A dama de azul

Suas mãos são delicadas, seus dedos longos, finos e rosados, são como extensão do seu ser, formam um canal por meio do qual a sua espiritualidade se expressa, seus sentimentos fluem por suas habilidosas mãos, mãos treinadas na mais refinada e sutil das linguagens, seu universo é essencialmente poético, sua experiência estética transcende os umbrais de sua individualidade, transborda de si para o mundo, um mundo de impressões, estímulos, sensações caóticas, um mundo sem limites que se mistura em cores inebriantes, cores a que suas habilidosas mãos conferem um sentido, um sentido imediato, instantâneo, direto. Cores e traços, figuras que transbordam enigmas do seu próprio ser, um universo autônomo, livre, que ganha vida própria, que salta de sua experiência estética, fruto de anos de um esforço contínuo no exercício da linguagem pictórica, de uma pedagogia estética que lhe permite dialogar com sua interioridade, comunicar-se com o mundo através de uma linguagem icônica, que veicula emoção, emoção que se impõe pelo simples olhar, emoção que sem palavras abre um universo novo de percepções, renova a interioridade de quem se depara diante de traços e cores que suas delicadas e habilidosas mãos criam na mágica tela.
Os dedos finos e delicados contêm o indício de seu labor criativo, dedos coloridos por sua criação ávida, incontrolável, quase desesperada, seu corpo de mulher madura posa como uma ninfa diante de sua criação, absorvida pela beleza que o quadro lhe impõe, seus olhos o fixam revelando uma tristeza vazia que parece crescer em seu ventre, sente que sua criação estética é como um filho que cultivava em suas entranhas, uma criatura a que estivera umbilicalmente entrelaçada, um nascituro que habitara e consumira sua própria energia poética, que carregava uma parte de sua percepção estética, que emergira do seu útero artístico para o mundo, era como um rebento saído do seu interior, um interior que não era constituído de vasos e trompas, mas de uma constelação de valores estéticos que comunicavam ao mundo e aos outros espíritos que a vida em seu propósito mais elevado é a fruição do belo, que a poesia estava em tudo, que telas, tintas e dedos finos e delicados também falavam e comunicavam esta sabedoria. Seus olhos continuam fixos, sua mente vazia, seu rosto, apesar da beleza inocultável, continua a revelar uma tristeza indissipável, uma tristeza irredutível que a consumia, que judiava de sua paz, uma tristeza que só se dissipava quando celebrava a vida com mais uma construção poética, construção que emergia avidamente de seu criativo útero poético.

O olhar brilhante continua lá, o belo rosto de sutis traços caucasianos também continua a revelar a tristeza que dela se apossara, o belo corpo maduro de mulher vivida mantém a mesma pose, seus dedos longos e finos agora estão inertes. A tela, a dama e o espaço em que tudo se processara emerge em um único e só ser, um ser que se condensa e se dissolve em uma nuvem leve que invade e se espalha por todo o cenário poético do ateliê, uma nuvem azul.

O lenço tremula ao vento, uma mão infantil o sustenta, uma mão delicada, de dedos pequenos, rechonchudos e rosados, uma mão que sai da janela traseira de um carro cinza que corta a estrada em uma marcha segura e altiva, a máquina corre silenciosa, acompanhando precisamente o traçado que se perde no horizonte, o carro se perde contra o crepúsculo que corta o céu em finos traços dourados, o lenço desprende-se da mão infantil que retorna ao interior da máquina silenciosa, e no vazio silencioso da imensidão da relva o lenço levita em uma queda pausada e tenra, um lenço azul como o céu que o cobre.

“O tempo é um fio que corre em um único sentido, um fio a que estamos irremediavelmente entrelaçados, um fio que costura a multiplicidade de nossas vivências, conferindo-as uma certa unidade, uma unidade sempre precária e revisável, é sob a impetuosidade unilateral do tempo que construímos nossa unidade, o tempo é o fio em que nos equilibramos para não nos esparramarmos no caos, na descontinuidade. Mas os homens não estão de todo encarcerados nas malhas de um tempo que segue um único rumo que não pára, é através da capacidade imaginativa que o desconstruímos, para reinventá-lo, o tempo e a nós mesmos, a arte é o ofício da subversão do tempo para desvelar os mistérios que cada um de nós carregamos.”

