— Não fala
nada, porque tu podes soltar alguma mentira, Thanassis... Deixa que eu
falo por ti!
Diana era “cuspida e escarrada”
a mamãe. Falava alto e gesticulava como a velha quando está
fofo-cando com a vizinha. Mamãe era uma mulher de fibra e geniosa
que um dia casou com um grego e teve nós dois. Por isso mesmo, quem
seria eu para contestar minha irmã que vinha falando pelos cotovelos
enquanto caminhávamos pelas ruas da cidade? Além do mais
foi ela quem conseguiu marcar a reunião com “seu” Giá-como,
o velho italiano da Casa das Armas que devia favores ao seu patrão
que era presidente da Associação Comercial. Eu precisava
do emprego de office-boy para conseguir minha independência e não
ter que traba-lhar com meu pai, mesmo que tivesse que encarar o carcamano
que todos achavam ser meio doido.
— E se ele te aceitar, vê
se não me envergonha! Tá na hora de largar essa mania de
ficar lendo gibis em qualquer lugar... Vê se faz algo de útil
para ajudar nas despesas lá de casa, pois já não suporto
mais brigar com papai quando ele quer tirar teu couro...
Era verdade. No fundo, no
fundo, Diana me adorava e por várias vezes, da mesma forma que ma-mãe,
evitou que o velho me batesse por causa dos gibis.
Enquanto andávamos
em direção à loja, fui me recordando das brigas que
tive com o velho por cau-sa do gibis. “No teu idade, Thanassaki [papai
sempre me tratava carinhosamente no diminutivo, mesmo quando estava com
raiva] eu sustentava todo o família e ainda tinha que desviar o
cabeça dos balas do metra-lhadora”, repetia ele no seu idioma portulênico
(português-helênico) ao lembrar dos tempos da guerra, quan-do
ainda morava na Europa. Uma vez, num ataque de fúria digno de um
ex-combatente grego, rasgou em quatro pedaços o Hulk (no momento
em que ele se livrava de balas de metralhadora...) que eu estava lendo
na hora do trabalho e espalhou pelo chão da confeitaria. “Ó
Socorro, do próximo vez que eu pegar este mole-que distraído
lendo estes porcarias, faço ele engolir a gibi”, vociferou o velho
grego para minha mãe.
Engoli em seco e fui juntar
os pedaços da revista, envergonhado com os dois únicos fregueses
que, constrangidos com a situação e de certa forma solidários
a mim, pareciam ter se engasgado com as bombas de chocolate que acabara
de servir-lhes. Mamãe, vestida sempre com seu avental branco, mais
parecia uma Ana Néri no front e, solidária, me dispensou
do serviço para “curar o coração ferido”, enquanto
discutia com papai. Era realmente um cenário de guerra.
Saí contendo lágrimas
de ódio e corri para o quarto no fundo da confeitaria. Comecei a
emendar o Hulk com pedaços de fita colante. Ele me olhava com a
mesma raiva verde, mas não parecia aquele monstro imponente. Parece
que finalmente tinha surgido alguém capaz de despedaçá-lo...
Meu pai, o Hulk grego! Chorando, me agarrei com o pôster do Homem
Aranha e balbuciei: “agora entendo o que é não ser compre-endido,
Peter”. Quem dera eu fosse como ele e pudesse sair me pendurando em teias
nos prédios mais altos da cidade, pelo menos para esquecer o vexame.
Creio que foi depois desse episódio que passei a me identifi-car
ainda mais com o Surfista Prateado. Me sentia como ele, preso num planeta
estranho e lutando para ultra-passar a barreira invisível colocada
por meus inimigos na estratosfera. Na verdade adorava todos os heróis
Marvel porque apesar de vencedores, quase sempre viviam num eterno conflito
consigo mesmo. Quem sabe se trabalhando como funcionário do italiano
maluco eu não perdia a mania? Ou quem sabe, o fato de traba-lhar
em meio a revólveres e espingardas, eu não quisesse cada
vez mais ser um herói de histórias em quadri-nho?
— Qual é a sala do
“seu” Giácomo? – perguntou minha irmã assim que entramos
na Casa das Ar-mas.
