Morava no interior de Juiz
de Fora, a igreja da cidade era um encontro quase obrigatório dos
finais de semana, nos anos de 1960, as festas religiosas para arrecadar
recurso para a igreja, aconteciam com entusiasmo, minha mãe fazia
bolo para as barraquinhas das beatas.
Eu tinha quinze anos, meus
cabelos loiros, olhos azuis, meu jeito meigo, fazia-me destacar entre minhas
amigas, tinha junto com aquela meiguice o objetivo de seguir a vida religiosa,
queria ser freira.
Fazia parte do coral da
igreja. Uma tarde, quando ensaiava, olhei para o altar, o coral ficava
no segundo patamar da igreja, vi que o Padre Issac estava olhando-me. Envaidecida,
cantei com felicidade, percebi que ele notara meu entusiasmo e vi um sorriso,
nossos olhos se encontraram, e na inocência de meus quinze anos,
senti pela primeira vez o sangue correr quente por meu corpo, algo diferente
jamais sentido, jamais sentido com os namoricos com os meninos da escola.
Abaixei os olhos, minha voz falhou, e logo procurei seu olhar, mas Padre
Issac já não me olhava, naquele momento ajoelhado no
altar, parecia um anjo.
A semana transcorrera sem
novidades, apenas sentia de vez em quando a ansiedade pelo dia de ensaio.
Nesse dia, procurei ir mais bonita para o ensaio, prendi meus cabelos num
grampo dourado, aventurei até o batom de minha irmã. Estávamos
cantando, meus olhos procuravam pela igreja o Padre Issac, em meus pensamento
palavras de perdão por aquela atitude, e como um anjo, á
estava o Padre Issac surgindo de trás do altar, olhando-me fixamente,
e outra vez o sangue correu mais quente por minhas veias. Acabou o ensaio,
atrasei os passos, ofereci-me em arrumar a sala, as partituras espalhadas,
a professora foi descendo as escadas, fazendo observações
para que eu não misturasse as partituras fora de ordem, gostei,
pois seria mais tempo para ficar ali. Uma mistura de medo e ansiedade tomou
conta de mim, os últimos passos e falatório das pessoas foram
se perdendo, e o silencio da igreja foi ficando mais pesado, senti vontade
de olhar lá pra baixo, mas não tive coragem, era vergonha,
e me perguntava, e seu estivesse enganada?, meus pensamentos foram interrompidos
por passos lentos, alguém subia as escadas, não olhei, arrumava
nessa hora o piano, senti um cheiro de roupa lavada com sabão, sem
perfume, tive vontade de rir, quando aquela mão fria, fina e branquinha,
segurou as minhas, tremi, mas lentamente deitei minha cabeça em
seu peito, o Padre Issac segurou meu queixo, nossos olhos se encontraram,
e num gesto quase inconsciente, nossas bocas se encontraram num longo beijo.
Nesse momento, soltei-me de seus braços, desci as escadas, e no
meio da igreja, quando ia transportar a porta, parei e olhei para cima,
lá estava ele, olhando-me, silencioso, como a pedir perdão.
Cheguei em casa ofegante,
corri para meu quarto, minha mãe veio assustada querendo saber se
algo muito grave acontecera, disse que era uma cólica comum.
Durante a semana fiquei
calada, as colegas do colégio perguntavam o que havia acontecido
comigo, meu silencio preocupava. No dia do ensaio, fui tomada por uma calma
muito prazerosa, uma certeza que nunca mais iria acontecer outro encontro.
No ensaio, procurava aqueles olhos de menino, aquela, magia de anjo, e
nada. Terminou o ensaio, sai com uma ponta de tristeza, mas ao passar pelo
confessionário, parei, percebi que ele estava ali, e lentamente
ajoelhei e murmurei algo incompreensível. Ele respondeu que sentiu
saudade. E lentamente o Padre Issac levantou, pegou minha mão, e
conduziu-me até a sala de ensaio. Subimos as escadas, nossos passos
se confundiam com as batidas de meu coração, e, entre o piano
e os pés do microfone, nossos gemidos se transformaram num
hino ao amor. Suas mãos acariciavam meu pequeno corpo que no prazer
do amor, fazia a dor do prazer, aquele local, onde as vozes do coral cantavam
para casais que se dirigiam ao altar, pareciam nos conduzir ao caminho
do céu. Nossos corpos rolando pelo chão, nossas roupas misturadas,
nesse momento eram cúmplices, se amaciando o chão. As partituras
silenciosas guardavam as notas para nos saudar naquele momento sublime
do prazer e do amor.