“A órbita azul e cintilante está perdida no vazio de suas lembranças, o azul de seus olhos é salgado como o mar, um mar azul e triste, um mar que reflete o rosto inexpressivo de um ser incognoscivo, um ser distante que lhe comunica o que o seu coração já sente, sua mente é como a procela que o triste azul de seus olhos torna mais aguda.
— Ela morreu também, os dois.
Seu rosto fecha-se em uma expressão de dor, uma dor astronômica, que transcende o limite da dor física, seu rosto fechado em si mesmo, em sua dor de mãe que perde a filha, de mulher que perde o seu amor, perde-os como quem perde o substrato de seus valores, sente que tudo dentro de si está a vagar, como objetos fora do campo gravitacional, fora de si, seus olhos registram os primeiros feixes de luz, as primeiras impressões pictóricas sob o seu estado de dor, um mundo impávido de objetos e seres mudos, distantes, inexpressivos. Descobre-se inerte em uma cama de hospital, seu corpo está dolorido, descobre que seu corpo também fora violentado pela brutalidade dos fatos, tenta recordar, mas é inútil, não consegue. É como se tivesse uma barreira em sua mente, uma barreira alienígena, intransponível. Seus belos olhos azuis não exibem mais a sua beleza, são desesperados lagos tristes, lagos entorpecidos pela dor que dela se apoderara.”

As mãos voltam ao trabalho, voltam a criar, a criar de uma forma desesperada, quase com raiva. O quadro branco tem sua pureza casta e inexpressiva, violentada pela tinta azul que lhe é atirada como água suja que é despejada na latrina, a tinta azul carrega o ódio que dentro dela crescera, um ódio que se apoderara de sua arte, da harmonia de seu gênio estético, um ódio que agora era uma parte do seu ser, como algo que sempre nela habitara, algo que só esperava a oportunidade para emergir, para dela se apoderar, contaminar a sua arte. Sente a dor explodir no seu peito, soluça e percebe sua dor materializar-se em lágrimas, lágrimas copiosas que pela primeira vez após todos aqueles meses descobria agora ter. Seu rosto desfigurado pela dor, era após todo aquele tempo lavado pelas lágrimas, atrás de uma cortina úmida e de cabelos amarfanhados ela tenta sobreviver, o mundo continua vazio diante dos seus olhos. O quadro abandonado continua sendo rasgado pela mancha azul que sobre ele caiu como uma cusparada, uma cusparada copiosa, anormal, um mar azul que sobre sua superfície corria para cair no chão em longos fios fartos, longos fios úmidos como os que do seu rosto escorriam.

A roda corta torta o caminho sujo das ruas, sua trajetória é irregular. Os pulsos fortes sustentam o carrinho que na penumbra das atenções passa despercebido, é mais uma coisa andrajosa a enfear a desorganização suja de pessoas e ruas. O carrinho colhe a sujeira que a desorganização produz, o homem o empurra em passos lentos, um homem decrépito de barba longa e grisalha, um homem de face seca e olhos inexpressivos, um homem envolto em trapos sujos de aspecto pegajoso, ele empurra vagarosamente o seu frágil carrinho abarrotado de tudo o que os outros homens não quiseram mais, seu carrinho se perde na torrente do caos da cidade confusa, de gente vazia, o carrinho de lixo e o homem, o homem e o seu carrinho de lixo.

