CORPORCO

Matar a cobra sem mostrar o pau, nem que eu queira vai ser possível. Está tudo lá, no mesmo lugar onde viveram os personagens desta história, hoje falecidos, e onde se deu o fato: a casa, abandonada com os móveis dentro, o roçado – agora mato alto – o pequeno cercado que um dia foi um galinheiro e, principalmente, o chiqueiro, onde as ossadas apodreceram durante muito tempo. Quem quiser provas é só ir até a aldeia. Chama-se Jeicó e fica no município de Caçuaçu. Viagem cansativa, reconheço. É trem, carroça e muito lombo de burro. E lá, só os muito velhos é que poderão falar com detalhes sobre o ocorrido, que já vai pra mais de cinqüenta anos. Indagando aqui e ali vai ouvir o mesmo relato que eu ouvi e que conto a seguir.

Tudo começou quando Pai Turibo, ancião de Jeicó, pai de sete filhos, cinco deles nascidos mortos de mal desconhecido, deu de virar criança de novo e de recusar comida. No princípio foi fácil pra Mãe Arminda obrigar o velho a comer. No que ele começava a revirar os olhos e a choramingar que nem menino tenro, Mãe Arminda pegava o prato e ameaçava levar pros porcos. O golpe nunca falhava. Ouvindo falar nos bichos, Paizinho parava a manha e comia tudo. Com o tempo, porém, Mãe Arminda resolveu suspender a ameaça, pois os porcos já estavam deixando Turibo meio pro desvairado. Primeiro, foi um pesadelo que o velho teve, quando alta madrugada acordou a casa toda, pedindo socorro e gritando que os bichos estavam invadindo o quarto e querendo devorá-lo. Foi preciso o filho Jonas pra conter o velho, que suava por onde podia enquanto berrava em desespero. Foi acalmado com compressa fria na testa e chá de talo de alface. Noutro dia foi Catarina que pegou o pai no chiqueiro, ameaçando os porcos com uma vara. Tinha feito as necessidades no comedouro dos animais pra se vingar deles, que queriam sua comida. Pois que comessem seu cocô, explicou pra filha.

Depois disso, Catarina pediu à mãe que não falasse mais nos porcos na hora da comida de Pai Turibo. Se ele não quisesse comer que o deixasse em paz, quando tivesse fome ele mesmo ia pedir comida (que nada mais era que um pirão, devido à falta de dentes do velho). Assim Mãe fez e durante algum tempo os bichos foram esquecidos naquela casa. Menos por Turibo, porque então já era tarde demais. Paizinho já não podia deixar de pensar nem de falar nos porcos, e sempre como uma ameaça nos seus delírios. Naquela existência de quase um século, os porcos passaram a ocupar lugar de importância. No pirão, ficou sem tocar, em quarenta e oito horas de jejum. Mandava Mãe Arminda levar pros porcos antes que eles entrassem em casa para tirar dele. Só bebia água, que bochechava muitas vezes antes de engolir. Assim que Mãe Arminda percebeu que o jejum de Paizinho não estava com jeito de regredir, pediu a Catarina que substituísse Jonas no roçado e este foi em lombo de burro até a aldeia mais próxima chamar Nozim, o curandeiro.

Primeiro foi um exame nos olhos de Pai Turibo. Em seguida, apalpou o ventre e as costas do velho, sentiu-lhe o cheiro do corpo e por fim deixou umas folhas e duas mudas pra Mãe Arminda fazer chá, recomendando-lhe que o oferecesse a Turibo como se fosse água. Foi com Jonas até o chiqueiro, espalhou  gotas de um líquido roxo nos porcos e recomendou que, se o medo continuasse, o jeito era matar um deles e levar pro velho, que talvez se sentisse mais calmo vendo o animal inerte e inofensivo. Quanto ao jejum, garantiu que com os chás o apetite voltaria aos poucos.  Foi embora, levando muda de arruda e duas galinhas em pagamento. (O feiticeiro pedira quatro aves, mas Mãe Arminda teimou que do seu galinheiro só saíam duas).

