Qual é afinal meu melhor sonho?
Qual é o filme que minha vida insiste
em assistir?
Sim, é uma insistência magnética,
que orbita meus sentimentos. As mesmas imagens de um passado juvenil.
Chego não entender essa ilusão,
esse primeiro amor que me escraviza desde sempre.
Vivi outros amores, assisti outros luares;
a seiva do meu êxtase sangrou muitos desejos.
E o meu “primeiro amor”, como estará
ela? – pergunto a mim mesmo, com a idéia fixa.
Muitos anos já se passaram, afinal.
Nas voltas que eu dei pela vida, e as voltas
que a vida deu em mim, encontrei meu amor maduro. Uma mulher que me arrasta
para dentro de si pelo seu olhar gravitacional. Eu não me faço
de rogado nessas horas, mergulho até meu fôlego não
mais agüentar.
Tudo em ordem, no prumo, penso eu.
Então, meu Deus, ao me distrair vem acompanhar-me
o primeiro amor – espectro –, por quê?
Já ensaiei pegar a lista de telefone, visitar
os amigos comuns do passado... alguma porta que seja para voltar e reencontrar
o que ficou para trás. Mas não faz sentido. Analiso.
Vejo que realmente não há necessidade. Nada há para
construir ou para demolir.
Nesta noite de verão, os planetas estão
realinhados de tal maneira – acredito eu – que a força cósmica
do destino faz-me extremamente vulnerável, com os pés na
lua e a cabeça nas marés.
Ouço uma voz chamando ao portão. Ao
atender levo um choque estonteante:
– Nossa! – solto um espanto do peito.
Nada mais, nada menos, é o meu “primeiro
amor”, sorrindo.
Nunca minhas pernas pesaram tanto.
Depois de conviver com o plasma durante anos, agora,
à minha frente, ela, sorrindo, sem falar, estendendo suas
mãos.
Ela aqui, por quê? Eu estou tão bem
com minha família, minha rotina...
Vou ensaiando o que vou dizer, articular alguma
idéia; reparo que ela está exatamente igual, o tempo é
um mistério...
Ao chegar bem próximo, ela olha por cima
dos meus ombros e sai por detrás de mim meu filho juvenil. Eles
se abraçam amorosamente.
Meu Deus, o que está acontecendo?
Será vingança?
Como desvendar tal loucura?
Não, por parte do meu filho, não.
Sempre nos demos muito bem. Somos verdadeiros amigos. Quanto a ela
também sempre nos demos bem, até demais.
Não tenho coragem de fazer qualquer coisa
para interferir.
Eles saíram abraçados. Caminharam
pela noite.
Estou completamente aturdido.
O planeta começou a girar em maior velocidade
em seu eixo. E eu fora do meu.
Não me contenho mais. Pego o carro e vou
atrás do casal sem pé sem cabeça, para mim. Ela não
me escolheu, por quê? Será que envelheci?
Ando pelas ruas do bairro. Olho pelo espelho retrovisor
e detalho com olhar investigativo o meu aspecto. Há em mim cabelos
brancos ou rugas demasiadas?
O que devo fazer? Qual a desculpa? Quero olhar seus
semblantes de bem perto. Quero comparar. Estarão felizes? Será
sério?
Será que estão seguindo agora pelos
mesmos caminhos pelo bairro aos quais conheci tão bem ao lado dela?
Ah! lá estão eles. A história
se repete.
Apresso-me e, a meio fio, grito pela janela:
– Filho não vá chegar muito tarde
em casa – somente para dizer qualquer coisa.
Eles sorriram cortesmente.
A segurança deles me desequilibra mais ainda.
Saí em disparada fugitiva.
Como voltar para casa?
Estaciono, começo a andar.
É tarde. Não há ninguém
pelas ruas. O que será que conversam?
Depois de passar pela calçada da igreja
de São João Batista, viro a esquina e estanco como mula
que vê assombração. Na outra esquina, parado à
minha espera, meu filho, sozinho e sorrindo.
A juventude e a velhice em esquinas opostas.
O silêncio ficou mais alto ainda.
Eu entendi ali, naquele momento, que ele fizera
opção por mim. Caminhamos um para o outro. Da sombra surgiu
um parente meu que tem a peculiaridade da dificuldade em tomar decisões.
