Há dias para comer e há dias para se execrar o alimento.
As compras estão ali. Prontas para guardar. Naúma revolta-se em dias de compras. Tem que guardar tudo aquilo, separar, e o pior, preparar o almoço. Porém hoje há um motivo especial para toda essa trabalheira. Deveria mais é erguer as mãos para os céus em agradecimento. Hoje será o dia de sua sacramentação.
Tudo guardado. Vamos ao peru. Especial. Matéria para o espírito
das nefelibatas, as escritoras convidadas para o almoço.
Prepara a vinha d’alho — segredo da tataravó, lógico,
atualmente nem as avós vão para o fogão — alho esmagado
no espremedor, vinho alemão, sal, especiarias, ervas finas. Cheirosos,
que cheiro bom, dizem da sala, o que aumenta a raiva de Naúma, todos
cheiram, ninguém ajuda.
Bem, pronta a vinha d’alhos. Agora a farofa fria: ervilhas, azeitonas, salsa, manjericão, misturados a bacon picadinho, milho verde e uma generosa porção de azeite extra-virgem. Em seguida uma bela porção de arroz com passas, e ao destino final — o peru.
Naúma abre com cuidado a embalagem. O plástico congelado adere ao alimento. Cuidadosamente corta as extremidades e aos poucos vai descobrindo o conteúdo. Que tem a forma de um feto. Os olhos surgem primeiro: pálpebras fechadas, roxas, um pequeno nariz, a boca em forma de ricto; o pequeno corpo enrodilhado; mãos, pequenos dedos,punho fechado; pernas minúsculas, pés, dedinhos frágeis. Naúma fraqueja, apoia-se na pia — é um feto! Meu Deus, como terá ido parar nos congelados do supermercado? Afasta o pensamento. Não é assunto para sua cabeça preocupada em agradar as colegas de ofício. Afinal está para integrar o quadro das Imortais.
Está cansada. Não voltará ao supermercado. Servirá aquele manjar que deuses ou demônios tramaram para desentulhar em sua pia. Desmembra com cuidado as asas de anjo, os pequenos braços frágeis, um papel manteiga riscado de pequenas veias azuladas,descola as pernas, como de rãsinhas, agarradinhas ao corpo de barriga desproporcional ao tamanho, abre o peito em bife, livra-o dos ossos, separa o coração em forma de morango e o fígado, minúsculos — irão para a farofa. Reserva os dedos dos pés e das mãos. Pensará num especial para eles. O pequeno membro embutido despreza. O espremedor da pia nem ruído faz para desintegrá-lo. Coloca o quitute na vinha d’alho.
Tem que colocar um tira-gosto na mesa para aguçar o apetite das intelectuais exigentes. Apesar de ter que contribuir com a mensalidade exagerada para os fundos da Instituição, nem acredita que a convidaram para integrar o grupo das notáveis.
Corta pelas falanges os dedinhos dos pés e das mãos do suposto peru, empana-os na farinha de rosca especial e doura-os na manteiga condimentada. Que odor! Falam da sala as convidadas. Naúma deposita o tira-gosto sobre a mesa lateral a ao se dirigir de volta à cozinha ouve o humm que delícia. . . Mas o comentário seguinte não a deixa à vontade: — Será que ela não é melhor na cozinha do que na literatura? Seria um elogio ou um insulto?
Naúma aquece o forno a cento e oitenta graus. A forma está preparada. Introduz o alimento no forno e espera o necessário: quarenta minutos.
As nefelibatas aquecem o corpo e o espírito. Que comida singular, dizem, você tem mãos de fada. Mas que cheiro delicioso, insistem os da casa!
Naúma agradece e serve-se da farofa, tendo o cuidado de evitar o coração e o fígado. Não dedica mais o seu pensamento ao quitute extraordinário. Apenas acompanha o apetite das senhoras famosas e observa que nada mais resta na travessa do assado.
O objetivo fora cumprido — o almoço um sucesso, a inscrição aprovada e o pitéu dissipado.
Nilza Amaral