Os chás foram preparados conforme recomendação de Nozim, e Pai Turibo ia tomando feito água. Ainda falava nos porcos, mas lá pelo terceiro dia pediu comida. Devorou todo o pirão, sem manha nem medo, como se sentisse pela primeira vez o sabor da papa. Passou a comer três vezes por dia, e vez por outra ainda acordava no meio da noite pedindo comida. Em duas semanas, Pai Turibo já tinha o rosto mais redondo, mas a fome aumentava dia a dia. Mãe Arminda quis suspender os chás, mas Paizinho já tinha se acostumado a eles, pedia sempre “a água marrom” na hora da sede. Já não falava nos porcos com o medo de antes e algumas vezes chegou a pedir para ir até o chiqueiro. Ia com Catarina, que mais de uma vez notou que o pai soltava uma risada rouca enquanto olhava fascinado para os porcos. Preocupada, pediu a Jonas que trouxesse Nozim de volta pra explicar o comportamento de Paizinho e dar jeito naquela fome voraz. Assim Jonas fez, mas ao ver o feiticeiro, Paizinho começou a berrar que não queria vê-lo e acabou expulsando-o de casa. O curandeiro se retirou levando mais duas galinhas, desta vez pelo tempo perdido e a viagem inútil. (Nesse dia Mãe Arminda achou melhor não barganhar, com medo de que, ofendido, o homem fizesse algum feitiço contra eles). E nunca mais Nozim voltou.

Ao cabo de algumas semanas, Pai Turibo estava quase irreconhecível. Gordo, inchado, comendo de hora em hora e sempre pedindo mais chá. Passava quase todo o dia numa cadeira larga que quase não lhe suportava mais o peso. Dali só saía para a cama, ajudado por Mãe Arminda e Catarina. O banho consistia num pano molhado que um dia ou outro Paizinho as deixava passar-lhe no corpo. As necessidades, cada vez mais volumosas, fazia ali mesmo, também auxiliado pelas mulheres. Com o tempo, praticamente não falava mais, a não ser na hora de pedir comida ou chá, o que fazia com um estranho som que mais se assemelhava a um grunhido. Seu corpo chegou a um tal tamanho, que só com a ajuda de Jonas, de volta do roçado,  é que mãe e filha conseguiam carregá-lo para a cama, que rangia sob seu peso descomunal. Passou a dormir sozinho, o corpo ocupando mais da metade da cama, com Mãe Arminda a seu lado, no chão. Daí em diante não saía mais do quarto, recostado na cama, a boca meio aberta, grunhindo para pedir pirão.

Uma noite, quase de madrugada, quando Mãe Arminda , mais uma vez em tantos meses, se levantou para ir à cozinha preparar a comida de Turibo, estranhou de não ver seu vulto avantajado na cama. Procurou-o pela casa e, não o encontrando, correu a acordar os filhos e juntos saíram à sua procura. Horta,  galinheiro, roçado, nem sinal do velho. De repente, atraídos por um barulho vindo dos fundos da casa, um único pensamento tomou conta dos três ao mesmo tempo. Correram ao chiqueiro, mas a escuridão os impedia de ver qualquer coisa. Apenas ouviram os porcos grunhindo desesperadamente, como se algo de anormal estivesse acontecendo ali. Na mesma hora, Mãe Arminda e Catarina ficaram como que estateladas. Jonas se aproximou do chiqueiro, esperando que os olhos se acostumassem à escuridão. E, então, pôde ver. Misturado aos porcos, o corpanzil chafurdando na lama, os grunhidos se confundindo com os dos animais, lá estava Pai Turibo, uma criança brincando satisfeita.

* * *

Nunca ninguém soube quanto tempo Pai Turibo viveu dessa maneira, pois sobre o final da história são muitas as  versões contadas pelos habitantes de Jeicó. Uma delas, de que naquela mesma noite em que Paizinho foi encontrado no chiqueiro, o filho Jonas emudeceu para sempre e Catarina ensandeceu. Só Mãe Arminda ficou na mesma. Continuou sua rotina de alimentar Paizinho, levando comida pro velho e pros porcos no chiqueiro, o que fez até o final de seus dias. Outra diz que, devido à idade avançada de Mãe Arminda quando o fato se deu, não se pode dar crédito ao que ela contou sobre o ocorrido. Alguns até acreditam que Pai Turibo nunca esteve no chiqueiro, morreu de velho e de gordura em cima da cama. Mas durante muitos anos lá ficaram o silêncio de Jonas e a doidice de Catarina. E o que ninguém pode negar é a existência até hoje de uma ossada humana, meio apodrecida, no chiqueiro da casa abandonada.

Ana Flor

Do livro: "Corporco e outros contos", Blocos, 2003, RJ
 

« Voltar