GIBIS

     Existem tardes antigas, amarelecidas, que se desembrulham e reaparecem a nossa frente, configuradas por intermédio de outras, recentes como esta, que sutilmente resgata lembranças e as insere no presente marasmo das sensações cotidianas. Tarde ensolarada, com bandeiras coloridas nos varais da vizinhança regendo o alarido da meninada que se esbalda atrás da cafifa avoada: lá se vai, por sobre muros e quintais, esvoaçante, fugidia, quero ver alguém me pegar.
     Do seu posto de observação, camuflado entre as folhas de uma das mangueiras que enfeitam o seu quintal, o garoto viaja no dorso da pipa, chupando deliciosas carlotinhas, fotografando a paisagem suburbana, espiando a casa do vizinho. O olhar graúdo faz linha pontilhada até um monte de gibis fresquinhos sobre a mesa da sala: misterioso alvo, desconhecida aventura.
     No dia-a-dia das brincadeiras solitárias, trepando em árvores, saltando por sobre plantas e pedras, fazendo cabaninhas nos arbustos do terreno, o menino faz o bandido e o mocinho no seriado imaginado e produzido por ele mesmo. Pequeno homem das selvas ,que se abala dos galhos de flexível paciência da velha árvore, cai no chão e está morto, estatelado na terra fofa, espaventadas as galinhas do seu cotidiano ciscar. Mas o guri se levanta e sai, dinâmico, no nobre intuito de salvar a humanidade que habita o seu quintal da fúria interplanetária do Capitão Marciano. O herói afunda a cabeça no tanque de água até a borda, emerge refeito e sacode os cabelos com vontade, só para ver tudo girar ao seu redor, o sol, o céu, as nuvens, as folhas; tudo girando, para se cair de novo no chão.
     Um dia, percebera o monte de gibis se engraçando lá do território do vizinho. Reparou na displicente dança das folhas ao sabor da brisa que entrava pela janela da casa, exibição que lhe infundia uma luxuriante cobiça, mediante a mostra de pequeninas partes do alvo do seu desejo, nesgas de quadrinhos coloridos, cujas partes mais tenras permaneciam ocultas. No dia seguinte, as revistas continuavam lá; no outro também, e de tal modo nos demais, que o garoto entendeu-as como esquecidas, largadas pelo desprezo de quem já as apreciara e delas não queria mais saber. Assim, refogando as idéias no caldinho da ansiedade, bolava um jeito de ter os quadrinhos em suas mãos e sob os seus olhos, os olhos de um gibiseiro inveterado, aprendiz das letras nos balões das histórias dos gibis, em detrimento das insossas cartilhas. Pensou em, simplesmente, pedi-las ao vizinho, Seu Amazonas, homem bonachão, sempre às voltas com seus passarinhos, não se negaria a emprestá-las... Mas tinha o acanhamento amordaçante, a encabulação intransponível: e se ele negasse o empréstimo? A rala disposição de agir pelos meios conscienciosos recuava, deixando que os receios invadissem o menino e dúvidas apontassem para ramificações sub-reptícias. Os gibis não seriam do vizinho. Talvez estivessem reservados a alguém. Seu Amazonas não quereria emprestá-los por desconfiar do zelo na sua conservação... E o guri permanecia na sua guarita, revezando-se consigo mesmo, arrepiando-se de desejo quando o vento gaiato mais uma vez ia bulir com as revistas. Quanta história a ser degustada com a volúpia da curiosidade lentamente saciada...
     Um proposta nova, de pegar os magazines sem pedir a ninguém, foi-se delineando sutil, envolvente, descartando alternativas nas pragmáticas cismas do guri. Considerações morais não encontraram amparo naquele caso, pois se tratava de uma conquista, com seu legítimo direito, de gibis novos e desconhecidos, que se mostravam de uma forma provocante, todos os dias, como se a elas e ao mundo pouco importasse o seu próprio destino. Além disso, à sensação inebriante de um desejo em vias de ser realizado se juntava o nervosismo gostoso de uma aventura proibida.
     O menino começou a traçar estratégias, riscando a terra, desenhando a casa e o muro, calculando distâncias e tempos, organizando imagens, espiando o alvo. Via-se executando o assalto, tudo correndo de uma forma destra e rápida: lá estava ele, verificada a ausência do vizinho, saltando o muro e caindo sorrateiro no quintal, olhando para os lados e pulando a janela para agarrar os gibis e voltar, num lance não menos fulminante. Mas, o temor de um movimento errado, de um imprevisto fazia a confiança no sucesso da empreitada se esvair, e a ligeireza do ato se tornava uma angustiante e perigosa eternidade. O garoto procurava ajustar o bom desempenho como parte inalienável da agilidade com que os segundos passariam, conduzindo-o; assim, conseguiria o seu intento, voando lado a lado com o tempo. Vinha, então, a sombria sensação de medo, de falta de coragem para semelhante gesto. Pular o muro dos outros, entrar na casa dos outros, pegar na mão-grande revistas alheias - e se não desse certo? Afligia-se, refazendo todo o plano em exaustivas especulações. Engendrava um meio diferente para rejeitá-lo mais adiante e trazer de volta aquele básico, o primeiro que concebera. mais simples, de ação instantânea.
