Ela ficava sempre a espreita, nunca entrava naquele mundo desordenado além da porta. Ia se equilibrando pelo meio-fio torto, pela estrutura enviesada feito um funâmbulo, e quando chegava a beira do colapso, perto do fim, se recolhia, de modo que suas pernas bambas não podiam mais prosseguir. Espremida por entre os andaimes daquele prédio de altura incalculável, não desabava ou se lançava porta adentro, ficava apenas ali, inerte durante um bom tempo, se agarrando nos cabos de aço. Meses depois escorregava pouco a pouco atada a corrente e descia se masturbando pelas angulosidades da fiação, regozijando-se com as lembranças da subida frustrada, rememorando compulsivamente as vias de uma trilha que não dera em coisa alguma. Nem sequer havia olhado através da imensidão que a porta entrevia, descia apenas, abraçada ardorosamente à tubulação até que pudesse enfim estar em terra firme novamente.
Estar embaixo para Ana era um impropério, um terror paralisante dizendo-lhe que todas suas apostas anteriores haviam sido refutadas e devoradas pelo tempo. Todas as suas tentativas de entrar em colapso e sobreviver ao caótico espaço além da porta haviam falhado, e, para ela, sempre sufocada pela inoperância das regras da vida — a espera chegava como a confirmação do fracasso, e o tédio era o implacável desdobramento de tudo. Esperava pela próxima oportunidade de chegar perto da porta, porta essa que lhe conduziria ao ocaso, ao fim da procura e da correria estabanada, a um enigmático e inebriante mundo com o qual ela sonhava mas no qual jamais havia estado.
Existem pessoas que acham que a vida é um projeto kamikaze e visitam o espaço além da porta com uma freqüência exagerada, vem e vão como se fossem ioiôs, utilizando-se de métodos um tanto arriscados para aprumarem-se na imensidão. Por vezes, permanecem longamente por lá, e se vislumbram a entrada se lançam como foguetes cegos rumo ao seu interior. Outras pessoas, entretanto, já nasceram neste patamar, já nasceram prontas e não fazem a mínima idéia do que seja essa rotina. Este era o caso de Sam, um doce amigo de Ana. Sam estava sempre por lá, alheio as intempéries da angústia e soprando vida ao mais repugnante dos insetos. Era a criatura mais bela com a qual Ana havia estado, embora poucos percebessem que ele transitava em um universo paralelo, de maneira que qualquer pessoa que por ele fosse tocada assimilava um ritmo, um compasso, cujo pulso diferenciado permanecia rangendo em sua alma por um longo período de tempo virando de ponta-cabeça toda uma esfera de sutilezas. "Sam era um amor de pessoa" — era como os outros entendiam a forma como eram catapultados e destruídos por ele. Infringidos em seus aspectos primevos, solicitavam cada vez mais golpes do rapaz dando início a uma conflagração autoluminosa que assinalava o paradoxo da existência: quanto mais eram pisoteados por Sam, mais o amavam e exibiam-se ao seu lado.
Depois de tantos recomeços e de um sem número de missões abortadas, Ana postava-se trôpega diante da vida a procura de alguém que lhe fornecesse combustível para a caminhada. Admirava imagens de santos e anjos, que para ela eram como figurações reais. Admirava os indivíduos que pensavam estar além da porta — mascarados e iludidos pela percepção de si mesmos, atordoados pelo enxame de palavras que povoavam as panelas giratórias das cirandas noturnas. Contemplava o cansaço de uma meia dúzia que, parasitando em frente a porta, há muito haviam desistido de entrar, preferindo navegar pelas incertezas do quase lá, na espera da próxima onda que iria afogá-los de vez. Assim, em experiências sonadas, avistava sentinelas que guardavam um segredo inefável, e conviviam com ela como se fossem velhos amigos.
