No primeiro castigo deceparam um dedo, o indicador. Isso era para ela
aprender a jamais indicar nada sem absoluta certeza. E também não
acusar sem provas, e também não falar sem estar absolutamente
certa da veracidade do que dizia. Ficou sem o dedo. No lugar, o medo e
uma falha na série que era de quatro; um intervalo maior entre o
polegar e seu vizinho, o pai-de-todos. Daí que falava cheia de medo,
“cheia de dedos” e sua opinião era sempre a mesma: quem sabe, talvez,
pode ser, você acha? Puxa... Ah, não tinha pensando nisso...
E por aí ela ia, usando todas as formas evasivas, todas os jeitos
de não dizer nada com nada. Acabou ficando perita nessa arte de
não dizer. A segunda tática era concordar com todo mundo
que fosse mais agressivo. Ah, se o sujeito a punha contra a parede, se
a mulher ficava histérica e brava, tudo bem, ela só observava
o que eles queriam que dissesse e pronto: dizia o que queriam ouvir,
morrendo de medo, lógico.
Numa dessas se deu mal, apesar dos cuidados extremos. O maldito a apertou,
perguntou se queria ou não queria o emprego. Podia ouvir a sua voz
de cadela condenada: “Se o senhor quiser, eu trabalho. Mas a senhora quer
este emprego, a senhora sabe as condições que oferecemos
aqui, a senhora sabe que atividades desenvolvemos aqui? Puxa, não
tinha pensando nisso... Então, a senhora quer o emprego? Pode ser.
A senhora está presa!” Aí apavorou-se, como assim, ia ser
presa? Ficou muda, branca, mas finalmente teve coragem de perguntar, trêmula:
“O que foi que eu fiz, doutor? Ora, esse emprego que estou lhe oferecendo
é ilegal e você está aceitando ser comparsa nessa sujeira
toda. Sou policial à paisana, pronto pra pegar mulas como você,
que aceitam qualquer coisa por dinheiro”. Ela começou a chorar,
mas não teve jeito. Lá se foi o pai-de-todos! Por pouco não
levaram a mão inteira. inda teve sorte de continuar com a palma,
ainda que só com dois dedos, um intervalo enorme e o polegar. Três
pontas berrantes.
O pior de tudo era levarem o dedo junto com a dignidade. Ela ficara
lá no meio do povo, que cuspira e xingara de tudo quanto é
asneira (ai de que não xingasse e cuspisse!). Daí colocaram
a mão da moça sobre um toco de madeira, já escuro
de tanto sangue, e disseram, clamando alto, cheios de razão, “olho
por olho e dente por dente!” Baixavam a machadinha sem pausa, sem pensamento.
Ela sentiu uma pontada aguda na mão, um fluxo quente jorrando...
e viu o dedo postado. O dedo estranho, que não era mais dela e jazia
no chão. Queria ficar com o dedinho, me contou, queria alisá-lo,
ver se colava de novo; se despedir, ao menos. Mas não teve nada
disso, o dedo foi logo comido pelos cães. Depois teve que aprender
a lidar com os deditos restantes. Doía, doía, mas depois
melhorou. Olha que ela ainda conseguiu fazer milagres com os que se salvaram.
A boa notícia era que a moça aprendera novo jeito de se
livrar das encrencas com a Lei. Segredou-me seu codinome: Rosa. Entregou-me
uma carta, carta para sair do país, ir para o estrangeiro. De qualquer
jeito a carta iria sem nome próprio, precaução contra
a má sorte (vá lá que a carta caísse nas mãos
inteiras dos radicais?).
Aprendera, também, a fazer-se de surda-muda. Nada entendia e
nada falava. Era surda-muda de nascença. Podiam gritar, podiam chamar
à vontade quando estava de costas; podiam dizer "cuidado!"; "incêndio!";
podiam estourar balão; podiam dar um tiro pro ar, que Rosa Burca
nem se mexia.
“Ah, ah, ah! Você acha que vou me arriscar a perder outro dedo,
talvez a mão inteira? Nada disso! Viro múmia! Finjo tão
bem que quase que eu mesma acredito na minha deficiência e não
volto nunca mais a falar e a ouvir.” Relembro a fala de Rosa, um tom de
pânico, se esforçando pra ser audaz, pra não ser enterrada
viva.
Outra estratégia que a moça articulara (mandou-me prestar
muita atenção), era inverter e devolver toda e qualquer pergunta
que fizessem. Você quer esse emprego? inverte: o senhor acha que
eu quero esse emprego? Você viu o seu fulano roubando? inverte: O
senhor acha que eu vi o seu fulano roubando? Muito importante, ressaltou,
não se pode esquecer de devolver a pergunta com voz e ar de descrédito,
voz de quem acredita que o indagador é um tolo. Geralmente a estratégia
funcionava. Se por acaso não funcionasse, apelava para as evasivas
costumeiras. Só atente, recomendou-me ela, para nunca afirmar nada.
As afirmativas são perigosas demais nessa terra. Seguindo os conselhos
sábios de Rosa, as mulheres haveriam de evitar a perda do pai-de-todos
e preservariam suas mãos quase inteiras.
Então, fiz o que podia, enviei a carta dela para a redação. Nunca foi publicada. Tempos depois Rosa Burca morreu. Subnutrida; infecção. As palmas vazias, conchas de cicatrizes. Os dedos semeados pela região.
Marta Rolim
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NA: Este conto foi escrito inspirado nas mulheres do
Afeganistão e nas milhões de meninas africanas submetidas
à extirpação doclitóris e ao drástico
estreitamento vaginal.