Tem doce de abóbora com coco, fiz nessa semana, quer?
Como já havia recusado a massa de pão frita e o café, resolvi ser gentil:
Hummmm! Adoro doce de abóbora!
Apareceu a vasilha plástica de tampa suarenta da geladeira:
Vê se gosta...
Despejou uma tantada numa xícara de chá com uns ramadinhos pintados, trincada, daquelas bem antigas e humildes, e me entregou uma colher:
Pega essa de cabo meio torto mesmo, o que vale é o conteúdo! vi o sorriso branco da dentadura.
Claro, quem liga para essas coisas?
Sentei na mesma mesa que sempre vi no mesmo lugar desde que me conheço por gente: as tábuas meio envergadas pelo correr do tempo, algumas inscrições produzidas pelas pontas das facas logo depois de chupar as laranjas e fazer das cascas bichos horríveis, flores do jardim, secretos duendes.
Apanhei a xícara e, enquanto pus a primeira colherada na boca, pensei se, de fato, o tempo existe. Tudo num átimo, naquela mesma cozinha e seu mistério guardado em prateleiras azuis e panelas penduradas. Onde ficariam as tampas?
Está uma delícia o doce... disse sem sequer ter prestado atenção ao gosto.
Gostou mesmo? Pois sabe que foi açúcar que dava pra fazer seis cafés?
Miséria, concluí. A que ponto chega o humano: medir a quantidade de açúcar e compará-la a míseros bules de café...
Ainda vi o vermicida enfiado na greta entre a parede e o teto. Por ali deveriam entrar ratos... ou não?
Açúcar demais, hein? menti calculando a irrisoriedade do que minha tia considerava um disparate.
O açúcar devia ser do tipo "cristal", daqueles comprados no armazém ou embalados em grossos sacos plásticos que eu mal agüentava carregar durante os cinco e os seis anos de idade.
Pois então, menina, e o preço tá pela hora da morte. O governo diz que não tem inflação, mas como, se a gente nem compra mais nada com a aposentadoria?
A réstia de alho presa num grande prego e o varal de lingüiças, bem perto do fogão à lenha, me olhavam com cara de poucos amigos. Quanto devia custar um pacote de açúcar "cristal"? Fiz as contas de quantos quilos cabiam no orçamento mensal daquela pobre coitada.
Está tudo tão difícil, não, tia?
A gata, deitada num velho cesto de vime, dava de mamar aos filhotes.
Se tá. Esses políticos só aumentam os deles e pro povo só dão banana.
Banana é mais barato que açúcar? Se bem que a banana dita por ela tinha outra conotação...
Minha tia estava regredindo, era visível. Tornava-se apenas mais uma aposentada que saía do banco e deixava o parco dinheirinho na farmácia:
Sabe que o médico disse que tô "osteoporose"?
Verdade? disse abrindo os olhos num susto enquanto pensava na lexicografia da moléstia.
- Verdade. Agora não posso mais ajudar seu tio na colheita. Tô proibida, na "forga".
O tio também envelhecera. Sentado na varanda, passava os dias pitando o velho cachimbo. Ainda usava chapéu e calçava botinas. Fiapos de história reunidos nos poucos cabelos restantes, tão finos e brancos como seda recém-saída do casulo.
Mas a senhora precisa descansar um pouco, tia, já trabalhou muito. Era uma escrava lembrada pelos "Demônios da Garoa" numa música tão popular. Mal se levantava e o tanque se fazia gigante, encarando-a com desdém. O ferro em brasas, pesado, e as roupas que não acabavam nunca.
Olhou pela janela, como se visse o nada:
É, fia, mas quem é pobre e não nasceu em berço de ouro, só descansa quando junta os pés no caixão.
Senti um frio na espinha e de novo a enxerguei velha e carcomida. Naquele canto da cozinha antigamente ficava um balaio, cadê ele?
Eu me enganava tentando desviar minha própria atenção, mas sabia que o inevitável seria mencionado mais uma vez:
Você, que é estudada e sabe das coisas, tem que lutar pra não lavar cueca de marido.
Ah!, meus sais!
Tia!
É isso mesmo. Olha pra mim: velha, feia e sem um tostão furado. Se não agüentar as bebedeiras do seu tio, morro de fome e de vergonha, que no meu tempo mulher casava pra vida inteira...
Pronto. Chegáramos no grande tema de novo. O mundo dava cambalhotas e a cena era sempre a mesma: minha tia em pé, as mãos na cintura, os olhos meio fechadinhos, metida num vestido de sarja, contando as barbaridades a que era submetida:
Pois que ele chegou outro dia e jogou o prato longe, dizendo que aquilo era comida de cão e não de gente. E mais tarde quis me bater porque a calça ficou com dois vincos. Já cansei de pedir um ferro elétrico, mas ele não dá.
Eu podia aconselhar ou consolar, mas em respeito a mim mesma e ao meu tio, mantive um silêncio sepulcral.
Terminei o doce com um nó na garganta, como se colaborasse para as despesas por ter ingerido aquela xícara de tanto açúcar, açúcar para seis cafés!
Estava uma delícia.
Levantei para lavar a xícara e a louça que se acumulava sobre a pia. Ela usava sabão de soda ainda! Pude vê-la tal qual sempre vi quando criança: a pá de madeira na mão, mexendo o imenso tacho de ferro borbulhante do calor da fogueira. Ouvi nitidamente o "Não chega muito perto que é perigoso espirrar em você" e todo o suor escorrendo de sua testa.
Não precisa lavar, fia, deixa aí que mais tarde eu lavo.
Deixar? Jamais! Em seguida, quando a mistura estava no ponto, minha tia despejava o sabão numa forma de madeira e deixava tudo intocado por dias e dias, até que a consistência necessária fosse obtida. Era uma alegria essa fase, eu podia ajudar riscando com um graveto o lugar do corte. Surgiam, então, as barras quadradas que logo eram dispostas numa tábua comprida que depois era levada ao alto.
Que é isso, lavo num instantinho! Gosto de lavar louça, sabia?
Mentira pura, mas quem é que não fala coisas que soam bem ao interlocutor? Eu estava no universo dela e só me restava essa gentileza.
Fia, assim você estraga as unhas.
De fato, o esmalte das unhas descascaria. Mas o tempo também descasca os objetos e as pessoas, bastava olhar para minha tia e seu rosto enrugado de sofrimento. A diferença é que no dia seguinte eu podia pintar minhas unhas de novo da cor que desejasse: vermelhas, rosas, douradas, azuis.
... minha tia já não tinha unhas, tinha o passado tão remoto que chegava a doer.
Érica Antunes