Salmão. Ela adorava comprar pasta de salmão. Não que gostasse de peixe, muito pelo contrário: odiava peixe, tanto que quando era obrigada a comer peixe, o fazia devagar, bem lento, mastigando e remastigando, só para ter a certeza de que ele estava morto, cosido, triturado entre seus dentes. Engolia com asco, sem vontade. Mas adorava a cor do salmão e, todas as semanas, ia ao supermercado distante de sua casa para comprar a pasta de uma cor indecifrável. Linda! Bem sabia que salmão não era uma cor, era um peixe de cor bonita. Gostava. Assim também fazia com a alface, que também não dava a vida pela folha insossa. Não entendia como em todo restaurante sempre se servia salada de alface com alguma coisa: salada de alface e tomate, salada de alface e palmito, salada de alface e cebola... Sempre a folha presente. Por isso, com freqüência, estava a comprar um pé de alface, pela cor do verde também indecifrável, ora claro, ora escuro, ora desmaiado... Separava cuidadosamente duas ou três folhas e jogava o resto na lata do lixo. Procurava as mais bonitas, as mais brilhantes e bem recortadas. Desprezava as outras. Assim começava a desenhar seu prato: algumas folhas de alface e pasta de salmão. Ficava horas desenhando e olhando a sua obra. Enquanto isso escrevia. Isso sim, ela gostava. Era uma escritora compulsiva — descrevia tudo que via, escrevia tudo que sentia ou pensava. Além de escrever, fumava. Fumava um cigarro atrás do outro. Sabia que com isso estava com o passaporte e passagem garantida para um câncer bem grande, sem saber ao certo se nos seios ou nos pulmões, mas um câncer terrível e irreversível que a levaria à morte. Ah, a morte!... coisa em que sempre pensava e não se importava. Todos vão morrer mesmo de uma maneira ou de outra!, — sempre exclamava — ao menos sentia o prazer das tragadas e... escrevia. Pegava qualquer pedaço de papel e derramava suas letras. Escrevia sobre a mãe sempre a condená-la porque fumava, escrevia sobre a avó a lhe dizer o que era saudável para comer, escrevia sobre a irmã mais velha a lhe ensinar como fisgar e manter um namorado e, sobretudo, escrevia sobre as cores dos alimentos nos seus variados pratos. Até escreveu sobre o peixinho que uma amiga lhe deu de presente no seu nada festejado aniversário. O danadinho ficava no aquário, de boca aberta, de olho atento observando tudo o que ela fazia. Odiava o bichinho sem razão. Ou talvez tivesse razão em odiá-lo, porque ele ficava dia e noite de olhos abertos, vendo o que ela fazia, observando seus movimentos, controlando suas baforadas, recriminando sua falta de apetite e, talvez, censurando tudo que ela escrevia nos papéis soltos ou no micro. Tudo isso aconteceu até que um dia, disfarçando um descuido, deixou cair no chão o aquário, esquecendo o peixe fora d’água por horas, até ele expirar, finalmente. Assim se livrou da sentinela indesejada. Não ligava para os homens, preferia as letras com quem sabia combinar e se dava bem. Não se importava tampouco com a nicotina impregnada nos seus dedos carregando todos seus propagados perigos. Amava as palavras e os seus sentidos sutis, e escrevia nas folhas em branco como se estivesse pintando uma tela ou bordando uma toalha de linho branquíssimo. Nem dava bolas para o que comia — sanduíche aqui, biscoito ali, um suco de vez em quando — se deliciava mesmo com as frases que criava, inventava ou construía para se comunicar com os outros. Isso sim era seu alimento. Tampouco se preocupava com a sua aparência: sempre com um vestido gasto ou uma camiseta já com buraquinhos puídos que já adquirira a forma do seu corpo e o cabelo sempre por pentear, amarrado ou preso com um elástico ou um grampo grande. Batom e fitas coloridas para se tornar mais atarante, jamais!
Certa vez descobriu, não sei se numa livraria ou numa biblioteca, uma seção de livros sobre culinária. Não deu importância à primeira vista. Mesmo sem se interessar muito por comidas, resolveu dar uma olhada nos livro. Se apaixonou. Ficou enlouquecida com as fotos dos livros e as cores dos pratos. Um novo horizonte se descortinou ã sua frente. Passou a copiar todas as receitas. Queria saber de todos os ingredientes. Atormentou a mãe, a avó, as vizinhas, a irmã, as poucas amigas que ainda restavam e qualquer um que viesse a falar em culinária. Passou a freqüentar a feira semanal do quarteirão. Viajava nas cores dos comestíveis. Brincava com as sementes, os alimentos em pó, os líquidos engarrafados. Via-se em supermercados nas seções de frutas, legumes e hortaliças enamoradas com as cores dispostas nas prateleiras. Comprava os produtos mais díspares somente pelo prazer das cores. Escutava repetidas vezes a mãe dizer que ela precisava era comer os legumes, os vegetais, as folhas, as frutas e não ficar deslumbrada com as cores. Ouvia a avó reclamar da fumaça dos cigarros e, muitas vezes, já se via em um leito de hospital em estado terminal escutando as vozes matriarcais ecoando: — Eu não disse, devia ter parado de fumar, devia ter se alimentado, devia deixar essa fixação de querer descrever o mundo... Ou mais distante: — Se parasse de fumar não teria pegado esse maldito câncer... Não se importava com as reclamações nem com as alucinações que já batiam de vez em quando. Continuava sua viagem e sua obsessão em desenhar os pratos, em desscrever o que via e fazia.
Uma ocasião fez um trabalho para uma editora e ganhou um bom dinheiro com a pesquisa exaustiva. Não perdeu tempo: comprou todos os vinhos e champanhes que pode. Não pela vontade de bebê-los, mas pelas cores dos diversos vinhos. Assim passou dias admirando o verde, o branco, o vermelho, o bordô, as bolinhas cristalinas do champanhe, o amarelo do vinho adocicado. Assim escreveu frases, parágrafos, páginas e mais páginas sobre todas as cores. Dispôs na mesa cálices e copos cheios, semicheios, meio-vazios nos diversos ângulos e brincava de matizes contra a luz da manhã.
Assim viveu à sua maneira, sem se importar com os homens, sem se importar com si mesma, sem se importar com nada, se importando somente com a sua escrita e sua obsessão pelas cores. Não deu bola para que estava adquirindo um câncer bem grande, daqueles de alarmar médicos e familiares. Não se apaixonou por ninguém nem soube que ninguém pensasse algum dia querer namorá-la. Uma noite, quando sentiu que tinha acabado de colocar todos os rabiscos juntos foi dormir para nunca mais acordar, feliz por ter feito o que mais desejou na vida: escrever as receitas das cores.
Fernando Tanajura Menezes