Arrulhos de alhures

        Minha touca franzida de neném sueco, minha mamadeira quentinha, cheia e apetitosa, aquele frio que não chegava até o meu fofo e aconchegante berço e as cantigas de ninar da mamãe me levavam a espreguiçar e a me contorcer de prazer, como um animalzinho grato por atingir aquele céu cor de cobre só vislumbrável por trás de um floreado cortinado. Ainda não havia sequer perscrutado a possibilidade de perder aquele invernal paraíso. Nenhum sobressalto ou espanto me inquietava. Sequer ouvia estranhas vozes e nem sabia sobre a palidez da morte nem imaginara campos com calmos blocos de granito pretensamente eternos a registrarem pateticamente obscuros desastres. Não estava na hora de minha risonha e robusta alma conhecer ou sofrer confrontos com sombras, presságios, medos, solos e céus hostis ou vorazes. Minhas perninhas e bracinhos se agitavam com extasiante excitação inocente e pura, talvez angelical. Em meio a tamanha satisfação primordial nem ao menos via sentido em qualquer dualidade (fosse entre o Bem e o Mal ou entre o Dionisíaco e o Apolíneo). Isso era abstrato, incompreensível, coisas do futuro, do Além, gládios prenunciadores de orgias exterminadoras de hemácias. Festins com rubros lamaçais... tudo isso me era inimaginável, passava-se muito longe do meu berço (no qual, à noite, uma rena com o seu trenó me buscava para assistir a deslumbrantes auroras boreais, a casamentos principescos em castelos da vizinhança ou para apreciar luares inesquecíveis). Este Éden povoado de borboletas e pássaros multicoloridos esquivava-se dos maniqueísmos e incluía até aves e insetos que operavam vôos blasfematórios e miasmáticos que não ocorriam apenas em esparsos e incertos futuros. Em torno do meu paradisíaco berço tudo isso existia, mas me era desconhecido.  Assim vivia também os seus primeiros dias e meses Jean Christophe, personagem-título do romance (e obra-prima) do escritor pacifista francês Romain Rolland. Ao lado do quarto em que Jean Christophe tinha o seu catre, corria um cantarolante e cristalino riacho. Tal como em meus edênicos primórdios, suas papinhas de legumes tinham um gosto tão maternal quanto a fofura emborrachada e carnal dos aconchegantes seios da sua mãe. Eu vivia no campo sueco, longe dos fiordes, respirando os ares do extremo norte europeu e Jean Chistophe vicejava com o vigor dos aldeões do interior francês.
        Pouco antes do meu primeiro ano de vida, meus pais levaram-me a um espetáculo circense durante o qual Ingmar Bergman realizava as tomadas principais do seu filme Noites de Circo. Alheio a toda aquela movimentação, eu me contentatava em olhar pelos buracos da lona o pisca-pisca das estrelas. Ou a segurar, com apetite, a mamadeira que mamãe me oferecia.
        Jean Chistophe, por outro lado, ouvia o seu tio materno Pierre tocando violino, os passos dos que subiam a escadaria que dava acesso à sua casa ou o grasnar dos gansos do quintal da sua morada. Sua tia Estefânia, de vez em quando, trazia tortas de frutas, ervas, aveia e trigo integral para os seus pais. Em troca a sua titia ganhava o direito de passar suas finas mãos de fada sob o seu queixo por repetidas vezes. E ainda o acariciava as bochechas e pousava sua boca em sua quase obesa barriguinha e assoprava-a com força liberando sons que lembravam uma escandalosa sucessão de peidos, provocando-lhe cócegas que o levavam a gritos e a risadas estrepitosas.
        Leia, a seguir, o relato romanesco de Romain Rolland sobre os primeiros momentos de vida pós-uterina de Jean Christophe:
         “Dos fundos da casa eleva-se o surdo murmúrio do rio. A chuva fustiga as vidraças desde o amanhecer. Um vapor úmido escorre pelo vidro rachado num canto. O dia pardacento morre. O quarto está quente e abafado.
        O recém-nascido agita-se no berço. Embora o velho deixasse ao entrar os tamancos na porta, seu passo faz ranger o assoalho; a criança começa a gemer. A mãe inclina-se para fora do leito, afim de acalmá-la, e o avô tateando acende a lâmpada para que o pequenino não tenha medo da noite. A chama ilumina o rosto vermelho do velho Jean Michel, sua barba branca e rude, seu ar carrancudo e seus olhos vivos. Acerca-se do berço. A capa cheira a pano molhado. Arrasta ao caminhar as grossas meias azuis. Luiza faz-lhe sinal para que não se aproxime.
        É ela de um louro quase branco; está com a fisionomia desfeita e o rosto meigo como o de uma ovelha é pintalgado de sardas; tem os lábios pálidos e grossos que não chegam a cerrar-se e sorriem com timidez. Acaricia a criança com os olhos, — olhos muito azuis, muito vagos, cuja pupila é apenas um ponto pequenino mas infinitamente terno.
        A criança acorda e chora. Seu olhar nublado move-se. Que pavor! As trevas, o clarão brutal da lâmpada, as alucinações de um cérebro apenas egresso do caos, a noite asfixiante e cheia de mistérios que o cerca, a sombra sem fundo de onde se destacam, como jactos deslumbrantes de luz, sensações agudas, dores, fantasmas: aquelas figuras enormes que se inclinam sobre ele, aqueles olhos que penetram, que se cravam nele e que ele não compreende!... Não tem forças para gritar; o terror imobiliza-o de olhos e boca abertos, estertorando do fundo da garganta. A cabeça grande e entumescida enruga-se em caretas lamentáveis e grotescas; a pele do rosto e das mãos é morena, violácea, com manchas amareladas...
        — Santo Deus! Como é feio! — disse o velho com convicção.”
        Na verdade, o máximo que Jean Chistophe podia perceber naquela ocasião era a claridade exagerada propiciada pela lâmpada, nada mais. Ele ainda estava cego.Ou melhor, ainda não conseguia enxergar nada. Nascera há pouco mais de uma hora e meia.
        Quando eu nasci me banharam em água morna colocada numa bacia esmaltada branca e mamãe foi tratada com canja de galinha e chá de erva-doce. Mas nem Ibsen, nem Strindberg nem Swedenborg puderam registrar meu nascimento, embora tenha vindo ao mundo na mesma Maternidade na qual Ingmar Bergman filmava No limiar da vida.
        Lembro-me ainda que meu primeiro cocô era amarelinho como uma gema de ovo e surgia como uma serpente solar do fundo de uma moranga cor de cobre com laivos de verde. Gema de ouro que tantas vezes ofertei a minha mãe, que sempre recusava-a. Até hoje ignoro os seus motivos para tal recusa.
        Eu era tão sapeca quando completei o meu primeiro aninho!...Comia tantos cajuzinhos de amendoim que até ficava com dor de barriga!...
        Minhas primeiras palavras foram “dá-dá-dá” e fui batizado no dia de Natal de 1951, em plena guerra da Coréia.
        No meu primeiro aniversário, além de uma variada mesa de doces, antes de franqueá-la aos convidados, mamãe serviu sanduíches de leitoa assada e entre os presentes que ganhei na primeira festa da minha vida apeguei-me mais ao chocalho que tia Juliette me deu e a uma cornetinha de plástico azul e verde. Ai que saudade!...Meu cabelinho cortado aos 14 meses era fino e meio lourinho e até hoje o conservo num pequeno envelope colado numa das páginas do meu álbum Johnson’s!...

José Luiz Dutra de Toledo


 
 

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