VISITA

quando ele acordou e abriu os olhos não viu nada. ficou parado buscando entender tamanha escuridão e levou as mãos aos olhos. esfregou-os até aparecerem aqueles caleidoscópios. abriu-os novamente. escuro. apenas alguns vestígios de imagens(?) desconexas. tateou em busca do isqueiro e derrubou a jarra d'água. porra. achou o isqueiro acionou-o não acendeu. molhado. sentou-se na cama e tentou imaginar as horas. de repente sentiu-se como se estivesse num lugar que não conhecia. um formigamento subiu-lhe e espalhou fogo na sua nuca. calma pensou. não tinha bebido. não tinha gosto de tábua de chiqueiro na boca. não entendia. buscou a poça no chão molhando a mão e passando na testa. ouviu um sussurro. uma quase voz:

...Lucas...

era um sussurro feminino? uma brisa de mar no outono? uma porta entreabrindo? nenhum vento mas uma respiração era possível. prendeu a sua o seu chiado de cigarro. havia outra respiração na cama.

Lucas nunca fora seu nome. mas como ele poderia ter certeza de que era quem imaginava ser? onde estava? morreu? morri riu. só faltava essa riu. se tivesse morrido essa dor de cabeça não existiria. ou sim? levou a mão de leve pelos lençóis e descobriu pele. um braço uma pele de axila levemente irritada úmida não gelada. uma axila. tocou-lhe os ombros e o pescoço e a vida móvel metrô-veias invadiu a ponta dos seus dedos.
...Lucas eu vim para você...
...eu sou quem tanto você esperava...
...eu sou ... (não conseguiu entender o resto da frase).
...eu sou só sua...

era voz ou imaginação ou sonho ou loucura? o tempo estava como que suspenso o pensamento estava como que dormente o coração estava sim estava ali sim estranhamente lúcido. meu Deus pensou meu deus lembrou que não acreditava Nele mas o que é essa miragem? a respiração muito certinha o perfume quase nenhum talvez seu próprio desodorante  talvez um perfume parecido  com o  seu  para disfarçar o choque de se descobrir numa situação da qual não se sai mais.

Lucas eu vim para você era a frase que corria na sua cabeça. Lucas eu vim para você era uma frase de alguém que possivelmente pode-se amar pois pode ser muito forte o sentimento que impulsiona essa fala. ele sentiu então que ali havia terreno para a verdade e como ele não se chamava Lucas quem seria ele? naquele quarto havia isso.

aos poucos ou imediatamente quanto tempo durou o que ele lembrou ele lembrou da mulher que um dia pensou amar:
  olhou para ela um dia e disse primeiro para si mesmo que a amava.
  ela olhava para ele falando para ele mesmo que a amava e ela perguntou o que ele pensava.
  estou falando comigo mesmo assim olhando para você faz algum tempo que estamos juntos eu acho que
  amo você ele então falou.
  acha? franziu ela narizes e sobrancelhas .
  sim. ele meio que decepcionado.
  estamos juntos há um bom tempo. achar para mim não é o bastante. ela.
  percebeu então que não a amava e que não amaria ninguém assim.
  quando ela foi embora e não voltou ele sentiu alguma coisa.
  olhou o quarto e chorou na cozinha e viu desaparecerem pela janela os filhos que não teve.

(quanto há de mentira num corpo ao lado que se toca que se engole que se violenta e esfrega no grosso do colchão para gozar e parar? lenitivo da dor? ah ah o mundo espreita volta e atravessa seu cérebro. movimento preferido: presto. quanto há de mentira em consentir deixar pensar que se é como a outra pessoa quer mas no fundo não ser. no fundo não ser no fundo não ser. apenas... conviver?)

agora ali naquele momento quanto há de realidade nesses olhos que não se podem ver? quanto há de consistência nessa profusão de esperma que ela arranca de mim eu sinto dor mas gosto estou sendo violentado mas como é então que é ela quem verte a primeira lágrima e é ela quem primeiro risca o silêncio com um grito breve? algo não funcionou. e ela chora em mim. pragueja balbucia com uma voz longe em mim. ela salga os meus cabelos e cavalga em mim rumo ao nada. percebendo morde meus lábios com uma boca amarga e canino afiado.

no gosto do meu sangue essa inspiração errante alucinante finalmente percebe que se materializou no quarto do poeta errado.

papel amassado.

Carlos Edu

 
 

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