Seu rosto enigmático perde-se na solidão da leitura, seu olhar está distante, como em um outro mundo, um mundo só dele, um mundo codificado em que só ele conhece a chave para entrar e sair, seu rosto de coruja contempla o jardim que se abre a sua frente, mas seu olhar não aprecia nada em especial, continua perdido em suas divagações, as páginas do livro sobre suas mãos como que voam com o vento que sopra brando, os símbolos caem das páginas indômitas e remontam o mundo solitário do homem enigmático e mudo, o homem que usa um belo terno, que lê Faust, e tem uma ininterpretável face de coruja. Seus olhos grandes expressam a sua erudição, o contorno do seu rosto nada revela, só uma inafastável bruma que o envolve e faz suspeitar do incrível vazio que carrega no peito, como uma coruja a vagar nas trevas, uma coruja observadora que nos encara, e sem nada dizer, tudo nos rouba, até nossa alma. Seu olhar de coruja, olhar que nunca revela o que realmente está se passando, continua incógnito, os símbolos que emergiram das páginas de seu livro, continuam a girar, mais indômitos e fantásticos. Uma janela para o mundo se abre, ele continua lá, impávido, lendo. Mas um outro homem, que também é ele, o transcende, um homem que usa um belo terno, um homem que tem rosto e se revela, um homem que rasga as douradas páginas de Faust, um homem que dança sobre folhas de um livro rasgado e jogado no chão, um homem que fita uma bela janela e sorri para ela, um homem que mergulha no mar de um mundo desconhecido, um homem que mergulhar em um incrivelmente belo mar azul.

“A órbita azul não registra mais nada nem ninguém, os belos lagos tristes remoem suas lembranças, lembranças que do nada aparecem e dela se apossa, um feixe azul e poderoso faz surgir em sua memória um carro portentoso e cinza que corta uma estrada bela e calma, vê a si, bela e radiante, sorri um riso rico e farto, um riso radiante de plenitude. Seu marido dirige a máquina magnificamente, quase não sente a estrada, parece levitar, ele é espirituoso e conta uma história da qual não se lembra, mas faz todos rir muito, todos porque há a filha também, ela está, como sempre, linda e comportadamente recostada no banco traseiro, ela é gentil e inteligente, seus olhinhos brilham ao olhar para a espirituosidade madura do pai, a beleza radiante em felicidade da mãe. Todos riem, a máquina levita, a estrada abre-se larga e infinita, o céu brilha em finos e longos fios dourados, dourados como a sua felicidade contente e despreocupada, as imagens se confundem, olha para trás, vê sua menina abandonar um lenço que se perde na relva, olha para o belo homem que ri, tudo explode em um outro clarão azul...Já não está na máquina cinza que corre e corta a estrada, já não há mais o belo e espirituoso homem que para ela ri, nem a bela menina que abandona lenços na relva, só um resto de mulher que em frangalhos se remoe em um leito solitário, uma mulher de rosto inexpressivo, de olhos feitos em lagos incrivelmente tristes, seu mundo tão idílico e harmonioso fora dilacerado, seu corpo machucado era a sua lembrança viva que latejava, em sua mente tudo ocorria como em flashes, um caos de imagens e cores, abre os olhos e só vê objetos pálidos e mudos.”

Olha em redor, as mãos azuis, o rosto inundado pelas lágrimas e manchas de tinta, a mesma tinta azul que seus olhos contemplam, a tinta azul que cai copiosa em longos fios fartos da tela branca, seus olhos azuis lhe dizem que ali não pode mais viver, todo o seu trabalho, toda a sua arte está contaminada por aquela atmosfera de dor e perda, em cada compartimento da casa, em cada mobília, lustre, uma lembrança, uma imagem, uma história, um cheiro que faz tudo parecer atual e quando sua voz chama por ele ou ela o silêncio responde com toda a sua inescrupulosa impetuosidade, recrudescendo a sua dor, avolumando o ódio que por momentos descobre cultivar, mas por quê? Por que com ela?! Ela pensa em vão, pensa e em seus pensamentos só descobre incompreensão e dor, uma dor inflamada e incurável, sente que a cada cheiro que a casa reservava, uma história vivida se revelava ainda tão atual, latejante. As coisas e os cheiros eram como que armadilhas a sua espera, no começo eram paliativos para sua astronômica dor, mas agora eram sórdidos estratagemas para fazê-la sofrer, queria ir embora, para um outro lugar, respirar outros odores, contemplar outros objetos, odores e objetos que a libertassem daquela prisão, odores e objetos que lhe permitisse respirar, buscar algo que justificasse a sua vida agora, uma vida confusa, uma vida rastejante, uma vida que se esvaia para o fundo de um obscuro buraco negro. Não suportava as coisas e os cheiros das coisas daquela casa, a tinta azul continua a cair em longos e finos fios, agora quase que em gotas, o chão é como que um mar em seu ateliê, um longo e doloroso mar azul.

