Cheiro de Analogia

    Ouro preto foi um pedaço de minha infância, passeava ao lado de suas muralhas de pedra que exalavam um forte cheiro de musgo recentemente molhado por uma fina camada de orvalho. O odor característico da antiga capital primeira, mistura-se até hoje a uma sensação de infantilidade e pecado, provocado pelos diversos carnavais que passei por lá, onde, menino, corria com blocos de estudantes, fantasiados pelas ruas íngremes de pedras desalinhadas e becos mal iluminados, refúgio dos namorados e onde aconteceu, inesperadamente e num surto de coragem e irreverência, meu primeiro beijo. Não me lembro de seu nome, seu rosto, seu cheiro nem sua voz mas não esqueço o gosto furtivo de tocar seu sorriso tímido com meus lábios de menino. Lembro-me, no entanto, dela correndo com suas amigas por entre os foliões e arrastando atrás de si um aglomerado de meninos que alimentavam esperanças eróticas e façanhas proibidas aos corpos ainda em formação. Eram casas sem jardim, com janelas barrocas roçando a calçada como se cada transeunte que nela passasse, integrasse a família que lá dentro resguardava seus delírios. Pisos barulhentos, escadas rangentes, jovens estudantes espalhados pelas frestas de madeira e o cheiro de fumo fresco. Era o verde musgo Ouro Preto, e a sensação de unha raspando no quadro negro misturada ao paladar doce de carne fresca e fruta madura.
    Já Diamantina, apesar de sua arquitetura semelhante e suas ruas também tortuosas, antigas e mal calçadas, me traz um sentimento, não de folia e transgressão mas de emoções mais profundas em um coração menos infantil que Ouro Preto, porem longe da prudência e experiência de um adulto. Diamantina é boêmia, amor apócrifo, são as noites nos bares regados a vinho e embalados pelas serestas e violões, é a idade das paixões fortes e não retribuídas, do nascer do sol na escadaria da matriz por entre olhos embaçados pelo álcool e a neblina gelada, é o sorriso amarelo sarcástico lançado às beatas que apressadas correm com as mãos esfregantes ao encontro da missa matutina. São os corpos unidos pelo frio e cobertores compartilhados, encobrindo braços e pernas entrelaçadas de casais que freqüentemente eram outros no início da noite. É a frieza das portas de lata dos bares já fechados e a angústia do cansaço físico misturado ao desalento do amor perdido por entre canções românticas com gosto de noite mal dormida, aquele cheiro de fumo, whisky e depressão. Cheiro de amor mal feito, de vinho vagabundo e traição, arrependimento, cheiro de resto de cerveja quente, cinzeiro sujo e pulsação cardíaca vacilante. É o cinza escuro, é Diamantina.
    O oceano é silêncio. É o Preto. É aroma de rosas envolvendo a atmosfera da terra. É São Francisco. Não a São Francisco da Califórnia com suas meninas de pernas torneadas pelo moletom com extremidades encaixadas em patins de rodas coloridas deslizando pela orla, com fartos seios que balançam ecoando o ritmo das ondas e lembrando o vermelho pálido dos filmes americanos "classe B" que cheiram a suor-pós-sexo-sem-amor. É sim a antiga e pequena praia de São Francisco, brasileira, vizinha da marrom e triste São João da Barra, Estado do Rio de Janeiro onde, no passado, a noite, sem as luzes civilizadas, misturava as dunas de areia branca com cheiro de Guruçá, com as moitas verdes, camuflagem e toca da coruja aroeira, com o teto das pequenas choupanas de pescadores, com a espuma branca das ondas salgadas, com o verde do mar, com as estrelas do céu, com o cheiro de sal, com a umidade da maresia, com a tranqüilidade da mente massageando o corpo cansado e os pés doloridos pela pressão da areia indecisa. O oceano atrabilário que não é ouro, é Preto, é o silêncio barulhento das ondas incansáveis e intranqüilas, é a tranqüilidade, é a ilha e é a solidão.
    Todo esse preâmbulo, escrevo para tentar contar uma história de amor. Uma história que se iniciou num dia verde e cheirando a colo materno, quando encontrei Diamantina. Ela escorregava como o amarelo molhado dos fios embaraçados e inquietantes de manga madura enquanto meu Ouro Preto, ainda hesitante, penetrava no oceano. Um conúbio celebrado pelo silêncio de uma escuridão maravilhosa e estóica.
