Áurea

        Foi em um Domingo, em que o tempo não se decidia entre chover e fazer sol. Os animais arrastavam-se pela casa, como se as pulgas fossem tão pesadas quanto os pesos das balanças das feiras. O frio do piso parecia corroer a couro do pé, a cada passo trabalhoso que aquela magnífica senhora dava.

         Agradava-lhe perguntar, sem preferência por idade, cor ou hierarquia, a hora. Perguntava ao primeiro transeunte que   cruzasse a sala onde puseram sua cadeira de balanço. "Que hora é essa?", perguntava com a voz firme, porém terna, que os pulmões ainda impulsionavam. O interpelado, muitas vezes um filho, neto ou bisneto daquela mulher-planta respondia-lhe abusado, quase forçado, para não desrespeitá-la .

        A cadeira era seu maior bem, pois a maior parte de seu parco tempo restante passava nela, apoiando a cabeça em uma  almofada verde e marrom. Seus tataranetos gostavam de contrariar-lhe, balançando-se exageradamente na cadeira. "Menino, não balance que as mola já estão estragadas.", tentava, com a esperança de que o garoto saísse de seu bem e lhe desse a vez.

         A casa era assaz movimentada para seu ritmo. Atormentava-lhe a obrigação de morar ali, porém, depois da morte do marido, só tinha aquela opção. Não exigiria luxos, visto que agora sua presença representava uma pendência, e seus descendentes esperavam somente sua morte, pois não era possível enterrá-la viva.

         Ultimamente, escrevia muito, enviava cartas e rezava, para preencher o tempo. Seu gato cumpria rigorosamente a  obrigação de único companheiro, lia suas cartas, sugeria uma palavra diferente em alguns casos, dormia e assistia à televisão. Não era um gato comum, como aqueles que se eriçam, miam tediosamente, esfregam-se nas pessoas, mas só o fazem, quando querem algo. Era coerente e solícito. Às vezes, ele respondia algumas cartas, quando a senhora se encontrava lassa e o pedia.

        No Domingo referido, como a chuva parecia iminente, ela sugeriu a seu companheiro que se banhasse sobre o muro. A senhora lamentou sua idade avançada e a impossibilidade de também aproveitar aquela chuva, tão rara em sua terra original. O gato rejeitaria a sugestão, se não soubesse que a dona se sentiria regozijada, vendo-o todo ensopado e emagrecido pelos pêlos molhados. Subiu o muro e, desinterassadamente, esperou que a água desabasse. Sua cauda desenhava o ar com cuidado, e o gato se acomodou. Infelizmente, o sanhoso cão de seus descendentes mais jovens surpreendeu o felino e o trucidou instantaneamente. O gemido dele não foi eficiente, para que o socorressem dos pontiagudos dentes do arquiinimigo a tempo, por isso a senhora se isolou da rotina, retardou suas atividades, a vida a enfastiou, e ela só vegetava, desde o inesquecível e agônico fim de seu mais íntimo companheiro.

         Ela estava tão mal, que ninguém entendia como levantava todo dia e continuava sua vida já muito bem vivida. Em sua terra natal, acreditava-se que a causa da morte de crianças era o excesso de anos que um ou outro vivia, mas ela não se sentia culpada, pois não era supersticiosa nem religiosa, apesar de forjar essa imagem.

         Certo dia, surpreendeu a todos dizendo que queria sair. Havia anos que ela não via desconhecidos, carros, comércio e todo movimento das ruas de grandes cidades.

             Aonde a senhora quer ir, mãe?

             Feira, respondeu instantaneamente.

        Não se sabe como, pois seria impossível, considerando a lentidão da senhora, mas ela desapareceu por vinte minutos e, ignora-se como, reapareceu ao lado do neto que a levou, com uns pacotes contendo ervas, pétalas de flor e pequenos vidros com líquidos de várias cores. "Vai comprar alguma coisa?", perguntou ao neto assombrado que sacudiu a cabeça  negativamente, por falta de fôlego.

        Em casa, logo que chegou, trancou-se em seu quarto. Não saiu para o almoço e passou a tarde assim.

        No outro dia, saiu disposta, sem esboçar ansiedade nem apreensão. Almoçou, escreveu muito, arrumou o quarto e deitou. Reuniu a família e avisou:

        Vou morrer hoje.

         Ninguém deu crédito e cada um retomou sua vida, até que um dos tetranetos veio chorando do quintal. Ele chamou a  atenção de todos, quando anunciou a morte dos cães. Naquele alvoroço que reuniu todos na investigação das causas da morte, alguém ouviu o choro do caçula da casa. Ela descansara.

Ramon Arruda


 
 

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