Cena Amorosa Sem Fim

No amplo saguão do casario, uma pintura surrealista, um quadro de Dalí, o Salvador, tão ou mais real que a vida. Um Picasso, exibindo gritos agudos, os das línguas triangulares das éguas. A desconjuntura das formas fazendo pleno sentido, como os fractais, que debocham de nossos conceitos de caos.

A moça Helena gostava especialmente do que fugia à regra, a regra que rompia com gesto doce, mas não apenas doce: suculento, derramado de desejo. Que estranha cena de encontro, quando Felipe, ainda jovem e belo Felipe, lhe devolveu um beijo e fugiu. E fora um beijo molhado, um beijo de quem quer mais... Os pecados das hordas primitivas revolvendo-se nas almas, mas não na dela, moça Helena, que amava sem regra. Se Felipe tinha trinta e nove e ela vinte, se Felipe já era pai e ela virgem, se Felipe era viúvo e ela solteira... que diferença fazia? Amava cada traço de seu rosto, a voz ponderada e grave, o colo que lhe acendia a paixão.

Pensara que as vezes a morte era boa, mas não para aliviar as dores. Morrer prolongava o mal e tornava ainda mais difícil o caminho, como quando sua mãe morrera, semeando uma via tortuosa.

“A Natividade da Virgem”, obra artística de Ghirlandaio, lhe servindo qual espelho na parede, revelando uma elegante mulher ruiva, coque ricamente ornado, seios à mostra. Do longo e delicado pescoço pendia uma corrente dourada e, enroscada à jóia, uma serpente sinuosa pairava, contrastando com a brancura lisa de sua pele. A dama ruiva era Helena, seu fiel retrato, e a serpente lhe guarnecia e condenava. A mãe também fora ruiva e Helena, em verdade, era em tudo semelhante a genitora. A mesma beleza pálida, os mesmos caracóis em fogo.

A morte da mãe era vaga lembrança de um tempo em que se apegara ao pai. Depois, o internato. A distância de casa; as saudades pungentes, que foram dando lugar a um indiferença cuidadosamente cultivada, para que as feridas não sangrassem de novo; as amigas; os namoricos; as risadas nos quartos do casario; as escapadelas para o centro da cidade; os estudos de francês; as aulas de canto...

Nas escadarias do internato, figurava a “Alegoria das Três Idades da Vida”, uma encantadora obra de Ticiano, que sem que ninguém suspeitasse, previa um destino. A majestosa pintura retratava um moço, de corpo bem desenvolvido, quase inteiramente nu, trocando profundo olhar com uma jovem, que de tão cândida, guardava um traço angelical. Helena parava no alto da escada, a admirar o quadro preferido. De alguma forma esperava encontrar-se em semelhante paisagem de amor. Ticiano a compelia ao encontro passional. Foi então que conheceu Felipe.

Numa tarde, como tantas das longas tardes no internato, aproximou-se um jovem senhor, que muito galantemente a convidou a passear. Helena enamorou-se dele tão rapidamente como a primavera abre-se em flores e pensou que finalmente vivia a cena amorosa de Ticiano, a sonhada.

Sem o menor pudor, dedicava ao eleito carinhos e gentilezas mis, esquecendo por completo toda timidez e compostura. Felipe, por sua vez, parecia enfeitiçado, mas mantinha um elegante e absoluto respeito pela jovem. Tocava-lhe os cabelos ruivos, percorria as linhas suaves de seu rosto, sorria, embevecido, dizia baixinho seu nome, porém, sempre à distância. Assim passaram-se vários dias, em muitas horas de paixão contida, cheia de contemplativa entrega de um para o outro.

Não suportando mais represar o seu amor e como Felipe demorasse a vir ao seu encontro, Helena ofereceu-se com tamanha languidez e sedução que por fim beijaram-se, tomados de ardor. A cena amorosa, como vivificação da obra de Ticiano, compunha-se. Um quadro dos mais belos. O primeiro beijo de Helena, beijo alimentado por homem de maduro vigor. Entretanto, gradualmente, o que parecia o momento mais feliz de ambos, foi-se revestindo de horror. Felipe, como se visse a própria assombração do mal, como se fosse mordido pela serpente que guarnecia o pescoço da formosa ruiva de Ghirlandaio, lançou-se para trás e, mais que depressa, afastou-se da jovem Helena, que sem nada compreender, pôs-se a chorar, pois pressentia o desespero do amado.

Felipe fugiu. Foi-se correndo, desaparecendo na alameda de pedras que rondava o casario, adentrando o bosque adjacente. Depois, não muito depois, enviou uma carta a Helena, revelando toda a verdade. Que a achara encantadora, magnífica, que lhe dedicava os mais profundos sentimentos, mas que amor de ambos era impossível. Descreveu com minúcia cada motivo seu, cada diferença que os separava, e sustentando que não mais poderia vê-la, sob pena de cometer grave injúria e injustiça, despediu-se. Helena não conformou-se. Escreveu-lhe de volta com paixão ainda maior e afirmando, cheia de envolvente súplica, que só havia um caminho na vida, o do amor. Nada mais importava, se não o amor. Que nenhuma diferença ou semelhança era importante, que nenhuma opinião alheia era determinante, que somente a felicidades deles, o bem maior, deveria ser salva de um ultrajante esmagamento, que nada tinha de sagrado ou divino. Felipe nada respondeu.

O silêncio de Felipe consumia Helena. Já não alimentava-se, nem divertia-se, tampouco estudava. Metia-se na banheira, banhava o corpo esguio em água morna e deixava-se afundar, mergulhando a cabeça ruiva no líquido tépido, até não suportar mais a agonia de não respirar; então renascia das águas, como de um parto mal sucedido, que lhe impingia a vida como castigo, sem gota de prazer. Lentamente foi recuperando-se das dores pontiagudas de uma paixão ferida, mas não esquecia Felipe. Ainda tinha esperanças de que ele voltasse, tão repentinamente como havia chegado em sua vida.

Helena não esperou em vão. Felipe voltou numa tarde de sol, como tantas das longas tardes que douravam o saguão do casario. Disse que viera buscá-la, que a amava e nada além importava. Que pensara nela noite e dia e na maldição de não poder vê-la e tocá-la. Beijou-lhe sem medo, desta vez com ávido desejo, despertando em Helena a mais plena volúpia. A cena amorosa se recompunha. Felipe interrompeu-se por um instante e falou sussurrando: “Helena, querida... você se parece tanto com ela... tem certeza de que me quer mesmo assim?” e a moça ruiva, de cabelos fogo, que em tudo era semelhante à mãe, que gostava do que fugia à regra, respondeu baixinho, “...beije-me papai, beije-me...”.

Marta Rolim


 
 

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