A paixão de Alberto

       Casa-se comigo, era tudo o que queria lhe dizer. Era tudo o que sonhava: casar-se com ela e esquecer de tudo o que lhe falavam. Esquecer a descrença alheia na sua paixão dilacerante, que o consumia impiedosa, esquecer os olhares que lhe lançavam, todos reprovativos. Esquecer, enfim, toda a falta de fé dos outros no seu profundo e imensurável amor; apesar de muitas vezes ignorá-los (não por sua supremacia mas pela alienação que o sentimento lhe deixava como legado), quando então os notava, sentia-se incomodado, queria esquecer.
       Alberto devia tirar aquela mulher da cabeça. Mas já era loucura, era quadro patológico. Louco de amor. Existe remédio pra dor de amor? Embora nada lhe doesse, ele apenas sentia... Precisava sim, e urgentemente, não só de uma lavagem cerebral mas também de uma renal e outra estomacal, sangüínea, se existisse... Porque aquilo o deixara doente, quase insano, e maluco nunca dá por conta da sua falta de juízo. Precisava curar cada célula daquele câncer que o rasgava sem compaixão, que se alastrava e vetava-lhe o controle de sentidos e sabores. Ela já corria em suas veias.
       Transformara-se. Sua beleza nunca fora desconsertante, é verdade, mas era uma figura bem apessoada, de charme inegável. Elegante e bastante cordial, chegava pontualmente ao escritório, em trajes impecáveis, ternos claros, sempre bem engomados. As colegas, moçoilas solteironas naquela fase em que caiu na rede é peixe, adoravam quando ele resolvia caprichar ainda mais na produção e usar um gel na cabeleira negra, sedosa de dar inveja. Tempos passados. Remotos. Quem o encontrava hoje, de camisa meio aberta e barba por fazer, não imaginava a classe com que se apresentava outrora. Sempre atrasado e displicente na realização das tarefas de que era incumbido, recebia advertências quase diárias do chefe, que vez em quando perdia a paciência e chegava a ralhar com o pobre. Mas, ao fitar os olhos fundos e perdidos de Alberto, remoía-se de dó e preferia ficar mesmo calado. Era penosa sua situação, ainda mais para aqueles que assistiram à sua degradação, passo a passo, vitimado de um quadro de amor crônico, sem precedentes.
       Era constantemente visto muito compenetrado, em meio à confecção de poemas e mais poemas, abordando as mais variadas temáticas: os olhos da amada, o sorriso da amada, sua voz, seus joelhos... E aquela devoção massacrava os mais próximos pelo exagero, pela exaustão. Seu amor, antes sereno e inocente, tornara-se carregado. Não sei se chegava a obsessivo mas não estava muito distante disso. Respirava-a, nenhum só minuto passava sem tê-la na mente, sem confeccionar novas poesias, (tão iguais às antigas mas que exigiam-lhe igual dedicação, como se nunca pensadas) numa cena beirando o patético, as tantas fotografias que carregava entre outras mil lembranças da amada, dentro da valise.
       Cansaria quem se dispusesse a ajudá-lo. Sim, porque precisava de ajuda, e não foram poucos os que desistiram dele; dos mais apegados até os mais curiosos já se atreveram a convencê-lo de que sua postura era quase insana ou pelo menos a solamente compreender as bases de tanta paixão. Inútil. Alberto era irredutível em suas convicções de amor eterno e fidelidade total; o que antes mostrava-se admirável prova de sentimento sincero, hoje era fator preocupante. Entregou-se o caso ao Divino, que resolveria da melhor forma; em Terra, não se sabia mais o que fazer por ele.
       Foi entregue, em vão, às mãos de analistas e psicólogos. Comparecia por insistência (muitas vezes pressão da família) às primeiras sessões mas logo abandonava o tratamento. Nunca cogitaram a possibilidade de interná-lo e nem poderiam fazê-lo: não representava ameaça nenhuma, nem a ele nem a ninguém. Privá-lo do convívio com os outros talvez só o isolasse ainda mais e fizesse com que ele se perdesse de vez, afogado.
       Vivia recluso e avesso a maiores badalações. Para entreter-se, uma antologia poética, daquelas românticas, tipo um Vinícius, um Quintana. Elas sempre ajudavam-no a produzir os seus. Os amigos convidavam, "vamos tomar um choppinho", "vamos pegar uma prainha, que hoje é sábado". "Obrigado, prefiro descansar", e esquivava-se dos chamados. E devia ser realmente bastante cansativo estar apaixonado 24  hs por dia, e aquela paixão intensa, cheia de vigor, como se sua história fosse no ritmo  daquele casinho novo que enche qualquer um de empolgação
       Flores. Adorava ofertar-lhe flores. Sexta, à tardinha, rigorosamente, comparecia à floricultura da Augusta. Levava sempre as importadas, sempre mais abertas e mais vermelhas que quaisquer outras. Rubras tal qual sua paixão. Doentia, às vezes, mas era a verdadeira entrega.
       E é então quando seu rosto enfim se ilumina, com o mais rasgado sorriso de satisfação. Quando nada mais tem importância e o planeta cessa o movimento rotatório. Só para eles. Alberto senta ao lado do sepulcro e deposita sua rosas vermelhas apaixonadíssimas. O mundo pára, êxtase total. Está ao lado da amada, ou apenas alguns metros acima. Mariana Lemos- 1975-1998.
 

Carol Fortes
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