Disse ele, chorando:
– Temos que tomar decisões, sempre tão
difíceis, por quê?
Ele sabia de tudo que estava ocorrendo.
Respondi aliviado, com súbito entendimento:
– Temos que tomar decisões sobre as questões que nos
exige muito mais. Não há como fugir. Cedo ou tarde tem que
ser feito. Encarar de frente. Assim temos a chance de amadurecermos.
Exorcizarmos os fantasmas que nos acompanham, ou aqueles que aprisionamos.
Nisto o meu “primeiro amor”, bem próximo,
chora copiosamente por detrás de uma coluna da casa sem luz. Aproximo-me.
Tento ser gentil.
– Eu sei como você está se sentindo.
Senti-me assim muitas vezes. Meu filho não quis ou não pôde
ficar com você, e eu francamente agora penso como ele, da mesma
forma, apesar do carinho que tenho lhe guardado.
Preocupado em esclarecer melhor, continuei:
– Não, não pense que é vingança,
ou algo assim. Você foi importante para mim. Lembra-se quando
começamos a nos dar os primeiros beijos? Quando ficávamos
nos agarrando, rindo, olhando preocupados com a possibilidade de vir alguém...
Foi minha primeira experiência.
Ela somente respondeu com os olhos que não
se lembrava.
Isto me balançou barbaramente.
Como ela não se lembra? São meus melhores
momentos. Momentos eternos durante todos esses anos...
Pude observar, então, que nem sempre os “meus”
melhores momentos, foram os “nossos”. Afinal o ser humano tem capacidade
de sentir o individual, o particular, segundo sua carga de emoções
psíquicas, emotivas e interesses próprios...
Ela chora ainda.
Preocupado para diminuir aquela angústia,
disse-lhe:
– Veja o cinema onde íamos namorar. Estão
demolindo o prédio para transformá-lo em estacionamento.
Mesmo isto ocorrendo continuará existindo na lembrança as
boas tardes de domingo. O que passamos de bom ao espírito, as gentilezas,
os caminhos, as energias permanecem de alguma forma. Para uns que passarem
por ali será apenas um estacionamento, para outros será onde
ficava o cinema com gosto de namoro.
Pela primeira vez ela falou:
– Eu rasguei todas as fotos suas e as poesias que
você fez para mim – com certo ar de arrependimento.
Respondi de forma desprendida (não sei como):
– As fotos podem amarelar, as vistas se cansarem
para continuar a leitura... Por isso, o ato do presentear, do doar-se é
o bom presente, a sensação que fica e não se perde.
O nosso amor, como o prédio do cinema que foi ao chão, permanecerá
a sensação das boas tardes de domingo. Fique tranqüila,
da minha parte está tudo bem.
Ela não chorava mais.
Dirigi-me então ao meu filho:
– Com sua ajuda pude exorcizar o meu “primeiro amor”.
Passa a ser uma boa lembrança, não mais uma doença.
Estou curado.
E próximo a abraça-lo disse ao seu
ouvido sem nenhum sentimento de egoísmo:
– Obrigado por você ter-me escolhido.
Enquanto concretizávamos o nosso abraço,
uma estupenda surpresa. Eu estava abraçando a mim mesmo.
Contrariando a lei da gravidade, dois corpos tomavam o mesmo lugar
no espaço. Lembrei-me que nem mesmo tinha filho assim desta idade
- Freud não estava ali para explicar. O meu filho, na verdade era
eu em minha juventude, que agora se unia com o meu ser envelhecido. Tornava-me
assim, uma unidade mais forte e experiente. O passado e o presente
se uniam sabiamente. Precisei eu mesmo ir buscar, resgatar, lá dentro
de mim, trazendo à tona, para me salvar, para me curar, o meu “eu
dos anos incríveis”, dos cândidos sentimentos, juntamente
com o meu “primeiro amor”. Vieram me socorrer, pois como náufrago
inconsciente eu os havia agarrado e os levado ao fundo da angústia,
por não aceitar que as pessoas e as situações simplesmente
mudam.
Eu que vivia dicotomizado, tenho a possibilidade de viver, agora
livre, plenamente o meu melhor filme, o meu melhor sonho: o meu presente.
Nilton Bustamante