     Tinha um período no meio da tarde, o guri descobrira, em que a casa do vizinho silenciava. O rádio, que funcionava o tempo todo — Seu amazonas dizia que era para animar os passarinhos — , ficava desligado, nesse meio tempo. Abraçado ao seu galho, como um felino à espreita, o guri pressentia um vazio pelo interior da casa vigiada. Seu amazonas estaria dormindo, ou teria saído — e o garoto apostava alto nessa hipótese; quando ia comprar pão para o lanche vespertino, ali por aquela hora, costumava encontrar o vizinho na padaria, bebendo cerveja, e este sempre encarnava: "Vai direitinho com essa marroca, hein, senão Dona Maria lhe esquenta o couro!..." Era o momento no meio da tarde: a casa calada, cheia de paz, imersa no palpitante silêncio do chilrear dos passarinhos, do canto das cigarras, da clorofila apaziguante das árvores. A casinha de paredes amarelas, quieta e ambígua, oferecia o seu tesouro, benditos gibis...
     Uma vez decido o caminho, suavizou-se, para conforto interno, a gravidade que poderia haver na situação, resolvendo-se que, após a conquista dos gibis e sua leitura, eles seriam devolvidos. Diria que tinha entrado na casa para dar um recado e, sem encontrar ninguém, mas avistando as revistas, decidira levá-las emprestadas, comunicando depois ao Seu Amazonas. Era perfeito. E numa outra tarde mansa, cheirosa e de barulhos amenos; o rádio desligado, a terceira hora, Seu Amazonas, com certeza e com cervejas, na padaria; o menino decidiu agir. Os gibis estavam há dias no mesmo lugar, esperando, nada custaria passar-lhes a mão para dar uma lidinha. Viu o menino a mais propícia das ocasiões se apresentar, plenamente exeqüível, a sua frente. Estimou o tempo da ação em menos de um minuto, respirou fundo e, empurrado pela invisível mão da coragem fortuita, pulou o muro e caiu no chão duro do quintal do vizinho. No impulso para se levantar, já foi saltando a janela e pousando gatunamente no soalho da sala. As revistas estavam sobre a mesa, que era o único móvel do pequeno cômodo. Transtornado pelas batidas descompassadas do coração, despido de todo o sangue-frio que esperava lhe provir, lançou as mãos suadas e frias sobre a pilha de gibis. Abraçou as revistas com sofreguidão e júbilo,empolgado com o sucesso da missão. Mas o momento de frenético enlevo foi espocado por um ruído no interior da casa: passos. O guri gelou. Caramba, tinha gente em casa! E vindo para a sala! Sentiu que não daria tempo para sair voado pela porta da rua. Num gesto instintivo, enfiou-se debaixo da mesa, apertando-se contra a parede, segurando a respiração ofegante, as entranhas num redemoinho.
     Seu amazonas, mesmo dormitando no quartinho colado à sala, ouvira um barulho que parecia vir do quintal. Contrafeito, lembrando-se dos gatos que entravam pela sua casa a fim de espreitar os passarinhos, levantou-se e foi verificar o que acontecia. Não devia se levantar por tão pouco, pensou, as gaiolas penduravam-se a salvo dos bichanos; mas aproveitaria para fechar a porta da sala.
     Debaixo da mesa, o guri viu as panturrilhas peludas, os pés, as sandálias de dedo se arrastando pelo assoalho gasto e opaco. Sentiu-se enjaulado e se lembrou da história das crianças presas numa gaiola, enquanto eram cevadas dia e noite pela bruxa, que as queria como prato principal. Os pés enorme estacaram defronte à mesa, viraram-se na sua direção. Os dedos grossos e escuros se espreguiçaram nas sandálias; pareciam querer levar os pés para outro lado, e o menino se encolheu mais, aflito, torcendo desesperadamente para que o vizinho desse meia volta e sumisse dentro da casa. Mas não, Seu Amazonas, que não percebera nada de anormal no recinto, olhou para a mesa e deu pela falta das revistas. Ouviu outro ruído e se deu conta da situação. Abaixou-se bruscamente e levantou a toalha da mesa: lá estava o guri, agarrado aos gibis, em estado de choque.
     Com a boca seca, irritado e sem a menor simpatia, o vizinho esbravejou com a voz que valia uma trovoada: SAI DAÍ, MOLEQUE!!   . E o guri percebeu que o seu mundo ruíra.

Galdino Moreira Neto


 
 

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