Os pés sujos e descalços cortam as ruas da cidade, suas mãos cansadas empurram o carrinho cheio de entulho, seu carrinho movimenta-se com vagar, os carros correm endiabrados, brilhos cintilam, milhares de rostos anônimos se cruzam em um vai e vem atabalhoante, o homem cansado empurra seu carrinho feito de tábuas e latas, seu carrinho frágil e ignóbil recolhe o que cai dos modernos carros cintilantes, o resto que os restaurantes destinam às ruas fétidas, o triste carrinho em sua pequenez ignorável e ignorada devora o que os ricos prédios vomitam, o homem tem sua pele mestiça escurecida pelo calor calcinante do sol, o sol a que estivera exposto por todo o dia, por todos aqueles dias infindáveis, dias em que suas retinas registravam cenas e rostos que se sucediam, suas retinas como o seu carrinho colhiam a sujeira da cidade, a sujeira das relações humanas, das meninas prostituídas, dos furtos, roubos, violência policial que se sucediam em uma imbecilidade que tornavam o seu rosto mais seco, seus olhos de um castanho morto ainda mais inexpressivos, continua a empurrar o seu carrinho, as crianças andarilhas e maltrapilhas se reúnem em sua pobreza parda em praças e chafarizes, ele a empurrar seu carrinho coberto de lixo sob o olhar indiferente de homens e mulheres que vão e vem.

“As folhas secas caem, caem copiosamente, o céu azul sobre seus olhos é coberto por uma tempestade de folhas secas que caem de uma forma leve e idílica, seu corpo está jogado no chão, as folhas que cobrem todo o verde do campo com uma cor morta a cobrem também com uma palidez mórbida, ela deitada e banhada pelas folhas secas aprecia o contraste entre as folhas mortas que caem e o azul do céu, seu vestido azul acaricia o seu jovial corpo, a envolve e realça a sua beleza cândida, seus olhos azuis brilham sob a tempestade de folhas secas que caem do céu, um céu limpo e sem nuvens, o belo vestido azul reforça as formas do seu corpo, seus olhos brilham e um carro cinza está estraçalhado sob uma árvore, três corpos jazem, mas só ela vive, mas ela não sente dor, não tem um hematoma sequer, seus olhos brilham e ela ri, maravilhada com a chuva de folhas secas que continuam a cair copiosamente.
Abre os olhos, os dois lagos tristes lado a lado, dois lagos a clamar pela filha e o marido mortos, continuam os objetos ao seu redor mudos e impávidos, não está vestida de azul, tudo é muito branco, uma brancura pálida e deprimente, não quer mais viver, decidiu, quer morrer também, sua vida não tem mais sentido sem eles, não quer mais pintar quadros ou qualquer outra coisa, só a morte a lhe chamar, a morte como o seu último ato, sente que um buraco cresce diante dos seus tristes olhos azuis, um buraco que tudo traga e destrói: um buraco negro.”