Estivera com Sam umas quatro ou cinco vezes e de todos esses encontros o mais extraordinário havia sido o do labirinto. O labirinto fazia parte de uma trilha na qual Ana havia se embrenhado na esperança de chegar até o cume. Em desespero, ela se imiscuía pelos corredores perpétuos da teia cuja oscilação se mantinha ao sabor do vento. Um dia, se deparou com Sam em meio as esquinas da rede, e de imediato percebeu não se tratar de um sentinela, nem tampouco de um mascarado, mas se assemelhava em muito a um membro do projeto kamikase cujos estratagemas ela tanto apreciava. Foi até ele maravilhada e, quando ele tocou na estrutura na qual estavam amuralhados, as paredes se cederam e da mesma forma com que os céus interrompem um lamento, ela se deu conta de que até o referida circunstância havia estado em um labirinto de papelão: vislumbrou um platô que se estendia horizontalmente. No entanto, Sam não havia percebido as conseqüências de sua façanha e continuava a tagarelar como comumente fazia. Aliás, ninguém havia notado alteração alguma na configuração das coisas, só Ana, que parecia ter ampliado seu espectro de visão em mil vezes. Sabia agora estar diante de um sujeito especial, ocupante permanente do espaço além da porta.
Ela já havia se envolvido com kamikases suicidas, sentinelas míopes, parasitas viciados, e uma dezena de grilos falantes, mas se sentia incapaz de atravessar a fronteira para encontrar Sam. Ela o amava, muito embora não tivesse forças para surrupiá-lo . Invariavelmente subia, mas as extremidades do retângulo a impeliam a descer. Em alguns momentos ficava a um passo dos píncaros, mas desmaiava e se derretia morro a baixo e punha tudo a perder, todo o trabalho empreendido em meses de investidas e experimentações. Ninguém acreditaria se ela confessasse que jamais havia penetrado naquele campo distinto, pois repetidas vezes havia se elevado tanto em direção a ele que os pobres remanescentes da dimensão inferior haviam-na perdido de vista por anos a fio. Seus amigos, parentes e conhecidos podiam jurar que Ana havia se libertado daquele nível mais baixo, ao passo que o máximo que ela havia conseguido era ficar encurralada entre uma parede e outra, tremendo feito um gato escaldado, vendo um turbilhão seleto de viajantes passarem pelo portal facilmente, inclusive Sam, inconsciente de seu poder e da impotência de Ana. O trajeto inverso também podia ser observado, quando se reconheciam indivíduos atônitos sendo expulsos do espaço além da porta como se estivessem sendo expurgados do Paraíso. Estes, pareciam cavalos bloqueados em sua visão lateral, e a desilusão subseqüente a seus olhares comovia a menina. O mais estranho era a atuação dos sentinelas, que tolamente fiéis às práticas do voyeurismo, açoitavam o interior daquele universo sequiosos pela experiência caótica, mas eram impedidos de ingressar por uma força invisível que lhes interceptava na boca da porta e lhes solicitava uma senha, a qual eles desconheciam totalmente. O insólito residia no fato de que só a eles era requerida a tal senha, e que a charada seria desvelada no momento em que esses guardiões descobrissem não haver senha alguma a ser dita, era só entrar. — Não existia sistemática alfandegária nos arremates da cruzada. — Os sentinelas durante toda uma vida escondiam um mistério o qual nem eles estavam cientes de ocultar e, a partir daí, achavam que o mundo era um amontoado de segredos, códigos e enigmas a serem decifrados, quando, em verdade, tudo era mais simples e transparente do que a seus olhos podia parecer.
Ana recomeçava a subir. Renascia das trevas e seu pulso ainda estava lento. A princípio, andava cautelosamente, receosa de que alguma rajada de vento pudesse tombá-la. Nesses primeiros metros tornava-se essencial manter o máximo de comedimento, pois qualquer deslize poderia repercutir em algo extremamente danoso. Havia regressado da última viagem muito mais sapiente e não cairia na série de arapucas a que se sujeitara no passado. Sabia, por exemplo, que não deveria perder seus documentos ao longo da via, pois dessa maneira não comprometeria sua identificação caso fosse interpelada por algum personagem duplicata. Essas sedutoras personas habitavam as margens da senda e usualmente perturbavam e confundiam os andarilhos quando envoltos em suas inúmeras facetas.
