A outra igreja

        A circular em direção à cidade de Beleza do Sul pára no ponto. Entre os passageiros recolhidos, a bela Fátima procura um assento vazio. Passa a roleta, senta-se em um banco. Pensamentos confusos. emprego vida namorado ter uma carreira a maldita universidade queria ter muito dinheiro que ridículo carregar crianças em uma circular olha como choram casa de shows eróticos que pulgueiro mulheres de peitos nus esfregando suas bundas na cara de senhores quarentões que não conseguem comer a mulher de casa também o pinto não fica mais duro se acham os machões só porque tem um negocio no meio das pernas da vontade de arrancar no dente mostrar o quanto são fracos hunf símbolo fálico será que tenho inveja vou parar de ler rubem fonseca acho que ele me excita hoje estou muito reflexiva culpa  do curso de filosofia ainda por cima namoro um cara de letras  como eu o amo gosto muito de conversar com ele humm seu pinto também e bem gostoso nossa estou ficando tarada ninfomaníaca
        A circular está cada vez mais cheia, mais apertada. Fátima se sente sufocada, começa a olhar as pessoas com desprezo. que pobreza como odeio morar em beleza do sul cidadezinha asquerosa maldito interior do paraná como gostaria de morar em uma cidade grande onde ninguém vê a mesma pessoa duas vezes tem museus teatros cinemas nossa que mulher gorda coitada da catraca
        Diversos odores, alguns fétidos, revelando os trabalhadores, os relapsos, os pobres, as mundanas, os pensantes, os idiotas, os indefinidos, os etcéteras. porra o ônibus demorado não agüento mais a vida dentro de uma circular cada tipo estranho agora tem um bêbado cantando lá na frente IRCQUERIAUMAMUIEPRAIRCCURARMINHASOLIDAOLALALALAL que música sofrível horrível
        O assento vizinho de Fátima fica livre, enfim resolvo dialogar.
        — Oi, Fátima!
        — Você!? Estava aí esse tempo todo? Por que não veio falar comigo antes?
        — Ah, circular muito apertada, estava faltando um lugar  vazio.
         ufa alguém inteligente sensato e uma exceção em beleza do sul pena não estar apaixonada por ele
        — O que faz por aqui?
        — Bem, Fátima, fui resolver uns negócios.
        Tsc, Tsc, Tsc, Tsc. Que bela farsa, continua com o velho hábito de assumir formas humanas. Depois, eu é que fico com a fama de “príncipe da mentira”.
        Um cheiro de enxofre envolve a atmosfera da circular, o tempo e as pessoas ficam estáticos. O Diabo está sentado em nossa frente e...
        Vamos parar com isso!? Ai, Deus, odeio quando você brinca de narrador de  historinhas. Você é muito chato. Que tal uma conversa de verdade?
        Está bem, Anabel. Vou satisfazer sua vontade, mas espero uma conversa de alto nível. E só quero lembrar que você  se deu mal na última.
        Não precisa. E pare de me chamar de Anabel, não gosto desse nome afrescalhado.
        Desculpe, mas é o seu verdadeiro nome. Outra coisa, não seja pejorativo com meu conto.
        Você faz uma história chinfrim e não quer que eu seja pejorativo?
        Chinfrim, Anabel? Ora, seu fedorento...
        Alto lá! Sem baixar o nível, foi você quem pediu.
        Hunf.
        Bom, posso não ser o piedoso, o politicamente correto etc., etc. e tal... mas garanto que sempre fui seu melhor e maior crítico. Tome como exemplo o mundo dos mortais, foi a sua maior ca...
        Anabel!
        ... o seu maior erro. Poderia fazer uma lista de...
        Por favor, vamos ao conto.
        Tudo bem, ser perfeito. O primeiro ponto negativo é o narrador, ou seja, você.
        Eu?
        É. Se é um narrador de 1a pessoa e secundário, como sabe os pensamentos da protagonista Fátima? Acho que a sua onisciência interferiu um pouco.
        Bom, eu... eu... Ah, eu fiz um narrador com poderes telepáticos. Simplesmente leu a mente de Fátima.
        Um telepata? Ah, conta outra.
        Tudo bem, eu posso começar a narrar o conto do...
        Ai, como você leva tudo ao pé da letra. Não entendeu a expressão? Pô, você é muito detalhista.
        Ah, agora entendi.
        Bom, vou dar um desconto pra essa história de “telepata”. Mas, não vou engolir esse negócio de “pinto”, “porra”, “comer” e...
        Pode parar, Anabel! Mais respeito comigo, ser excremental.
        Ué? Só estou repetindo a fala da sua personagem.
        Tá, tudo bem. Voltando ao que interessa, qual o problema em Fátima pensar tais expressões?
        Pô, Teo, é uma mulher.
        Ora, estou sendo apenas realista e... Espere um pouco... Que história é essa de “Teo”?
        Acabei de inventar. Não gostou?
        Você e seus apelidos. Deveria ter um pouco mais de respeito...
        Tá, tá, tá, já entendi. Vamos voltar ao assunto.
        Como ia dizendo, resolvi adotar um estilo realista, conferindo maior objetividade e fidelidade à realidade em meu conto. Quem disse que uma mulher não pode pensar em palavrões e imagens eróticas?
        Fascinante, Teo, isso comprova que você está cada vez mais parecido comigo.
        Anabel, não me ofenda! Na verdade, você é que se diferenciou de mim, não inverta a ordem. Ou já se esqueceu da cisão? Só estou recuperando uma parte roubada.
        Odeio quando você começa a querer bancar o “grande Deus”, o sabe-tudo. Voltando ao conto, parece que eu notei uma certa ligação mais íntima entre o narrador e Fátima, estou certo?
        Olha, você está sendo muito precipitado, ainda estou no começo do conto.
        Ainda bem, pois dá tempo de dar algumas dicas. Por exemplo a mania de querer ser tudo, o pau pra toda obra.
        Pau pra toda obra?
        É. Isso de ser o narrador, o personagem misterioso e os personagens de cena ao mesmo tempo. Acho que você tem problemas  de ego, id e superego. Não se contenta em ser um só personagem.
        Não me  provoque, seu fedorento. Sou onisciente e onipresente, no meu conto faço o que quero. Entendeu? EU MANDO!
        Teo, não me parece uma explicação digna de um ser “onisciente” e “onipresente”. Como Deus, acho que você...
        Saia! Saia! Agora!
        — É mesmo?... Humm, estou sentindo um cheiro de... de enxofre!?
        — Deve ser nada, Fátima. É impressão sua.

Hermes Falk


 
 

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