Uma senhora, cheia de sacolas,
observou-o subir lentamente. De rosto fechado, muito sério, olhava
para os lados, para trás, como se precisasse registrar na mente
cada detalhe, cada passageiro, cada bolsa feminina. Antes de passar pela
catraca, o homem analisou com estrema sagacidade o corredor à sua
frente. Uma fração de segundo foi o bastante. Nenhum
policial. Parecia estar tudo perfeito, o horário certo, as pessoas
certas. Seriam vítimas fáceis, inclusive aquela senhora que
o observara e que agora, já pálida, tentava disfarçadamente
tirar o relógio de prata do braço. Isso ele podia ver pelo
canto do olho. Ela guardou o objeto no bolso, mas com a certeza absoluta
de não ter sido discreta o suficiente.
As luzes fracas que vinham dos
postes hipnotizavam os passageiros exaustos, quase todos voltando do trabalho,
ou da aula, cumprindo mais uma vez a rotina de cruzar a cidade, até
o subúrbio. E o negro sentou-se, sem maletas, sem cadernos.
Alguns não tiravam os olhos
dele, desconfiados. Já outras vezes haviam presenciado assaltos
em coletivos. Uma moça, sentada na primeira fileira, falou alguma
coisa ao rapaz desconhecido que estava ao seu lado. Ele, por sua vez, afrouxou
um pouco a gravata e disse que ela estava certa, que o motorista não
devia tê-lo deixado entrar.
— Não se deve “queimar”
as paradas, a não ser que seja à noite e que o passageiro
tenha uma aparência tão suspeita quanto aquele tem. lm.htm
— disse o rapaz, com voz firme e tensa ao mesmo tempo.
A viagem se passava, e o silêncio
ainda era o mesmo. A distância de um poste a outro aumentava, e nesse
intervalo a única luz que tocava o asfalto defeituoso da estrada
era a que vinha dos faróis do ônibus. Lá
dentro, algumas pessoas que se viam sempre, umas outras desconhecidas,
um motorista ainda muito jovem e um cobrador com os batimentos acelerados.
Logo à frente, a tensão
chegaria ao ápice. Era um bloqueio da Polícia Militar. O
motorista encostou à beira, enquanto alguns passageiros se levantavam,
curiosos. Três policiais homens e uma mulher subiram imediatamente.
— Todos os homens, levantem-se...
e com documentos em mãos! — em outras circunstâncias, isto
é, em outra linha, numa linha que transitasse apenas por bairros
nobres, o policial teria a preocupação em dizer “por favor”.
Os homens se levantaram, eram
poucos. A agente feminina encontrava-se logo atrás dos três
policiais, e caberia a ela revistar as mulheres.
O primeiro policial, que parecia
ter assumido a liderança na vistoria, passou pelo rapaz engravatado,
como se ele não estivesse ali. Foi diretamente ao negro. Começou
ordenando-lhe que encostasse as mãos no vidro, a fim de ser revistado.
A vistoria foi metódica e perfeccionista. Em certos momentos, foi
inconveniente. Tirou-lhe o boné sujo, não havia drogas. Apalpou-lhe
a cintura, levantou-lhe a blusa, não havia arma. Apertou os bolsos
de sua calça, suas pernas, até tocar seus sapatos rasgados.
Não havia nada. O negro, visivelmente humilhado, sentou-se. Não
falou nada, não esperou ouvir pedidos de desculpas.
Os demais foram revistados, as
mulheres também. Bolsas, sacolas, e nenhuma arma. Satisfeitos, os
policiais começaram a sair do ônibus. O líder deles,
pouco antes de descer os degraus, olhou para trás, para o negro,
e soltou um meigo sorriso de deboche. Já na porta, foi lembrado,
pela agente feminina, de que um homem faltou ser revistado.
O cabelo perfeitamente penteado,
a camisa ensacada, a gravata, os óculos por cima de um olhar assustado,
era o perfeito “mauricinho”. Estava tenso, isso era visível. Talvez
por ser, naquele momento, o centro das atenções. Talvez por
nunca ter sido revistado. Talvez por temer alguma coisa.
O rapaz puxou a carteira, para
mostrar os documentos. O policial segurou sua mão, disse que não
era necessário. Revistou apenas sua cintura, e muito rapidamente,
como se já soubesse que ali não havia coisa alguma. Pediu
para ver a pasta, que o moço deixara no assento ao levantar-se.
O rapaz abriu o zíper maior da pasta e inclinou-a. O policial olhou
com desinteresse, agradeceu e foi embora. A viagem seguiu. Todos os passageiros
chegaram sãos e salvos a suas casas, mas sem os salários,
sem as carteiras, sem os relógios, sem as bolsas de couro. O ônibus
fora assaltado.
Ainda naquela noite; ou melhor,
já no começo da manhã, aquele mesmo policial esperava
o assaltante no local marcado, perto de uma árvore imensa, nenhuma
casa por perto. E avistou o bandido se aproximar.
— Gostou da minha simulação
de policial dedicado?
— Acho que exagerasse um pouquinho,
Major.
— E ai? A colheita foi boa, não
foi?
— Ótima!
— Eu sabia. Fim de mês sempre
é bom. Revistei todo mundo, e as carteiras estavam cheias, cara.
Cada relógio do caralho! Vê se não tenta me enrolar,
é meio a meio, tá lembrado?
— Claro. Eu nunca tentaria enrolar
o senhor. A gente é parceiro, porra.
— Então passa pra cá.
O relógio de prata vai ficar comigo. Próxima semana é
o aniversário da minha mulher.
Dividiram os bons lucros. Mais
uma vez o golpe deu certo. Cada um seguiria, agora, para um lado diferente,
e só voltariam a se encontrar quando o policial ligasse indicando
um novo dia, um novo horário, um coletivo perfeito, vítimas
fáceis e vantajosas. E as revistaria antes, é claro. Se não
possuíssem nada de valor, daria o sinal para que o plano não
continuasse, e o assalto não ocorreria.
Poderia acontecer, evidentemente,
de ser processado por negligência, visto que não encontrou
a arma durante a revista. Poderia ter problemas. Mas valia a pena arriscar,
pois não é do espírito do povo brasileiro exigir seus
direitos. Não é comum ao brasileiro reclamar da incompetência
dos órgãos públicos. Sem falar no medo de se tornar
vítima de algum tipo de vingança. A resignação
impera.
— Ah, Dedé!
— Fala, Major.
— Vê se não coloca
de novo a arma ao lado do tornozelo, porra. Assim faz mais volume, por
causa do osso, tá ligado? Tava quase dando na vista. Se eu não
tivesse girado ela um pouquinho, pra trás da tua perna, quando te
revistei, alguém poderia ter notado. Acho que é melhor usar
ela mais pra cima, mais ou menos aqui, na batata da perna, onde a calça
é mais larga.