Acordamos daquele êxtase,
acordamos felizes, nossos lábios se encontravam, eu tinha que ir
embora, mas os beijos insaciáveis, eram uma despedida ansiosa para
um novo encontro.
E outros encontros aconteciam
em seus aposentos, já éramos íntimos, cada vez mais
precisávamos um do outro.
Até que um dia sugeri
uma fuga da cidade, nós queríamos mais e mais, ficar longe
passou ser suplício, Issac ficava indeciso eu queria uma solução.
Então decidimos pensar numa decisão. As férias
chegaram, minha tia do Rio de Janeiro convidara-me para estudar lá,
minha mãe sugeriu que eu fosse, lá eu poderia me formar e
ter um futuro melhor; neguei assustada, pois minha mãe era rigorosa,
minha irmã mais velha, não casou e nem terminou os estudos,
eu era a esperança de minha família, minha irmã que
tinha muita autoridade confirmava juntamente com minha mãe. Fui
para o quarto e rezei, pedi a Deus que não permitisse que me forçassem
a ir embora, saí escondida de minha mãe, caminhei até
a igreja silenciosa, fui me aproximando dos aposentos de Issac que ficava
após uma porta atras do altar, ouvi alguém conversando com
ele, um crucifixo pendido na parede, agucei meus ouvidos, Padre Issac conversava
com alguém que aquela semana seria a última, ele estava decidido
ir embora para outra cidade, tinha sido convidado para outra igreja. Uma
lágrima correu em meu rosto, a decepção da perda,
a solidão fazendo parte de minha vida tão jovem. Saí,
quando cheguei na rua, corri, chorava compassivamente, cheguei em casa
abracei minha mãe e pedi aos prantos que permitisse que eu fosse
para o Rio de Janeiro continuar meus estudos. Esta assustada e sorrindo,
feliz com minha decisão, disse que na manhã seguinte eu iria
embora. Ligou para minha tia, foi até a rodoviária, comprou
uma passagem e na manhã seguinte, o orvalho ainda nas folhas, brilhavam
com os primeiros raios de sol nas folhagens que contornavam a estrada.
O ônibus passou pela igreja, olhei a torre, as vidraças, os
jardins as escadas daquela igreja que nunca confessei meu pecado maior
de ter amado o padre que rezava, que levava a Deus os pecados daquela
cidadezinha tão bonita. Chorei por muito tempo. A estrada ia se
alongando cada vez mais, pondo para trás minha felicidade.
Os anos se passaram. Um
dia rompi com o medo e perguntei a minha mãe pelo Padre Issac, ela
disse que ele tinha ido embora no ano em que eu saíra da cidade
e que nunca mais alguém o viu. Terminei meus estudos, casei com
Orlando, tive três filhos, nossa vida sem muitas emoções,
minha mãe sempre vinha ao Rio de Janeiro, evitei retornar à
Juiz de fora durante vinte anos.
Um dia recebi um telefonema
que minha mãe adoecera. Falei com Orlando que tinha que viajar.
Cheguei na minha cidade, o coração apertado, antes de me
dirigir para a casa de minha mãe, fui até a igreja, caminhei,
fui até o altar, rezei por um instante, o coral ensaiava, olhei
melancolicamente para aquelas jovens, meu olhar parou numa loirinha de
olhos azuis, parecia comigo, fiquei por alguns instantes emocionada, uma
volta ao passado, o hino, o cenário, e caminhei até a saída
e atras do altar o padre olhava para o coral. Dei um sorriso e saí.
Cheguei em casa minha mãe
velhinha, na cadeira de balanço, nos abraçamos, ela fraquinha
falava da doença, meus pensamentos vagavam. Fui até a estante,
a mesma de quando morava ali, peguei um livro, dei um sorriso e lembrei
que fora meu, quando abri, tinha um bilhete dentro de um envelope, gasto
pelo tempo. Perguntei a minha mãe de quem era, ela com a voz cansada
disse que o Padre Issac tinha deixado pra mim, mas eu tinha viajado naquela
manhã. Abri o bilhete com a mesma emoção daquela época,
suas palavras pareciam tomar forma em meus pensamentos: ‘ESPERE-ME NA RODOVIÁRIA,
VAMOS SER FELIZES “. Encostei o bilhete em meu peito, fui até a
varanda, nesse momento o sino da igreja tocou, a tarde caía e uma
lágrima correu em meu rosto, de saudade e pena de nós dois.
Lira Vargas