Redenção de Borboleta

Ah, quanta estupidez! Mercedes fritava suas dores... Os anos haviam passado e nunca dissera que amava - e Deus, amava, como amava! Pieguice nada insípida, de sabor pontiagudo, furando sua língua dormente que jamais pronunciara pequeno ou grande amor. Não ousara.

Fora profissional competente... o sorriso calculado, quase geométrico, de beleza simétrica; o olhar de compreensão embalado em papel presente, algo pirotécnico. Sempre correta e fria, emitindo palavras prévias - aquelas que foram ditas e devem ser repetidas, repetidas, repetidas... - enquanto tudo que interessava era um outro falar, um cálido-elétrico.

Crise dos quarenta, diriam. Um ver-se arrependida de ter sido certas formas cristalizadas, de ter composto figura caleidoscópica de alma pobre e árida. Sim, seu rosto qual vitral de pedaços coloridos sem amor. Uma face-arte, representação distante, como querer traduzir a dor dos ícones em vidros bentos. Nenhum caco de arco íris contava a sua dor de ter sido e de não ter sido. Um choro amargo brotava, amenizado por certa dose de esperança:

— Um pouco de doce, bezunta-me por favor! - pediu Mercedes, mas ninguém compreendeu. Quem entende mulher de quarenta e suas carências?

Fugira e rompera. Graças a Deus! Nem dissera adeus à falsidade, aquela que amara tanto sem saber. Coerência fragmentada. Adeus aos amigos estranhos, adeus aos sorrisos simétricos, às palavras seriadas, repetidas. Adeus ao rosto de vitral. Adeus às figuras caleidoscópicas: todas aprisionadas em definidas combinações! Adeus... e saudade! Entre os cacos toscos de vida um pouco de sua essência derramada... quente...

Não devia ter fugido. Mercedes amava. Quantos beijos sedosos pendentes! Quantos abraços roçando o ar, tontos. Querendo, querendo, querendo encontrar a falsidade de outrora. Ai meu amor! Covarde que era essa moça: quatro décadas de engano reluzente.

Ah, mas agora Mercedes já partira. Ia longe. Deixara a cama aconchegante de encontros oficiais. Pegara o primeiro ônibus e da janela ainda via a falsidade lhe abanando, bebericando cafezinho e lhe dizendo, arrogante, "Vais voltar!". Mercedes ofegava e gemia, lívida, examinando os pequenos cortes ácidos pelo corpo. Pequeno preço a ser pago. Ferimentos invisíveis de quem vai, de quem foge em desespero. Não voltaria!

O arrependimento viera depois. Caos e vácuo no céu de sua boca vazia. E as possibilidades começaram a orbitar, desfilando, em torturante e singular movimento. Caminhos não vistos. Soluções menos drásticas que rejeitara. Seus olhos de catarata em dança triste. Lamento pelas trilhas que não percorrera... "Mercedes, outras formas Mercedes..." Tarde demais! Havia pulado - Graças a Zeus! – da face caricata para um mundo menos brutal. Será? Mas e o amorzinho constante que recebia? E aquele atrito de pele inteira que tanto lhe nutria, aquele calor sobre o peito, cobrindo o ventre? Que falta! Que falta daqueles beijos estranhos e ávidos de todos os dias. Que falta do cheiro de florestas longínquas e desconhecidas...

Voltar, não. Apesar do aperto no peito. Não, voltar seria outro engano. O pedaço de vida que deixara já não era o mesmo e nem seria de novo: momento irreversível, deteriorado. Ela, Mercedes, também era outra: sabia que amava - e quanto! Podia recomeçar a vida. Construir melhor, fazer com amor, ser dona da rua. Não tinha ninguém na rua. Era sua. Dona. Maravilhosa. Melhor do que nunca!

Então era isso... Delicada e francamente mirou-se; talvez num pedacinho de vitral que fazia de espelho. Acariciou o próprio rosto, inteiramente refletido, algumas poucas ilusões oscilando, e sorriu ternamente, antes de fechar a porta do quarto de hotel e descer cantarolando os lances de escada. Tomou a rua. Um brilho intenso nos olhos meigos enquanto a bolsinha vermelha bailava em gracioso giro.

Marta Rolim


 
 

« Voltar