A generalidade do gênero

Não há gênero aqui. Afinal fazer gênero não é mesmo minha praia, entende? Existem generalidades. E foi em uma dessas generalidades que descobri que eu, Iago – nome aliás que já me rendeu algumas críticas, com o perdão de Shakespeare – sou mesmo um ser complicadíssimo. Aliás, complicado deveria ser meu sobrenome. Que pena! Não é. Sou daqueles seres que teimam em ser loucos, loucos demais para meu próprio gosto, mas quando me deparo “entre quatro paredes” – que me permita Sartre – vejo toda minha normalidade no enorme espelho que tenho em meu quarto.
Tudo isso, a começar por meu sobrenome: Silva. Iago da Silva. Viu só? Não é normal demais para um Iago? Enfim, o que há de se fazer, é o que determina minha origem. Sou do povo e como tal não podia me dar a tanta loucura, certo? Isso porque um legítimo membro do povo, quando louco, é internado no manicômio espírita e o louca da aristocracia vai passar férias – de muito mal gosto, por sinal – em Miami. Volta bom. Vejam só.
Mas chega de tanta conversa, que não me diz e nem diz nada a ninguém.
O que quero mesmo contar é o seguinte. Um dia desses, recentemente, talvez há duas ou três semanas, chegava eu, Iago da Silva - que de Iago não tenho nada, muito menos a perfídia - em casa. Depois de tempos sem dinheiro, geladeira vazia, quase sem trabalho – o que faço? Vejam só, além de ser da Silva e pobre, sou jornalista desempregado – consegui um bico legal, grana boa, o que me dá até o direito a usar gírias. Então, fui ao supermercado. Ótimo. Compras do mês. Sensacional. Coloquei tudo dentro de meu carro – um fusca 93 –  e fui alegre e quase saltitante para casa.
Moro em um bairro considerável. Nada mal para a dureza em que ando. Até então me considerando apenas como mais um a compor a classe de oprimidos que forma esse país. Parei em frente ao prédio e desci as primeiras sacolas. Minha felicidade foi detida, contida em si mesma, quando do outro lado da rua vi meninos de rua – corrijo aqui a gafe – crianças procurando latas para vender e, ocasionalmente, comida em um contêiner.
A felicidade foi-se. Mas continuei descendo com minhas compras. Pacote a pacote. O porteiro foi me ajudar. Na verdade, não era tanta compra assim, afinal também tinha aluguel para pagar e contas básicas. Mas não conseguia deixar de comparar minha cena com a cena ao lado. Abri uma das sacolas. Peguei um daqueles pacotes de bolachas de água e sal três em um, retirei um deles e dei para as três crianças.
Subi as escadas um pouco mais aliviado. Que nada. Quando entrei e comecei a guardar tudo, caiu uma pedra sobre minha consciência. Quantos eram? Três. E você? Um. Então, por que guardou dois pacotes e deu um? Você, decididamente, senhor Iago da Silva, não fez seu papel.
Sentei. Fiz uma xícara de café. Abri um dos pacotes de bolacha. E descobri, pasmo, que eu fazia parte de uma outra massa opressora e que, como tal, era incapaz de me prejudicar, de tirar o meu conforto de ter dois pacotes de bolachas, para alimentar três bocas. Enquanto oprimido, eu o era apenas em relação às futilidades e excessos que não podia pagar. Só. Então, não era oprimido, mas deprimido. Elas, as crianças, também não eram bem oprimidas, mas esmagadas e talvez àquela hora já tivessem jogada todas as bolachas fora, porque não eram a resposta para o problema delas.
E nem para o meu. Em minha qualidade de deprimido e de opressor, tomei meu café, comi minhas bolachas e percebi que é mais difícil do que se pensa se colocar na posição de opressor. “Eu sou mais um opressor” - não, não dá mesmo. Pesa. Decidi continuar como deprimido. Acordei, mais uma vez, reclamando de minhas mazelas, a Internet cortada, o jornal sem pagar, a academia que não conseguia começar a fazer por falta de dinheiro, o sapato novo que vi na loja e não levei, o iogurte que subiu de preço, aquele CD novinho em folha do cantor que mais gosto...

Ana Cristina Almeida Vilela


 
 

« Voltar