— Coração,
você segue direto por este balcão e dobra a esquerda onde
têm aquelas caixas de para-fusos, e depois sobe a escada – respondeu
o solícito balconista, um negro alto e magro que carregava em seu
sorriso branco um dente dourado, e não tirava o olho da saia curta
de Diana – Wálter! – gritou ele para outro funcionário
sorrindo ironicamente – mostra pra moça a escada e fica me devendo
essa...
Minha irmã agradeceu
sem entender a última frase, enquanto ele tentava acompanhar seu
rebolado descompromissado que eu, instintivamente, tentava encobrir encaixando-me
logo atrás. O tal do Wálter, sor-rindo e piscando para o
outro, fez uma mesura meio desengonçada, cheia de salamaleques,
mostrando o ca-minho e de repente sumiu de nossa frente.
Subimos os cinco degraus
da escada estreita e atravessamos a porta de vidro, encontrando uma linda
morena sentada numa mesa com diversos livros contábeis numa mão
e uma velha calculadora barulhenta, daquelas de manivela, na outra. Compenetrada,
nem sequer levantou a vista por cima dos óculos de aros grossos
diante da pergunta de minha irmã, e apontou para outra porta em
frente balbuciando um “pode entrar que ele está aí”. Educadamente,
Diana bateu à porta antes de entrar e ouviu um grunhido com sotaque
do outro lado: “ENTRA!”.
Nesta hora me dei conta
que estava a um passo de ficar frente-à-frente com o velho Giácomo
e senti um frio no estômago. Imaginei que ele me recebesse
como o velho J. J., o terrível editor de Peter Parker (o Homem-Aranha):
“Seu incompetente, onde esteve até agora! Estou te esperando há
dias para terminar o serviço...” Apesar dos meus 16 anos e de tantos
monstros que enfrentei junto com meus heróis, senti medo e acabei
segurando a mão de Diana quando entramos. Ela se espantou e sorriu
para mim, mostrando aquela covinha no queixo que era peculiar de nossa
família. Retribuí-lhe com minha covinha, mais relaxado.
— Bom dia senhor Giácomo!
Sou Diana, filha do “seu” Panayotis, lá da confeitaria Mega Alexan-dros.
O meu patrão, o “seu” Haroldo Carvalho, da Meridional Móveis
deve ter-lhe falado...
— Ah! Você é
a ragazza Diana, secretária do signore Haroldo, é vero? Io
já estava aspetando-te...
Falou de forma dura sem
se virar para nós o italiano, meio rosado e de cabelos mais brancos
que os de papai. Segurava um velho relógio de bolso nas mãos,
enquanto acompanhava pelo vidro da sala o movi-mento no balcão lá
embaixo. Fui acompanhando o estranho linguajar do carcamano, uma espécie
de portulia-no (português-italiano), mas como estava acostumado com
o sotaque de papai, não era difícil.
Fiquei imaginando meu velho
naquela sala. De certo riria muito do italiano e soltaria um peido, co-mo
era seu costume quando não conseguia segurar suas emoções.
Inda mais ele, que sempre gozava dos itali-anos. “Esses malácas¹
só sabem fazer macaron e pizza, e ainda assim roubaram muita coisa
de nós, gregos. O Império Romano não existiria se
non fosse a heláda²! Mega Alexandros era melhor que todos os
´pustis³` dos Césares!”. Natural do norte da Grécia
onde nasceu Alexandre, o Grande, papai vivia endeusando seu herói,
mas não queria que eu tivesse os meus...
— Tuo pai io vi unaltra
volta, e me parece uno uomo simpático, apesar de io non gostar dos
gre-gos... [Imaginei papai soltando outro peido...] – Mas a ragazza fale
que aspeta de me, pois estou molto ocu-pado...
Diana começou a falar pelos cotovelos, explicando que soube
através de seu patrão que o italiano es-tava precisando de
um rapazote para ocupar a vaga de office-boy na loja, e começou
a tecer elogios sobre mim dizendo que eu era um bom garoto, e que ajudava
meu pai na confeitaria, mas era alérgico a doces e por isso não
podia continuar trabalhando lá...
Nesse momento olhei para
ela e descobri que minha irmã tinha uma capacidade para mentir que
eu desconhecia. Ela piscou sutilmente e continuou a inventar predicativos
que eu nem imaginava que pudesse ter, como ser um menino organizado e bom
de matemática... Por pouco pus tudo a perder quando ela come-teu
o desatino de afirmar que nem sequer de gibi eu gostava! Tive o ímpeto
de desmenti-la, mas a entrada repentina da secretária dos aros grossos
na sala me impediu de cometer esse deslize.
