UM COPO D'ÁGUA
Tudo já foi dito, mas não para
mim. Este inverno está sendo muito difícil. Até hoje
cedo não parecia, mas de lá pra cá descobri que está
sim. Eu queria dizer que aconteceram coisas. "Coisas", assim vago, assim
sorrateiro, assim vítima de conspirações cujo nome
virá nos próximos capítulos.
Mas não aconteceu nada. E a dificuldade
do meu inverno também não advém desse nada que não
aconteceu, ao contrário do que possa parecer. É que, como
eu disse, tudo já foi dito, mas não para mim. Deparei agora,
no meio do inverno, com a certeza quase palpável da falta que me
faz tudo o que nunca me disseram.
Por exemplo: nunca ninguém me parou
na rua de sopetão e disse "eu te amo", assim violento e improvisado.
E como eu queria ser amado repentinamente! Virar o segundo de alguém;
o segundo não, o minuto, quem sabe a hora. Homem ou mulher, hoje
tanto faz, eu queria que me amasse de estalo. De estalo, não mais
- um amor que acabasse depressa, antes da minha surpresa, antes da minha
confusão e do meu irresistível, inocultável prazer
terem tempo de desaparecer.
Outra coisa: nunca ninguém me disse,
também na rua e de improviso, "beba aqui este copo d'água".
Sendo sincero, as coisas andam dum tal jeito que é duvidoso que
eu bebesse. Mas como saber, se não me ofereceram? Já andei
tanto no calor, já subi tanta ladeira. Eu mereço um copo
d'água. Mas nem...
Tem mais. Muitas vezes eu me sentei em escadas.
Quando a gente se senta em escadas é para esperar ou para pensar
coisas, e as duas atividades são geralmente muito tristes. Pois
bem: muitas vezes eu me sentei triste em muitas escadas, e nunca ninguém
veio e me perguntou "quer apoiar a cabeça no meu colo?". Ou "quer
encostar a cabeça aqui no meu peito e berrar bem berrado? Ou chorar?".
Nunca. E bem que eu quis colo, e bem que eu quis chorar, e berrar bem berrado.
Escada, no fundo, foi feita pra gente chorar.
Nunca recebi uma carta me pedindo uma janela.
Fosse formal, "o senhor teria a bondade de me dar uma janela?", fosse infantil,
"dá janela", fosse como fosse. As janelas que eu dei, e foram poucas,
foram sempre por mim oferecidas, nunca a mim pedidas. Por que ninguém
me pede janela? É uma coisa bonita, a janela, que às vezes
nos entristece, mas que, ao contrário do nosso peito, sempre se
pode abrir, escancarar. Dá até pra fugir por ela.
Também nunca me pediram espinho. Eu
dou flor de bom grado, mas o espinho só vai forçado. Por
quê? E flor por acaso não espeta e não machuca do mesmo
jeito? E perfume? E olho? Olho faz muito mais mal do que espinho. Olhar
mata mais que atropelamento, que bala de revólver. E as pessoas
até pedem tiro, morte, traição, e olhares até
o fim da vida. Mas ninguém pede espinho.
Nunca me ofereceram um segundo sem ar. Se
alguém chegasse pra mim, ou falasse no rádio, ou me desse
um folheto oferecendo um segundo de estrangulamento, eu acho que topava.
Um segundo só de agonia voluntária, de súbito vazio,
um segundo no nada. Todas as agonias que eu tive, todo o ar que me faltou
não me foi oferecido, foi imposto. Eu queria saber por um segundo
como é sofrer por querer.
Nunca me disseram que feder é bom,
e pode feder à vontade, Orlando, Deus te abençoe.
Nunca me disseram "tudo é tão
bonito que eu quero morrer aqui mesmo". Nunca ninguém me disse que
ia se matar de pura felicidade — e eu, em vezes que fiquei feliz, quis
morrer pra não dar tempo de passar.
Nunca me pediram um punhado de terra. Nunca
me pediram um beija-flor. Nunca me pediram uma batata pintada, uma sacada
verde; nunca me falaram "me leve já pruma rua silenciosa e me beije
até ficar de manhã, me beije até a polícia
achar esquisito e prender nós dois"; nunca me perguntaram se há
atalho para algures; nunca me perguntaram o caminho pro fim.
Nunca me perguntaram se eu tinha tudo isso
pra dar. Respondo: não tenho não. Também nunca me
pediram pra ir buscar.
Orlando Tosetto Jr.
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