Vi-me de repente num quarto de hotel com aquele homem inerte sobre a cama. Tinha ido escovar os dentes e, quando voltei, comentei o quanto estava cansada da viagem. Nada de resposta. Não estranhei, isso era normal. Noticiário, Ratinho, Bispo Macedo, tudo tinha mais interesse do que o que eu dizia. Em outros tempos, teria ficado danada e reclamado, mas há muito já estava acostumada. Aliás, sua atenção nem me importava mais e eu só falava para ouvir minha voz. Voltei ao banheiro para tirar a maquiagem. Havia descoberto uns lencinhos úmidos ótimos na véspera, tão práticos! E as notícias rolando na TV - nenhuma novidade, segundo eu ouvia.
Estávamos de férias com casais amigos. Sempre a mesma baboseira, mesmos papos, mesmos fingimentos. Mas era melhor do que nossa vidinha cotidiana, árida, sem graça, cuja única paixão era a ira — cada vez mais rara.
Saí do banheiro outra vez. Olhei para a peça ali deitada e dei-me conta de que ninguém assiste noticiário com os olhos pregados no teto. Nossa! Chamei de longe e nada. Cheguei perto, sacudi. Nenhuma reação. Eu sabia que era transparente, mas não tanto! Não me lembro bem em que momento percebi que estava viúva. Mas não esqueço a conseqüente e súbita euforia que procurei reprimir, cheia de pudor.
Liguei para o apartamento do casal mais íntimo, que chegou ao meu logo em seguida. O senhor desencavou um médico não sei como, que forneceu o atestado de óbito por mal súbito. Isso foi canja, pois pude apresentar receitas e remédios que provavam o periclitante funcionamento cardíaco do falecido, suas artérias entupidas de vazio, ganância e sede de poder.
Bem que o cardiologista nosso tinha ficado meio cabreiro com a idéia da viagem. Mas acabou por concordar, ponderando que podia até fazer bem ao coitado, sempre tão sacrificado, trabalhando, sem aproveitar a vida... Quem sabe diminuiria o estresse?... Depois daquela conversa, surpreendi-me sonhadora mais de uma vez, imaginando... Bem, imaginando se acontecesse alguma coisa - pronto, falei. Repelia a idéia imediatamente, que isso não é coisa que se pense, mas a teimosa voltava.
Contratada a agência funerária, levaram-no. E eu fiquei lá, sozinha no quarto estranho, tentando sentir alguma dor. Meus companheiros quiseram fazer-me companhia, mas agradeci e preferi ficar sozinha. Precisava botar as idéias em ordem. Principalmente, temia não ser capaz de esconder meus sentimentos nem um pouco adequados para o momento.
Pedi que me trocassem de apartamento, não queria dormir naquela
cama. O coitado do recepcionista da noite não sabia resolver coisa
alguma, demorou para achar camareira, eu tafulhei "nossas" coisas de qualquer
jeito nas malas e, finalmente,
depois de ter dito alguns desaforos e feito ameaças, consegui
a transferência.
Ah, que paz, aquela cama toda minha!... Eu podia me espalhar, escolher o programa de TV mesmo sendo novela mexicana, apagar a luz na hora que me desse na telha. O único incômodo que me acometia de vez em quando era a culpa por não estar rasgando as vestes. Afinal, recém enviuvadas têm que estar destroçadas, arrasadas, querendo ir junto com seus falecidos! Eu não sentia nada disso... E, curioso, não me aventurei para o lado de lá da cama, como ainda não faço até hoje aqui em casa... Deve haver alguma explicação científica para o fato. Entre todas as enviuvadas que conheço, apenas as que foram bem casadas instalam-se no meio do leito conjugal, ao passo que as outras e as separadas mantêm-se em seu espaço.
Bom, lá estava eu... Num hotel de país estranho e fazendo parte de um grupo de casais no qual, inesperadamente, só eu era ímpar. Enquanto isso, meu finado par ia pelas estradas perigosas a caminho da cremação. As condições de navegabilidade rodoviária não me preocupavam nem um pouco, pois acidentes não podiam piorar em nada o que já lhe acontecera.
Foi uma noite de certo conflito interior. A culpa e o alívio. No meio, as lembranças do meu amor, do sempre frustrado desejo de agradar - céus, porque então ele havia ficado comigo? Sua frieza e meu sofrimento, meu empenho e suas críticas, minha doação sem retorno. Custei tanto a desistir de tentar! Dormi, nem sei como.
Manhã seguinte, encontro com o grupo. Expressões compungidas e solidárias, e eu fazendo meu papel, claro. "Oh, foi um grande homem, tão bom", diziam eles. É, foi. Humanitário. Tenho fotos do meu olho roxo e nariz quebrado, mas tratou-se apenas um acidente de percurso. Credo, menina, mantenha a compostura!
Não adianta... Não consigo aparentar o que não sou. Minha única trava era o cão vigilante por perto. Aos poucos, fui me soltando... Meus companheiros, antes chamados de amigos mas na realidade estranhos, surpreendiam-se comigo, vendo-me como sou e não como a "mulher do Fulano" — que Deus o tenha em sua glória. Decidi aproveitar a viagem, pois o extinto, tão cheio de desprendidas qualidades, teria expressado esse desejo caso houvesse uma mãe-de-santo e uma platéia por perto.
Comecei a curtir a vida! Pequenos prazeres, como a liberdade de gargalhar e de dizer bobagens, além da consciência da admiração masculina e conseqüente ciúme feminino. Nunca quis roubar marido de ninguém, homessa. O que eu gostaria era que aquelas senhoras vissem em mim como elas próprias poderiam ser, livres das peias de seus inseguros consortes.
Dois dias após o desenlace, voltou o carro da funerária. Avisaram-me por telefone quando eu estava descansando depois de um dia delicioso de praia. Desci, compondo no elevador minha expressão de viúva inconsolável. Os sinistros senhores apresentaram suas condolências e entregaram-me uma caixinha com poeira dentro. Era tudo o que tinha restado do finado, de sua grandiosidade, poder, prestígio — de sua aridez interior.
Não sou vingativa, mas talvez tenha sido só um pouquinho daquela vez. Não me bastava imaginar o espírito do falecido pairando sobre nossas cabeças, presenciando impotente meu luto feito de passeios, jogos de cartas e restaurantes finos — pagos com as notas verdes antes inacessíveis — após a morte em vida que eu tinha tido com ele. A gente só conhece as coisas do Além de ouvir falar. E se ele não estivesse por ali?... Seguro morreu de velho e resolvi garantir. Não foi vingança, afinal de contas. Apenas, fiz questão de levar a poeirinha comigo para todo lado, dentro de uma sacola de butique. Que coisa, toda aquela bazófia e prepotência reduzidas à expressão mais simples!
Eu e o falecido passeamos juntos pelas praias, fomos ao bingo, vimos a cidade "by night"... Levei-o até a um restaurante japonês, programa que deve tê-lo deixado horrorizado. Meus amigos estranharam no começo, mas expliquei-lhes que temia deixar o extinto sozinho no apartamento e as ineptas camareiras acabarem despejando-o na privada. O grupo logo se acostumou e esqueceu a sacolinha. Eu não. Nos melhores momentos, olhava-a e sorria...
Maria Emília Berthier