— “Seu” Giácomo,
elas chegaram!
Como um raio, o velho carcamano
pulou da cadeira com os olhos faiscando e saiu correndo pela porta, deixando
eu e minha irmã sem palavras. Antes de descer o lance de escadas,
retornou e gritou para Diana: “o ragazzo está aprovado e já
pode começar agora!”. Virou-se pra mim e apontou uma velha bata
sur-rada jogada no canto e mandou que a vestisse e o acompanhasse. “Presto,
se non io te demito!”. Eu tinha ra-zão: ele era o próprio
J. J., patrão do Homem Aranha...
Atônito, peguei a
bata de cor vermelha que era de número menor que o meu e ficou apertada
no meu corpanzil, enquanto minha irmã, exultante, me ajudava a vesti-la.
Saí correndo atrás do patrão e me senti o próprio
Flash, o homem-relâmpago. Apaguei esta imagem para não me
desconcentrar do meu novo emprego, sem entender quem eram “elas” e porque
o alvoroço do velho. Desci o lance de escada e corri pelo balcão
passando pelo balconista do dente de ouro, e, distraído, acabei
me enroscando num rolo de corda de sisal e indo ao chão, detonando
gargalhadas cacarejantes do pessoal da loja. Enquanto me levantava e sacudia
a po-eira, percebi que o tal do Wálter (aquele das mesuras e salamaleques)
correu e se escondeu no vão da escada, enquanto Diana descia do
escritório. Aí entendi a piscada e o recado em código
(“e fica me devendo essa...”) entre os dois balconistas quando chegamos
na loja. Wálter simplesmente estava “brechando” minha irmã
que, incauta, descia a escada suavemente, dando tempo do malandro se deliciar
com sua calcinha!
Meu lado Hulk despertou,
e quando me preparava para correr na direção do tal de Wálter,
ouvi a voz do italiano vindo da rua:
— Vene qüi ragazzo,
e me ajuda a carregar minhas meninas!
O convite do velho armeiro
me desarmou. De repente, a libido de adolescente hipnotizou-se pelo erotismo
da frase. Enquanto me virava em direção ao velho, imaginava
quem seriam “as meninas”. Não seri-am sobrinhas italianas do “seu”
Giácomo, chegando fresquinhas da Itália? Ou quem sabe, um
novo grupo de funcionárias para dinamizar a loja? A imagem da escada,
o Wálter olhando a calcinha de minha irmã. Quem sabe dentro
de alguns dias não estaria eu no lugar dele olhando as calcinhas
das “meninas” do “seu” Giáco-mo. Meu lado cafajeste acabou suplantando
o do irmão protetor. Deixei de lado minha fúria e fui correndo
conhecer “as meninas”...
Ao chegar na rua, encontrei
apenas a velha camioneta do “seu” Lili do Mercado abarrotada de cai-xas
com as inscrições, “Este lado para cima” e “Made in Italy”.
Nada de “meninas”. Só caixas. Desolado, fiquei meio patético
na calçada, e só despertei quando recebi um beliscão
de Diana, que saía da loja e dava um último sussurro em meus
ouvidos: “sai do mundo dos sonhos, Thanassis, e aproveita que o italiano
pare-ce que foi com tua cara... Não me decepciona...”. Diana foi
embora rapidinho, já atrasada para o trabalho. Olhei pro velho
que me acenava desesperado mandando eu pegar um carrinho de mão
que estava na calçada, para carregar as caixas e levar para
dentro. “Minhas meninas...”, repetia sorrindo abobalhadamente o velho descabelado.
Passei pelo corredor empurrando
o carrinho e olhei pro do dente dourado com desprezo. Nem olhei pro tal
do Wálter. De repente, me dei conta de que estava trabalhando na
Casa das Armas e aqueles babacas seriam meus colegas de trabalho.
Além do mais eu não sabia para onde levar aquelas caixas...
— Meu nome é Santos.
