Aprontou tudo cedo demais, tudo bem devagar mas com muita antecedência. Organização impecável, os detalhes, os temperos, aromas. Tudo combinando na mais perfeita harmonia. Calorias reduzidas, atenção redobrada ao Yin-Yang de cada prato, da entrada à sobremesa. As cores certas na combinação das saladas. Afinal tudo tem o seu porquê na cadeia alimentar. Ao se falar das energias mais sutis aí sim! Aí o cuidado tem de ser maior. Equilibrar tudo conforme manda o figurino, consultar antiga literatuda para comprovar as misturas dos legumes, frutas, verduras. E, considerando nossa contemporaneidade, incluir também ovos e os derivados de leite. Afinal de contas, ela não era assim tão radical. Breve passeio pela macrobiótica na juventude lhe trouxe, depois de tantos anos, essa idéia maluca de comida saudável para aquela noite especial.
No mergulho juvenil, também resgatou os discos. Um Kitaro meio arranhado, uma raridade dos Beatles cantando mantras dentro de um mosteiro em Katmandu em 72, um conservadíssimo K7 com músicas indianas mandado por uma amiga quando peregrinava por aquelas bandas, naqueles tempos.... Colocou-os todos em ordem perto do toca-discos. Cada música teria seu tempo certo. Uma para a hora dos aperitivos, outra para a salada, outra para o prato principal e assim seguia o roteiro. Era perfeito. Por exemplo,.... MAHA SHIVA JAYA RAMA OM PADME MAHA....tudo a ver! Não existia música melhor no mundo para acompanhar a salada de aspargos que esta... MAHA SHIVA JAYA..
Não foi complicado escolher o incenso. Era por demais claro que Alecrim, Patchouly e Cravo, se queimados juntos, dariam conta de descarregar o ambiente, trazer felicidade, serenidade, prosperidade, confiabilidade, maturidade, sensibilidade.............. Perfeito! Alecrim, Patchouly e Cravo.
Roupa prateada. Sem comentários.... roupa prateada! Não tinha o que discutir. A ocasião era para roupa prateada e ponto.
Importantíssimo era o banho. Claro, o banho era tão importante como a prato principal, o incenso e a música (MAHA SHIVA JAYA RAMA OM PADME...). Alfavaca, azeite doce e raspa de chifre de carneiro. Para chegar á esta decisão, precisou meses de pesquisa, lua na casa adjacente de Urano, Pleades ascendendo Touro na quinta casa de Aquário..... essas coisas quânticas e metafísicas. Claro que o banho vinha acompanhado com um mantra secreto. E segredo é segredo, nem eu soube que tal de mantra era aquele. Sei que deveria ser poderosíssimo.
Bebidas. Não saberia descrever de que era aquele chá para ser servido após a salada verde. Um composto tão complicado de raízes, folhas e grãos que poderia ser até a fórmula secreta do elixir da longa vida dos alquimistas. Se era de longa vida ou não.. que era uma receita secreta alquimistas, sim, era! Tinha até continhas de somar, dividir, subtrair, percentagem, raiz quadrada para cada raiz, cada grão, cada folha. Foi complicado para entender.
Ela poupou meu trabalho anotando tudo isso. Bilhetes colados no banheiro com os detalhes do banho de ervas. Outros milhares pela cozinha, espalhados pela porta da geladeira, no armário, na janela, nas latas de mantimentos. A lista organizadíssima, com os tempos e intervalos cronometrados das músicas. A fórmula alquimista no quadrinho negro do corredor ao lado do console, na parede com o incensário e os frascos de essências. Tudo muito bem descrito e organizado, ponto a ponto. Cada detalhe com a maior clareza possível. Talvez muito melhor que um roteiro de cinema. Se bem que eu não entendo muito de roteiros de cinema. Penso ser assim tudo bem certinho, os textos, o que cada um tem de fazer, como vai fazer e etc. Deve ser assim! Entendo mesmo é de relatórios, autópsias, necropsias, provas, pistas e tudo isso.
DADOS PESSOAIS:
Silmara dos Santos Silva
Cor: parda
Olhos: castanhos
Nascimento: 04 de Março de 1954
Pai: -
Mãe: Dinéia Aparicida da Silva
Óbito: 01 de Janeiro de 2000
Causa da morte: - (*em estudo)
Relatório e descrição: mulher de 45 anos trajando
roupa cor de prata, encontrada morta em seu apartamento, onde vivia sozinha;
não foram localizados parentes próximos vivos.
Estava debruçada á mesa, posta para apenas uma pessoa,
supostamente uma ceia de Reveillon. Não foram encontrados vestígios
de drogas, venenos e semelhantes. Também nenhum indício de
homicídio, suicídio ou envenenamento. Não deixou nada
escrito, tampouco motivos. A autópsia não revelou nenhum
tipo de produto químico letal no organismo, rompimento de artérias
principais, estrangulamento ou danos externos e interno no corpo da vítima.
Foram encontrados vários escritos, receitas de cozinha, misturas
alimentícias, aromáticas e coisas do gênero. Nada que
possa ser considerado motivo ou pista para a morte.
Sem mais no momento, declaro para os devidos fins legais que esta é verdade:
Detetive Valdevino Gonçalves Lopes - N°175630, 04/01/2000.
..... quando arrombei a porta, ainda estava um disco arranhado tocando e repetindo a mesma palavra estranha: MAHA MAHA MAHA MAHA MAHA....
(penso que a gente pode morrer em dias alegres, tristes ou importantes. Que seja em grande estilo!)
Edir Martins