    Caro Leitor, tomo a liberdade aqui, de redigir um breve parágrafo ressaltando a impossibilidade da lembrança de nomes e datas e a irrelevância do quando e do porque, o que remete a expressar-me através de sentenças que, como as matemáticas que substituímos seus parêntesis, colchetes e chaves pelas representações de seus conteúdos, nos force a abstrair as palavras escritas em favor de seu colorido, seu cheiro, seu sentimento, seu paladar.
    A ingenuidade da criança conheceu o cinza melancólico da jovem Diamantina e se encarcerou no negro da noite sem lua. Vivi com Diamantina enquanto ponteiros giravam e os sois substituíam as luas por entre os pêlos que apareciam em meu rosto de pele ainda lisa. É possível que muitos de vocês, leitores, já tenham passado por situações parecidas. Como é gostoso Ouro Preto caminhar como um Pequeno Construtor pelo relevo acidentado, pelas ruas sinistras até encontrar cachoeiras, cristais e pinturas rupestres das grutas de um corpo ainda criança, de um corpo mulher, de uma Diamantina. Mesmo sabendo da instabilidade, da euforia do verde musgo e da solidão sempre encontrada ao final do silêncio. O azul dos Beatles jorrando seus tons nas bocas, balançando peitos e bundas, moldando e modulando corpos lisos como a casca fina da fruta verde, do limão galego. Eu nunca consegui conquistar Diamantina. Ela no entanto liqüefez meus órgãos que se derramavam pelas suas entranhas. Coloriu meu cérebro e triturou meus doces e amargos, meus odores e minhas asperezas, respingando meus sentimentos e aspirando-os através da luz de seus olhos que cinicamente refletiam as cores do arco-íris.
    E numa rubra maçã de miolo claro ela se foi. Sua partida amarelou poesia e cheirou violão sem a corda ré, coloriu os dias de saudade e refletiu paciência, germinaram algumas rugas, leito de lágrimas e onde, hoje, florescem pêlos brancos por suas encostas. Depois disso, várias colheitas se fizeram com perfume de nó-na-garganta e gosto ácido de abacaxi verde. O mergulho no oceano foi profundo e perdido mas num dia oblíquo, muitas mulheres depois, reencontrei Diamantina. Jantamos juntos num restaurante de shopping center, tipo caleidoscópio, onde as palavras se cruzam com brigas e videogames, crianças chorando brinquedos com lágrimas de plástico, onde os olhares são interferenciados pelos selos das grifes e néons coloridos. A entrada foi simples. Cor de o-tempo-está-bom, boca-de-palhaço-triste, ator-no-palco-com-cara-de-bobo-que-esquece-texto, cheiro de alface, gosto de chuchu. O prato principal foi lembrança xadrez seguido de vale-a-pena-ver-de-novo. E a sobremesa ! essa, como não podia deixar de ser, foi escolhida a dedo-com-unha-grande-e-vermelha. Foram desejos azuis-claros de pálidas felicidades tentadas. Na despedida, três beijos ga..ga..gagos, azuis-piscina que ainda ressoam pelo ar.
    Tudo isso ocorreu na minha clara e transparente Belo Horizonte, por entre montanhas verdes e vales cheirando a calma e transparência. Uma cidade piramidal onde ficou mumificado aquele arrepio dos pelos do braço e a taquicardia provocada pelo perfume de pele limpa pelo banho morno.
    Diamantina foi sincera desde o útero. Desde quando, como um raio, rasgou minha retina e raspou o resto de Ouro Preto que sobrava em minha massa cinzenta. Diamantina sempre foi cinza. Não me fez feliz nem infeliz. Só deixou um rock-enrou-lado-na-garganta. Só ficou uma seresta inacabada, uma última música sem desfecho. Faltou um acorde. O último verso não teve rima, nem teve perfume. Ficou sem cheiro e sem cor. Ficou áspero e sem amor.
    Sabe...  reparei, quando novamente a encontrei, que a nota era mi. Era certo e não si. Que ela era outra, não mais aquela lá. Era aqui. E que eu, naquele momento, já era sol. E ela também tinha algumas poucas rugas, mudas, limpas, brancas, maduras como maracujá prestes a cair do pé.

José Maurício de Oliveira Neto


 
 

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