Uma nuvem desceu sobre teu rosto e tua voz. Pouco me lembro de detalhes do teu corpo, mas das tuas mãos sim, recordo-me.
Eram mãos ágeis, de dedos pequeninos e roliços. Encantava-me a forma como introduzias de um só golpe a linha na agulha e, como depois alinhavava barras e barras de tecidos rudes com uma rapidez engraçada. Assim foi durante toda a minha infância e adolescência. Assim havia sido durante toda a tua vida. Tua voz cansada e sempre um tom abaixo do normal chamava-me a fazer prova das roupas que cosia para as meninas ricas da vizinhança.
— Vem filha. Vá tomar um banho para tirar o suor do corpo. Preciso entregar este vestido amanhã.
Enternecia-me vê-la com as costas curvadas sobre a máquina de costura (que sequer motor tinha) até tarde da noite. Quantas vezes durante a madrugada a surpreendi ressonando sobre retalhos de tecido. Dormias um sono brando, entrecortado por pequenos espasmos, frutos do excesso de trabalho.
Nenhuma queixa, nada de lágrimas. Assumira para si a tarefa de ser mãe e dona de casa absorvendo as pancadas da vida como coisa normal. E o destino não contestavas. Nem mesmo quando teus olhos apertados e cheios de bruma dificultaram-lhe o trabalho, revoltou-se. Comprou óculos à prestação.
Achou-se bonita. E eu concordara contigo, estavas bonita. Estavas linda com as tuas rugas e manchas senis. Estavas linda com a tua boca quase sem dentes e teu corpo murcho e exausto. Parecias um anjo. E que anjo tu eras. Como esquecer-me daquele dia em que ficastes quase uma tarde inteira esperando-me sair do trabalho, escondida atrás de um poste do lado oposto da rua.
— Mãe!!! mas o que faz aí escondida? por que não me chamou?
— Ah minha filha... teus amigos.
São também das tuas mãos, as minhas últimas lembranças de ti.
As tuas mãos, quanta dor. Já não conseguias mais enfiar a linha na agulha.
Estavas morrendo. E eu, eu não sabia.
Vivestes em silêncio resignado e silenciosamente partistes também. Sem aviso. Mansamente. Como tinha que ser.
A mim deixastes o legado das tuas mãos. Da nobreza do teu sangue. Do digno e santo ofício de costurar as minhas lembranças.
Mariza Lourenço