– disse o do dente de ouro aproximando-se com a mão estendida –
Sem ressentimento, garoto! Eu não podia imaginar que você
seria colega de trabalho. Eu e o Wálter estamos acos-tumados a “brechar”as
mulheres que sobem aquela escada, para passar um pouco o tédio destas
tardes quen-tes. De repente, me sinto às vezes um verdadeiro Tocha
Humana de tanto calor!
Me derreti pro cara, pois
ele também parecia gostar de gibis.
— Você lê as
aventuras do Quarteto Fantástico?
— Sim! – disse ele com os
olhos brilhando – o Wálter também lê e parece mais
o Homem Borra-cha, quando se estica debaixo da escada para olhar os brotinhos
desprevenidos...
Rimos os dois, enquanto
Wálter chegava suando.
— Vocês dois! Parem
de rir que o “seu” Giácomo está chegando. Garoto, empurra
logo o carrinho ali pro paiol, e cuidado para não machucar as “meninas’...
E antes que eu me esqueça, sem ressentimentos... [Esticou o braço
por cima da cabeça de Santos esperando que eu a apertasse]
— Sem resentimentos, Homem
Borracha!
Agora éramos os três
gargalhando no corredor, até que uma voz cavernosa nos trouxe de
volta à realidade:
— PORCA MISÉRIA!
Vou demitir os três agora mesmo, se non levarem minhas “meninas”
lá pra dentro, ecco!
Sumimos do pedaço
com uma rapidez de fazer inveja ao teletransportador de Jornada nas Estre-las...
Enquanto nós, Homem
Aranha, Tocha Humana e Homem Borracha, empurrávamos o carrinho cheio
de caixotes em direção ao paiol da Casa das Armas, meus dois
novos parceiros explicavam como era o traba-lho na loja. Perguntei que
paranóia era aquela do velho chamar as caixas de “meninas”.
— São as “Berettinhas”
dele, disse Santos.
Como eu continuasse na mesma,
Wálter-borracha pegou um pé-de-cabra no chão e abriu
um dos caixotes. Dentro havia vários estojos forrados de veludo.
Ele pegou uma e abriu, mostrando dentro uma linda pistola niquelada 7,
65 mm, da Beretta. Fiquei embasbacado ao ver o brilho das “Berettinhas”
e apenas uma frase me veio à cabeça:
— Por isso que o italiano
é rico!
— Nem fala isso perto do
italiano, que ele te come vivo! – disse Santos-tocha, no alto de sua expe-riência
– As 7, 65 da Beretta são mais que uma religião para o velho,
e este paiol é o altar...
Enquanto descarregavam as
caixas, empilhando-as com carinho ao lado do paiol gradeado, os dois foram
me dando mais detalhes sobre a mania do velho. Contaram que o avô
do carcamano trabalhou na len-dária fábrica italiana de armamentos
no século passado, o mesmo acontecendo com seu pai e seus oito tios.
Ele tinha sido o último da família a seguir a tradição,
mas quando estourou a II Guerra Mundial, teve que deixar a Itália
para fugir dos fascistas de Mussolini, vindo parar no Brasil. Trouxe consigo
uma ‘berettinha” niquelada escondida num sapato carcomido. Comeu o pão
que o diabo amassou, mas não vendia a “Beretti-nha” sem balas. Depois
de anos, conseguiu montar pequenos negócios e juntar dinheiro até
criar a Casa das Armas, que abastecia a cidade e os garimpos com todo o
tipo de armamento.
O paiol ficava no porão
do velho casarão, que dava de frente para o cais de arrimo. Havia
muita u-midade no local, pois apesar de existir o muro de contenção
de águas, o rio se infiltrava deixando a casa pra-ticamente sobre
areia e lama.
— Esse velho sovina ainda
vai perder tudo isso! Um dia essa casa cai e adeus paiol, adeus para as
7, 65... – profetizava Santos-tocha.
De repente o velho chegou.
Ficamos mudos esperando as ordens. A cena que presenciei foi patética:
o velho carcamano pegou uma lona de plástico e cobriu suas costas,
ajoelhando-se como se fora um sacerdo-te em frente ao paiol, e começou
a murmurar alguma coisa em italiano. Santos e Wálter fizeram o mesmo
e me forçaram a ajoelhar. Quando tentei protestar, fizeram o sinal
com o dedo na boca me mandando calar. Meia hora depois, o velho levantou,
abriu o cadeado do paiol e ficou nos olhando. Era a senha para que saís-semos
do local sagrado. Ele era o único que podia tocar nas “Berettinhas”
e acomodá-las uma a uma nas es-tantes ao lado das demais armas como
Winchesters, Colts, Smith & Wesson, e as nacionais Taurus, Boito e
CBC.