Reduzir a vida a uma luta entre o bem, representado pela luz, e o mal, pelas trevas, é reduzi-la a um maniqueísmo ingênuo. A vida não se dá em uma luta entre pólos nítidos e contrapostos, não é possível se discriminar o certo do errado com tanta nitidez, se é que é possível se predicar categoricamente o que é bom e o que é ruim, as categorias puras são fruto do engenho dos homens, os atos da Dama de Azul, cujos olhos cintilantes podem perfeitamente encarnar o ideal do bem, que desesperada se consome sobre um leito diante da perda irreparável de seus valores mais caros, estes atos não podem ser tão friamente classificados como sendo certos ou errados, é uma prova de fraqueza ou debilidade a sua inclinação para o suicídio? Será que a Dama de Azul é uma mulher fraca e covarde por fugir da vida e querer a morte? O buraco negro é algo que está sempre a espera de uma fraqueza, de uma dúvida, de uma situação de vulnerabilidade, a espera, pronto para nos tragar e destruir, roubar os nossos sonhos, coragem, a nossa luz. Mas não é fácil fugir das suas armadilhas, como não é fácil fazer a opção certa, a vida é feita de atos e fatos confusos, tudo boiando em um mar azul que pode nos levar para águas calmas, e aí os olhos cintilantes da Dama de Azul são os olhos da artista plástica bem sucedida e feliz, ou este mar pode se tornar revolto e nos matar a todos, como o lenço de adeus que se desprende da mão infantil antes de o carro colidir contra uma árvore. Este mundo confuso e imprevisível se sustenta em uma base fluida e inconstante, um substrato que pode escorrer por entre os nossos dedos, como as vidas preciosas que saíram do cenário da vida da Dama de Azul, e a jogaram em um leito solitário e doloroso, o bem continua ainda tão nítido quanto os olhos cintilantes? O buraco negro que é o suicídio é tão ardiloso e mal assim? O universo da Dama de Azul foi destruído, ela está só, seus olhos azuis são cada vez mais mórbidos, são como um imenso lago de dor e solidão, lago que não conhece o certo nem o errado, apenas o desespero.

O homem de terno, que lê Faust e tem enigmáticos olhos de coruja é um jovem professor de filosofia, um amante da literatura e das artes, sua vida sempre fora irremediavelmente solitária, em meio a livros e teses, sempre esteve condenado a incompreensão, sua voz sempre se perdeu na vastidão do nada que sempre foi sua real companhia, teses e livros, livros e teses a compor um universo rico de engenho, pobre de afetividade, seus olhos de coruja são os olhos da inteligência que tem como resposta as suas indagações e teorias o silêncio, fez um pacto, um pacto tácito, e como Dr. Faust vendeu a alma ao diabo para ser mais sábio, sua alma é o seu coração, o diabo, o vazio que do seu coração se apoderara, ele não amava, não saberia amar, seu poderoso gênio analítico só dissecaria teses, suas delicadas mãos só acariciariam folhas de incontáveis livros.
É seria assim, se o homem de terno, que lê Faust e tem olhos de coruja não tivesse sentido uma fagulha em seu amaldiçoado coração, o coração de gelo agora pulsa, em suas veias correm sangue, no chão em que pisa estão rasgadas as folhas douradas da obra de Goethe, seu coração que pulsa, pulsa agora apaixonado, a mulher que adorava podia agora ser sua, ela poderia ser salva do seu desespero e salva-lo do dele, ela é uma bela e madura mulher que pinta quadros que o fascina, ela é a Dama dos seus olhos já a bastante tempo, mas agora seu coração bate diante da possibilidade de ser salvo da dor da solidão, está disposto a se dividir entre seus livros e o amor pela Dama de Azul.

O homem de barba longa e grisalha pára o seu carrinho de lixo, não tem mais forças, acomoda-se em um canto obscuro e sujo, sente um vazio em seu estômago, escuta sua barriga roncar, tem fome mas não tem o que comer, puxa uma flauta que trazia oculta na roupa, olha-a, admira a sua companheira, a única que tinha e que o ajudava a enganar a fome e a ganhar algumas moedas para ameniza-la, emite a primeira nota, quebra o silêncio com uma sucessão de notas poeticamente envolventes, o som que de sua flauta emitia tornava tudo ao seu redor menos andrajoso, a vida de lixo e pobreza, a vida de fome e anonimato, um anonimato que o tornava invisível aos olhos dos outros, o som tornava tudo aquilo suportável, a cidade de meninos abandonados ao azar e lixos pelas ruas sob a composição do som da sua flauta evidenciava a arquitetura trabalhada, o céu azul, o amor dos namorados que saiam nos fins de tarde das escolas em meio ao estardalhaço juvenil. Ele toca para os corações, inebriado pelo som não percebe as moedas que caem aos seus pés, só o que seus sofridos olhos gastos vêem é um olhar azul do outro lado da rua, o olhar de uma mulher bela e triste, um olhar que acompanha o som que sai da sua flauta e do seu coração, um olhar que parece entender a sua dor porque também sofre, ele continua a tocar ao lado do seu carrinho de lixo, os olhos azuis a olha-lo da cafeteria.

