O quarto proibido. Após
a morte da minha esposa - 60 anos de casamento - uma mescla de tristeza
e de ausência me dominou. Vivíamos na cumplicidade e na “amizade”,
que somente o convívio pode nos proporcionar... e a paciência,
é óbvio. Logo após a sua morte, procurava-a em todos
lugares, em cada imagem.... e podia vê-la, sorrindo para mim. Costumávamos
acordar cedo, ler o jornal e assistir a TV, e depois do almoço,
sempre jogávamos carta.... era o nosso habito, o nosso vício....
passatempo.... e senti a ida dela sem ao menos uma despedida. Sem.....
Preocupados por não
ser mais jovem - 82 anos bem vividos - os meus filhos e netos resolveram
retirar todos os objetos que pudessem me trazer a sua imagem, e não
precipitar uma possível esclerose que acreditavam estar me dominando...
“esclerose, eu.... "maledetti"". Não os poupava das injustiças
que estavam me fazendo.... falavam para mim: “Tá certo.. o senhor
está certo”. Mas não me davam razão.... e, por
vezes, me chamavam de velho ranzinza.... não adiantava tentar.
Uma vez tentei arrombar
a porta do quarto, e descobri que não tinha o mesmo vigor da juventude.
Antigamente pulava muros, roubava mangas.... e fugia dos tiros de espingarda
de sal do Seu Saul.... velho muquirana. Era divertido. Muitas dessas e
outras lembranças estavam presas naquele quarto. As fotos que tirava
com os meus amigos..... numa São Paulo que não era só
concreto, e num rio Tietê que não era apenas poluição.....
nadávamos, pulávamos dos trampolins que existiam nas margens,
e a farra ficava grafada nessas estimadas fotografias. Devia fazer uns
40 anos que não as via..... ou mais. Esta frase me denuncia.
Aproveitando que a minha
filha mais velha estava dormindo - foi para cama mais cedo por estar gripada
- e o meu neto foi viajar com os amigos, resolvi fazer uma última
tentativa.... passaram 5 meses me impedindo de entrar lá. Invadi
o quarto da Nanda, e peguei a chave que estava junto ao molho dela, na
cabeceira.... ela se mexeu, virou de lado e continuou a dormir profundamente.
Que susto!!!. Saí do quarto tentando fazer o mínimo de barulho
possível, mas as juntas rangiam mais do que a velha porta.
Consegui!!!. Enfim entre
nós, somente chaves e a porta.... que foi facilmente suplantada,
e logo estava aos pés do velho baú.... quantas vezes coloquei
as coisas lá e as esqueci. A lembrança dos meus antigos amigos.....
estejam onde estiverem..... me reavivou a vontade de rever as memórias
perdidas. Abri o baú, pronto para me encontrar com o meu passado,
e qual não foi a minha surpresa.
As traças e o tempo,
sem a devida limpeza, estragaram a maioria das fotos.... pouco se podia
reconhecer, e se aproveitar.... a tristeza foi completa. Consegui ver os
meus amigos.... quase sumindo.... sumindo.... em outras fotos, os meus
filhos praticamente amputados para o almoço das laboriosas traças.....
O pouco das memórias
que ainda existem vão morrer comigo, em mim. E só sobrou
uma única foto, inteira e sem nenhum arranhão, a da falecida,
e estava sorrindo. Parecia provocação. Uma súbita
RAIVA me atingiu..... e comecei a gritar.... “Maledetta, MALLLLEEEEDETTTA”.
A minha filha acordou e
veio ver o que estava acontecendo. E disse que era por isso que não
me deixavam entrar no quarto, foi exatamente assim: “Pai, eu sei como devem
existir memórias dolorosas..... e a saudade, o fato dela ter te
abandonado para ir para a outra vida.....”. Interrompi abruptamente a frase,
e olhei bem para ela mostrando a foto. E expliquei que não se tratava
de saudades ou esclerose....
Olhava foto.... o rosto
dela, o sorriso irônico da velha.... que foi embora sem uma despedida,
um aviso....e principalmente, sem pagar o dinheiro que me devia dos mais
de 2.000 jogos ou 40 anos de biriba que jogamos.... e cujo último
desejo foi “doar”.... vocês leram exatamente isso... doar esse “meu”
dinheiro, a sua poupança, para o vagabundo do sobrinho dela dar
um jeito na vida.... não preciso nem dizer, parece mesquinho....
mas era o meu dinheiro.... e bem que ela dizia que uma dia iria virar o
jogo. “Vecchia Maledetta!!!”
Fernando Lusvarghi