Ao longo de 134 dias, Ana enfrentou uma série de obstáculos, digladiou-se com uma centena de alienígenas, teve acesso a dimensões inóspitas, trocou a noite pelo dia e sobretudo, foi alvejada por rumores bárbaros que a impressionaram tremendamente. A altitude das formas entretanto, havia desaparecido, e no louco afã de encontrar uma escadaria vertical, a menina se atolava pouco a pouco num lamaçal plano e envolvente. O espaço além da porta estava tão ausente, que o astronauta super-herói de seus presságios mais secretos cedia espaço a um kamikase virulento, de modo que os vaticínios da temporada não podiam ser piores. Ana não conseguia mais fazer frente a descrença — estopim de um canto uníssono que vibrava dentro de si. Não havia mais montes ou crateras, e o mar calmo jazia sobre um mundo lento e taciturno.
Todo o estado de coisas que a entorpeciam agora podia ser explicado pelo fato de que no decorrer dessa inútil caminhada um personagem duplicata havia aparecido. Gesticulando muito, ele berrava aos quatro ventos: "Sam está morto!!! Sam está morto!!!" A partir daí, tudo começou a perder o sentido, um castelo de cartas de baralho foi ao chão, e a menina não se sentiu mais atraída pelas imperfeições do caminho. E por mais que quisesse subir, não havia como, já que o relevo se tornara toscamente brando.
"Sam está morto". Um soluço recortado invadia a estrutura de Ana. Não havia mais razão que lhe fizesse prosseguir e nem as historietas mirabolantes dos sentinelas a instigavam mais. Descobriu que havia reduzido seu ímpeto vital à loquacidade que apreendera do menino Sam e quis ser deglutida pelo monstro submarino de espuma: a próxima onda iria derrubá-la de vez.
Por conta da avalanche de espanto causada pela notícia, a menina não se apercebeu de um detalhe crucial: o mensageiro do infortúnio havia sido um mascarado, um personagem duplicata, um sujeito que emite falsos juízos e cujas declarações são sempre duvidosas. Ana conhecia bem esses coadjuvantes, mas na contracena do desespero quotidiano, não considerou o quão inválido era o anúncio do homenzinho e passou a viver sobre o impacto de uma provável inverdade. Apesar da larga experiência que a vida lhe concedera até então, não se deu ao trabalho de verificar quem estava por detrás da persona e confiou plenamente no que seus olhos viam e no que seus ouvidos captavam. Aceitava a sentença como verdade última e inquestionável. Estava cega, presa a imagens que julgava reais.
Não restava outra alternativa para Ana a não ser morrer para o universo que inventara. Abriria mão do tumultuado foco de luz que ao longe, contornava seu semblante de menina e fazia dela uma exímia caçadora. Submeteria-se a alienação dos seres que se privam das sensações obtidas no espaço além da porta. Sujeitaria-se a imobilidade dos que não correm, não buscaria nada ou fugiria de nada, assim como não veria mais nada senão vegetação rasteira, não sonharia mais com anjos ou elfos, não pegaria mais atalhos a lugar algum, não deslocaria seu olhar quando estivesse perdida na imensidão, não teria surtos epleptóides, não desapontaria mais seus pais, não descumpriria ordens, e cessaria de vez qualquer sugestão de movimento em seu corpo, morreria para a vontade de viver, pois Sam, o sopro vital, o motivo incondicional de suas andanças, estava morto, e sem oxigênio, não há vida na terra. Ana se iludia recostada na vacilante rede do mundo de achados e perdidos.
Esta atmosfera opaca e sem cor perdurou por várias estações, até que um dia, enquanto dormia, Ana recebeu uma visita. E para o deleite das plantas asfixiadas se tratava de um nobre e surpreendente visitante: o sapeca garoto Sam. Mais vivo do que nunca e recém egresso do caos ele procurava pela amiga que há muito havia desaparecido. Não quis acordá-la e admirando seus olhos, comentou consigo mesmo: "Tudo tomou um rumo fácil essa noite, tão fácil que perdeu a graça. Lembro-me de quando a vida era difícil, lembro-me do tempo em que Ana tinha que subir." Sam se afastou da menina e saiu de sua casa voando — corroborando o que Ana já sabia, mas relutava em não reconhecer: Sam era imortal e jamais deixaria de existir.
Ana Liz