“O buraco negro está diante dos seus tristes olhos azuis, o buraco negro está diante dela a sugar todas as suas esperanças, consumindo-a com fervor, sente suas últimas forças irem embora, seus tristes olhos não vêem nem mais os objetos impávidos e mudos, as luzes aos poucos desaparecem, a escuridão se espalha, seu corpo atua de forma mecânica, é como se ela não estivesse ali, suas mãos de finos e delicados dedos que pintaram maravilhas, agora só diziam, em seus atos, que a vida era triste como os seus olhos, que não deveria mais viver, que tudo era um absurdo, que ela também deveria ter morrido, o buraco negro diante dos seus olhos a crescer, a transformar tudo o que era de matéria e luz em um escuro nada, parecia tragar também a sua dor, ela estava indo, desaparecendo em cada ato mecânico, distante, já não estava mais em si, o buraco negro tem uma força descomunal, o azul de seus olhos desaparecera, o buraco negro destruíra até o azul triste do imenso lago de dor, a dor da perda, o buraco negro maior, tudo ao seu redor se desintegrando para dentro de um imenso buraco sem vida, ela também iria, era só uma questão de minutos, os comprimidos em sua mão, ninguém na enfermaria que a impedisse de fazer o que o carro cinza não fez, a boca amarga, o buraco negro a puxa-la pelos braços, os olhos totalmente brancos, sem íris, a vida já ficando absurda para trás, uma centelha faz seu coração confuso pulsar, cospe para longe todas aquelas cápsulas, cospe tudo para bem longe, joga o recipiente de vidro que tem entre as mãos contra a vidraça e vê tudo se despedaçar, o buraco negro a larga, seus olhos recuperam o seu azul, sente que suas mãos de dedos longos, finos e delicados são também fortes, que são fortes para não se deixar levar pelo buraco negro, para lutar pelo pouco de vida que lhe restou, que de alguma forma vivera ao acidente, que estava em frangalhos, mas deveria lutar e resistir a dor, que a sua arte, a arte que era materializada pelas suas mãos, era a única coisa que a fizera querer viver, viveria e pintaria, viveria e criaria em cima da sua dor e sofrimento, as mãos que venciam o buraco negro oportunista, eram as mãos que davam sentido à vida, as mãos que buscavam a beleza que haviam lhe roubado, a beleza que recriaria com dedos de mãos fortes, habilidosas e tintas, a arte foi a centelha que lhe salvou no momento crucial, para a arte viveria, pois a vida em última instância é um propósito estético, e todos nós estamos em verdade a procura da beleza.”

Olha pela última vez para aquela grande e triste casa, a casa onde vivera os melhores anos de sua vida, a grande casa que seus olhos não mais suportavam contemplar, a grande casa que recrudescia a sua dor, a grande casa que agora ficaria para trás, talvez se libertasse daquela amargura pouco a pouco, a casa seria um desses passos, vai para um novo lugar, menor, só para ela, onde poderia viver para pintar, dialogando só com a tinta dos seus quadros, com as formas que emergissem do seu gênio poético.

O filósofo anda sem destino certo pelas ruas da cidade, sai do seu apartamento repleto de livros e anda despreocupado em busca de um bom café, um bom livro de poesia, uma fita de vídeo, algo que o faça esquecer dos belos olhos azuis que sente que recaem sobre seus atos, sente-se intimamente vigiado, seus pensamentos estão dispersos, em sua mente só há aqueles lindos olhos azuis, a Dama a pintar com paixão um quadro de fundo azul em que ele e ela se abraçam e se beijam, um beijo leve e ao mesmo tempo profundo, olha para frente, percebe que o dia ficara branco, uma chuvinha rala caia, ele nem percebera, seus olhos inebriados tentavam sorver as milhares de gotículas suspensas no ar, o céu cerrado, a cidade ficava poética naquelas circunstâncias, sentia seu rosto ligeiramente úmido, via os carros a passar, pessoas imersas em seus universos, caminhava sob a chuva inebriado com tudo aquilo, via agora um homem a tocar uma música em sua flauta que traduzia tudo aquilo, um homem sob a chuva rala, uma flauta e um humilde carrinho de lixo, seus coração explode quando vê os olhos azuis do outro lado da rua, ela está em uma cafeteria, seus olhos são de um azul triste, um azul triste e belo, não quer ser descoberto por ela, não sabe como ela reagiria, ela sempre soube que ele era apaixonado por ela e pelos seus quadros, caminha cuidadosamente, entra na cafeteria sem que os belos e tristes olhos azuis percebam, a chuva branca continua a cair com suas partículas d’água suspensas no ar.
 