***
Vários dias se passaram
desde aquela cena. Eu já estava entrosado no serviço e até
me esquecia um pouco dos gibis. Wálter e Santos continuavam espiando
as calcinhas da secretária ou de qualquer mulher que fosse ao escritório
do “seu”Giácomo”. Eles bem que me tentaram a me esconder debaixo
da escada, mas com medo de ser pêgo no flagra, me esquivava sempre.
“Esse nem pra uma maria-cinco-dedos não serve”, dizia Santos a Wálter
fazendo o característico movimento pra cima e pra baixo com a mão
fechada.
Toda vez que o italiano
vendia uma Beretta 7,65, ficava abatido. Se trancava no escritório
por lon-gas horas e não voltava para o balcão. Santos sabia
que nesses dias eles tinham que trancar tudo e deixar ape-nas escorada
uma porta lateral por onde o velho sairia mais tarde. Era um ritual parecido
com aqueles sacrifí-cios romanos.
Talvez por ser filho de
um grego, o velho carcamano se identificasse comigo. Afinal, apesar de
tudo, gregos e romanos eram quase povos irmãos. Um dia, quando acabávamos
de descarregar novas caixas de 7, 65 no paiol (após aquele ritual
todo), eu e os dois nos levantamos para deixar o velho sozinho com suas
“me-ninas”, quando de repente ele me segurou pelo braço e disse
com uma voz serena: “Thanassaki, fica com me!”..
Todos ficamos surpresos,
e eu muito mais. Primeiro pelo tom quase paternal de falar comigo, pois
depois de algum tempo trabalhando, ele nunca havia me chamado pelo nome,
sempre se referindo a mim como ‘ragazzo’; e segundo, por ele quebrar um
ritual de décadas: ninguém nunca tinha ficado a sós
com o velho dentro do paiol. Passado o susto inicial, Santos e Wálter
me deixaram com o velho.
Ele me fitou por alguns
instantes, sem dizer uma palavra sequer. Fiquei nervoso como da vez em
que tive minha primeira transa com a Maria Tanajura, prostituta do Beco
dos Amores que havia “iniciado’ quase todos os colegas do colégio.
Meu coração pulsava forte e eu suava às bicas. Pé
ante pé, o velho girou a chave no grosso cadeado de 70 mm e em seguida
girou a outra chave na fechadura da pequena porta com grades de ferro com
espessura de duas polegadas. Nesse instante parou, hesitante. Teria se
arrependido? Me enxotaria com um berro? Eu já sentia um frio na
barriga, igual ao do dia em que estive pela primeira vez em seu escritório,
com Diana. Mas o velho prosseguiu: segurou a grade e foi abrindo-a lentamente.
Um rangido estridente, típico de filme de terror saía das
ferragens enferrujadas e atazanava meus ouvidos. O velho impas-sível.
Aberta a porta, sem dizer
nada, “seu”Giácomo fez apenas um sinal mandando que arrumasse as
7, 65 nas prateleiras. Nervoso, peguei o primeiro estojo e arrumei sobre
outros que ainda restavam lá.
— Non é assim, Thanassaki!
– disse ainda sereno, o velho italiano. – As mais nuovas têm que
ficar em cima das velhas, capisce?
Eu entendi perfeitamente.
Fui arrumando as “meninas” uma a uma e quando já estava no último
es-tojo, o velho disse: “Aspeta”. Carinhosamente, “seu” Giácomo
abriu o estojo, retirou a “Berettinha” e colo-cou-a na palma de minha mão.
— Sente a suavidade desta
7.65, Thanassaki. Isto non é uma arma, é uma obra de
arte.
Embevecido, senti o que
o velho queria me dizer. Por um instante, tocando naquela pistolinha nique-lada
que custava caro e só homens ricos que vinham de longe compravam,
me senti num mundo transcenden-tal, mais onírico que o mundo dos
gibis. Flutuei mais solto do que se estivesse na prancha do Surfista Pratea-do
ou nas teias do Homem Aranha. Era uma sensação indescritível,
que foi cortada pela voz aveludada do velho falando a coisa mais poética
que eu já tinha ouvido:
— E pensar que estas “meninas”
cospem morte...
