mais existiam e poderia voltar
tranqüilo e nu para os braços da amada que ainda possuía
o ar de curiosidade de momentos atrás mas que foi desfeito por um
beijo e uma repentina indisposição estomacal que também
era verdade. Sentia os intestinos em brasa e o púbis relaxado e
moroso que acompanhados pelo sabor que não era mais estranho à
boca comprovavam fisicamente sua aventura noturna. Seu corpo estava como
se lembrava ao disparar para a cama em que adormeceu exceto as cicatrizes
que foram embora em prova de sua nova vida e suas novas habilidades. Estava
radiante. Fez amor com sua parceira diurna de um modo nunca antes experimentado
pelo casal que a fez estremecer e jorrar gemidos extasiados na efusão
dos corpos em cima da cama. Ela estranhou e admirou a voluptuosidade repentina
do amante e estudando o passado recente associou as pílulas do namorado
à sexualidade exacerbada que ele agora exibia.
Após esta pequena aventura
matinal que nada era comparada à sua noite fizeram a pequena refeição
de todas as manhãs de domingo e tomaram o rumo da igreja que freqüentavam
juntos para o culto de uma hora de preleções e avisos e também
elogios aos jovens. Em nenhum momento ele pensou na noite que teve e entregou-se
aos cânticos religiosos com igual fulgor e intensidade que causou
espanto nos amigos em volta.
Jogaram o truco a tarde toda e
em altos brados ele exprimia toda a vida que continha dentro de si. Jantaram
juntos em frente à televisão e ele foi lembrado do remédio
que estava-lhe fazendo tão bem pelos amigos. Pouco tempo depois
do jantar já tinha o sono que os amigos esperavam depois de tanta
agitação diurna. Mal sabiam eles que ainda havia mais por
vir durante a noite longe de sua companhia. Foi dormir nu.
Acordou já bem desperto
ao lado da namorada que dormia sem ele a seu lado. Levantou-se sem interesse
em roupas e pulou a mesma janela da última noite da mesma maneira
e fez-se da rua e da cidade. Sua companheira já o esperava correndo
na mesma calçada e juntos se fizeram de concreto e asfalto negro.
Também estava nua.
Partiram ainda mais rápido
que nas noites anteriores os dois vultos brancos contrastando à
madrugada negra. A longa distância que percorreram não foi
mais que centésimos de segundo e já se lançavam juntos
à caça sem espreita de outro casal da madrugada. O homem
nada viu e a moça emitiu um quase sibilo confundível com
os morcegos voando acima. Devoraram o casal em poucos minutos tendo desta
vez dois corações e o dobro de vísceras e dois órgãos
sexuais diferentes iguais aos seus. Mastigaram tudo pintando seu corpo
esbranquiçado e frio com o calor vermelho que jorrava dos corpos
agora disformes. Com tanto teriam saciado toda a sua vontade carnal mas
queriam mais e abraçaram-se sem ter roupas para retirar. Com unhas
e dentes rasgavam e arrancavam a pele um do outro mordendo-se na mistura
máxima do prazer com a dor sentindo cada unhada e cada dente cravado
como uma explosão dentro de si que os levaria juntos ao orgasmo
fatal. Comiam-se e chupavam-se dividindo o mesmo sangue que era sangue
de outros vítimas das noites anteriores. Se beijavam mastigando
um a língua do outro e a boca do outro terminando numa gigantesca
explosão de gozo saciando-os por completo a carne e o espírito.
Caíram mortos devorados por sua própria fome e amor.
Pela manhã a namorada acordou
estranhando não ter sido acordada e chamou o namorado na tentativa
de tirá-lo do sono em que se encontrava. Vã tentativa. Chegando
próxima a seu rosto sentiu falta de sua respiração
e tomou de seu pulso a notícia de sua morte. Em desespero pôs-se
a gritar para trazer os pais mais sensatos à cena para que pudessem
constatar realmente sua morte e convocar uma ambulância ao local.
No hospital a família da
namorada e os amigos aguardavam o doutor que chegava com a notícia:
parada cardíaca.
Poucos dias se passaram e um laudo de autópsia foi apresentado à família do rapaz. Com a ajuda da namorada que entregara aos médicos o frasco que ele esteve tomando nos três últimos dias de sua vida os doutores puderam descobrir que ele morrera em overdose de um tóxico.
Stefano Aguiar