A Dama de Azul sobrevivera ao acidente estúpido e ao buraco negro oportunista, mas sua vida ainda estava repleta de feridas, feridas abertas, feridas que ela mesma tratava, tratava com suas mãos e tintas. O que significavam as perdas para a Dama de Azul? Qual o sentido da sua arte? A Dama diante da sua perda descobre que a vida é arte em sua essência, descobre que a arte permite não só que vivamos uma pequena dose de sonho e poesia mas é mesmo a fonte onde bebemos e nos renovamos. A Dama de Azul não é mais a mesma que ria em um carro cinza e cintilante, é uma mulher remodelada pela dor, pelas cores, pela sua própria arte. Seus dedos são o seu canal com o mundo, do seu útero nascem quadros ricos em formas e cores, do seu gênio transborda pura poesia, ela diz aos outros mais do que em palavras, através de cores e formas que a vida é busca de poesia, que criamos e nos recriamos, nós e ao mundo, ela, A Dama de Azul, era a prova viva de que toda a nossa busca nesse mundinho confuso é uma busca por cores e formas unidas em uma inebriante sensação poética.

Ela está só em seu pequeno apartamento, sentada no chão tem os olhos fixos no outro lado da sala, uma sala vasta e nua, diante dos seus olhos se ergue um quadro que estivera pintando, a pintura estava inacabada, dois olhos vivos e azuis estavam na tela, ela os olha, ela descobre-se como aquele quadro, com seus olhos azuis grandes e instigantes, assim como ele, também incompleta, uma obra inacabada, talvez não percebera antes mas este é o nosso fim: a incompletude. Nos somos obras em aberto, só é como obras incompletas que existimos e somos, somos o que quisermos ser, somos antes de tudo em nossa incompletude livres para perseguirmos a plenitude do belo, o quadro de fundo branco e dois arrasadores olhos azuis a fascina pela força da evidência que lhe transmite, o seu quadro incompleto do outro lado da sala é e será sempre um quadro incompleto, não há obra acabada, como não há vida plena, seus olhos continuam vivos a fitar os olhos azuis do quadro do outro lado da sua sala. Escuta um som mecânico e repetido, é o filósofo que chegava.

Está nua, descobre todo o prazer que o seu corpo ainda lhe reservava, seu corpo de mulher madura, seu corpo de formas bem definidas, seu corpo era também uma poesia. Está nua, e em sua nudez, desliza sobre telas de quadros e tintas de múltiplas cores, seu corpo belo e nu, rola sobre quadros incompletos que apreendem as formas que o seu belo corpo imprimem sobre as telas, nunca sentira tanto prazer com a sua arte, nunca sentira tanto prazer com a nudez do seu corpo, estava viva, queria viver e buscar a poesia que a vida, a sua arte e o seu belo corpo ainda lhe reservavam, olha para a porta de vidro a sua frente, é noite, o filósofo está nu sobre a sua cama, ele dorme após ama-la, ele está feliz, o apartamento é iluminado por um foco de luz leve e distante, através da porta de vidro vê o mar misterioso na escuridão, sente uma leve amargura após o prazer de se redescobrir mulher, o vento sopra forte, abre a porta de vidro, olha para o mar misterioso e opaco a sua frente, não sente frio em seu belo corpo nu, só olha para o mar protegida pela escuridão da noite, o vento forte em seus cabelos e os belos olhos azuis a se indagarem sobre a incrível poesia da vida.

Rodrigo Caldas


 
 

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