Olhei para o velho e senti
uma lágrima escorrendo-lhe pelos olhos. Ele sentou num caixote e
come-çou a me contar detalhes de como são fabricadas as armas.
Disse que quando tinha minha idade, acompanhou seu pai para a fábrica
e aprendeu a montar as peças que formam a pistolinha. Seus olhos
brilhavam e eu me encantava com o lado poético do velhinho rude.
Pensei no meu pai, que sempre que brigava comigo, fazia comparações
com seu passado (“No teu idade... eu sustentava todo o família e
ainda tinha que desviar o ca-beça dos balas do metralhadora”), mas
nunca tinha tido um momento terno como esse.
Papai falava das metralhadoras
como monstros cuspidores de morte. “Seu” Giácomo também falou
isso das “Berettinhas”, mas como se não as condenasse. Como se elas
fossem inocentes e o homem fosse o culpado de transformá-las em
coisas mortais.
Contou-me de como a família
Beretta construiu um império multinacional, fabricando armas desde
1426! Detalhou as especificidades de cada arma, pegando um catálogo
onde estavam as dezenas de outros modelos. Perguntei porque só vendia
as 7.65, já que sempre surgiam fregueses pedindo a M9, famosa arma
militar aprovada pelos americanos. Ele fez cara de muxoxo, afirmando que
eram armas imponentes e que serviam especificamente para matar.
— Mas o senhor falou a mesma
coisa das “Berettinhas”... – argumentei candidamente.
— Quem compra a 7.65, guarda
no cofre para se sentir seguro dos ladrons, Thanassaki. Ela só vo-mita
a morte, se for provocada... A M9 non, ela vai a campo pronta para matar,
como se fosse ofício. É a di-ferença entre um São
Bernardo e um Doberman.
Nunca tinha me ocorrido
tal imagem. Do jeito que ele falava, as armas tinham vida e se dividiam
en-tre boas e más. As horas passaram, e depois de arrumarmos tudo,
o velho disse que me deixaria em casa, mas antes precisava me mostrar mais
uma coisa. Subimos até seu escritório, e ele abriu o cofre
cheio de segredos númericos (antes me fez virar de costas para não
ver os números). Quando a porta se abriu, ele tirou de den-tro de
um estojo mais aveludado, com letras douradas, uma 7.65 de modelo bem antigo.
Pela descrição ima-ginei que fosse aquela que ele trouxe
da Itália. Ele confirmou, e deixou que eu a olhasse de longe. “Esta
solo io toco”, avisou já com o característico tom cavalar...
No dia seguinte, Santos
e Wálter me aguardavam na porta de casa. Me crivaram de perguntas.
Que-riam saber o que tinha acontecido. Havia um misto de admiração
e inveja em seus olhos, mas como tinha prometido ao velho não contar
nada, resolvi inventar uma história para que eles não ficassem
pegando no meu pé. Disse que na verdade o velho me segurou porque
estava com dores nas costas, e queria que eu abris-se os caixotes. Para
que eu não visse nada do que havia no paiol, me forçou a
vendar meus olhos. Eles acom-panhavam a narração absortos
e embasbacados, enquanto seguíamos para a loja. No final me gozaram,
alivi-ados, dizendo que eu tinha me ferrado. Era isso mesmo que eu esperava
que pensassem e quase solto um pei-do como papai...
***
A coisa que eu mais gostava
de fazer na Casa das Armas era sair para cobrar os devedores. “Seu” Giácomo
me “deu” uma bicicleta e uma vez por semana eu ia cobrar os empresários
que faziam compra em sua loja. Havia cobranças em lugares distantes
do centro, inclusive numa fábrica de molho de tomate, do “seu” Manoel
Peres. Esse também era sovina, e sempre que eu chegava, me dava
um “chá de cadeira”até o final do expediente, para depois
dizer, “passa amanhã”.
Sabendo disso, toda vez
que “seu” Giácomo me mandava na fábrica, eu desviava o caminho
e para-va num lago próximo da estrada. Tirava a roupa e tomava banho
nu. Depois sentava embaixo de uma goia-beira e passava a tarde toda devorando
goiabas e gibis.
