Sara bebia do livro sagrado para depurar-se por dentro e sentir-se perfeita, quase, quase perfeita. Ela dava a mão aos estranhos e os tomava por irmãos, cheia de zelo e fraternidade. Mas dentro de casa, na intimidade do lar, não suportava a filha. A que tomara outro rumo na vida, um sem fé nas palavras. Não suportava a irmã. A que não cria no além, um de privilégios. Assim, quando Sara se aproximava da filha ou da irmã corria um rio de ira, inveja e disputa entre elas, cuidadosamente oculto nos subterrâneos da terra. Um rio caudaloso e dissimulado, mergulhando e rompendo os laços sangüíneos, tornando a correnteza vermelha e as margens de encontro cobertas de areia coalhada. Apesar disso, se amavam, um amor filho da lua, oscilante, cheio de fases: minguante, crescente... minguante...
A filha revoltava-se. Uma revolta de quem não está acima da dor. Provocava a diferença, cutucava a intolerância, só para ver o rio rubro emergir, o oculto. Só para mostrar o quanto as palavras santas afundavam nas águas e se afogavam em pecados capitais. Avareza, vaidade, cólera, cobiça... a avareza das almas, cruéis, sempre se postando em pedestais, sempre se salvando dentre os outros, se enchendo de luz e mergulhando os semelhantes na escuridão, se querendo cheias de amor e fazendo os próximos vazios e sem valor. Queria falar das semelhanças. Somos todos humanos, mãe! Queria gritar a igualdade para depois chorar mansamente a derrota perante os livros e os rios.
A irmã olhava para Sara e falava de sexo molhado e sedento, de outros pênis, de outros peitos e pêlos, de vozes roucas de homens diferentes. E ficava olhando a incompreensão nos olhos dela e o poder ilusório das palavras e dos conceitos. Irmã... pênis, irmã, pênis grande. E bastava, Sara via um animal a sua frente, uma criatura primeva habitando uma dimensão inferior, estendendo uma pata em sua direção, uma língua pegajosa e lasciva. O horror estampado na face íntima de Sara e o rio tumultuado emergindo furiosamente, volume d’água sobre volume d’água. As duas irmãs só com os olhos de fora, largando as mãos para sempre e perdendo-se na correnteza vermelha. Sim, somos todos humanos, irmã. Mas não havia tempo e nem amor suficiente...
E no dia seguinte Sara ia ao templo, ungida, derramar palavras boas, tocar nos estranhos com ardor amoroso, proferir palavras divinas. E não havia quem não a louvasse. O sorriso bonito, os olhos brilhantes, a devoção, a graça, a gentileza, a bondade, a sabedoria... e a perfeição que tanto necessitava roçava o céu. E a aprovação que tanto ansiava escorria sobre sua cabeça, pingando dos cabelos gota à gota. Mas quando ela chegava em casa, havia um rio esperando, um rio emergindo das entranhas, um rio que separava e glorificava as diferenças, um rio vermelho de margens coalhadas de sangue. E naquele dia pode-se ver: sobre as areias manchadas, trazidos pela maré, jaziam dois corpos: um era o da filha e o outro era o da irmã. Bocas escancaradas e rijas e as palavras mortas sendo engolidas por um redemoinho no meio das águas.
O rio fatal... mas aquele rio não tinha fim e as pessoas ressuscitavam. Os afogados voltavam à vida quando as marés acalmavam. E de novo podia-se amar e a lua de repente estava cheia e serena. Um sorriso brotava dos olhos. A filha era beijada, a irmã abraçada. Primavera terna. Mas isso só até o rio brindar novamente à diferença - desigualdade nefasta, desigualdade que afasta - e Sara soprar ao vento... somos diferentes... somos difereeennnntees... e os corpos da filha e da irmã amanheciam hirtos na praia.