Me afeiçoei às
“meninas” do italiano. Mas nenhum herói que eu conhecia usava aquele
tipo de pis-tola. Só se via armas mortíferas e sanguinárias.
Nada de 7.65.
A vida foi passando e as
coisas pareciam nos eixos. Eu já não brigava com papai. Mamãe
deixou de falar com dona Veneranda, a vizinha mais fofoqueira do bairro,
depois que soube do que a outra andava fa-lando de si. Diana foi promovida
a gerente da loja do “seu” Carvalho e já estava de casamento marcado
com um ex-professor meu, que abandonou a educação física
para virar psiquiatra. As chuvas estavam ficando for-tes, e o velho cais
ameaçava desabar. Santos vivia preocupado com o porão do
italiano, mas nem se atrevia a falar de novo, desde a última mijada
que pegou. Wálter-borracha continuava espichando o pescoço
na esca-da, mas um dia acabou sendo descoberto pela Tânia, a secretária
dos aros grossos, e levou um tapa inesque-cível. Foi suspenso e
nunca mais quis saber de brechar.
O Surfista Prateado tentava
mais uma vez ultrapassar a barreira da estratosfera, depois de ter salvo
mais uma vez o ingrato planeta Terra. Isso aconteceu na sexta goiaba devorada
naquele final de tarde. Era hora de voltar para a loja para levar a boa
notícia: o avarento da fábrica de molho de tomate havia pago
a conta depois de meses! Talvez por isso, a chuva começou
a cair fortemente. Engrossou demais. Sem visibi-lidade era impossível
continuar pedalando. Parei embaixo de um abrigo de ônibus e cuidei
de enxugar o Ho-mem Aranha que foi respingado dentro da mochila. As horas
se passavam. Os raios caíam fortes. As águas escorriam fortes.
As horas se passavam. As horas se passavam.
Já eram quase oito
da noite. Com frio e com medo na estrada, de ser assaltado, corri como
nunca pa-ra levar o dinheiro ao “seu” Giácomo. Sabia que ele não
sairia da loja enquanto eu não voltasse, e de certeza ainda me daria
um esporro, mesmo levando o dinheiro recebido. Não adiantaria justificar
a chuva.
Cheguei à loja e
vi que as porta estava arriada, com exceção da lateral. Ao
entrar vi que a água havia invadido tudo e batia no joelho. Fiz
força para me arrastar e pensei logo no porão (“Um dia essa
casa cai e adeus paiol, adeus para as 7, 65”, a profecia de Santos). Quanto
mais me aproximava, mais a água subia. Já imaginava que tudo
estava embaixo d’água. Pior: a laje tinha cedido e o paiol tinha
virado um verdadeiro lago. Tudo tinha sido arrastado com a força
das águas, mas o velho não estava ali.
Voltei atrás com
medo de ser arrastado. Não sabia o que fazer. O Santos não
tinha telefone, mas nem adiantaria: a energia caiu e o telefone ficou mudo,
depois que uma mangueira despencou ali perto. Tate-ando no escuro, encontrei
uma lanterna e resolvi procurar o velho no escritório. Subi
o lance de escadas e cheguei na sala com muito esforço. Já
havia tirado o sapato e ao pisar no chão da ante-sala, limpei os
pés num capacho, pois depois que tudo acabasse, era bem capaz que
o carcamano ainda me demitisse por molhar o assoalho. Mas ao empurrar a
porta da sala do velho, pisei em algo líquido no chão. Não
parecia água, era mais viscoso. Imaginei que o velho tivesse corrido
e derramado aquela bananada que sempre tomava no final da tarde. Tateei,
tateei, até que a energia voltou e o salão lá embaixo
se iluminou. Pude ver o interruptor na sala do velho e liguei. Precisava
discar para alguém, pois talvez o velho estivesse andando por aí,
catando os estojos das “meninas”.
Quando liguei a luz, vi
que o cofre estava aberto, o estojo da “Berettinha” favorita do “seu” Giáco-mo
também aberta. O chão estava molhado, mas não era
a bananada. Era sangue.
Por trás da escrivaninha,
o corpo inerte do italiano, agarrado com a 7.65 na direção
do coração. “E pensar que estas ‘meninas’ cospem morte...”.
J. Ninos