Bom dia tristeza!

                                     “There are things are known and things that are unknown;
                                                   in beetween are doors.
                                                   If the doors of perception were cleansed, everything would
                                                   appear to man as it truly is, infinite.”
                                                                                                                         ( William Blake)

        Suave é a Noite, quando a Noite cai. Para alguns, apenas a continuidade dos dias, o cair da escuridão, o despertar dos temores... Para outros, percebida como inesgotável fonte de inspiração, poesia errante, e sobretudo, satisfação.
Foi exatamente em busca de satisfação que Marian traçou a sua sorte, quando  desde cedo soube que a vida, sob o toque frio da realidade nada mais era que  angústia, tornou-se indiferente a ela, e então, edificou o seu próprio mundo entre as  arestas  do  seu  quarto.
        Marian em nada se aparentava com as mulheres da sua idade, não seguia os ditames da moda e muito menos os padrões universitários de pensamento, não que  assim quisesse ser, mas porque assim era; podia-se dizer, diferente. De outro modo, algo lhe era bastante particular, todas as coisas a sua volta, cada um de seus livros e discos, a sua cama, a janela de seu quarto, a sua caixa de pedras, a fenda em cima do seu leito e sua Lua, todos representavam uma pequena parte de si mesma que ela conhecia muito bem.
        Desde a adolescência mostrava-se interessada pela cultura clássica, deixava-se entreter pelos seus mitos e a história de suas civilizações. Aos vinte um a chama juvenil acendeu-lhe os instintos libertários, e a procura incessante pelo conhecimento deixou em suas mãos um livro que consolidou o seu pensamento, de que o desconhecido reserva em si uma experiência que não pode ser apreendida pela consciência humana, senão pelo desregramento dos sentidos. Tal experiência ampliaria as faculdades perceptivas do homem e o conduziria a uma concepção universal do mundo. A prosa-poética de Rimbaud em Uma Temporada no Inferno havia mudado os conceitos de Marian.
        Depois de formar-se em filologia clássica pela UCLA percebeu que havia apreendido do mundo real o suficiente para estar bem consigo mesma. Haveria então de experimentar a metafísica do mundo em todas as suas nuances.
Sempre foi um traço marcante de sua personalidade o completo desconhecimento dos seus limites, até porque não acreditava neles. Era chegada a hora, portanto, de conhecê-los. Ela estava decidida a sair de seu quarto, do seu mundo, para que pudesse viver mais.
        Talvez estivesse cansada, e naquele momento, precisava descansar ...
                           Queria desconhecer,
                           Perder os sentidos,
                           E então, sentir tudo ao seu redor.
                           Deixar a Dor e conhecer o Prazer.
                           Queria perceber a existência de Deus,
                           De que tanto seus avós falavam.
                           Saber até onde se estenderia o fio de sua vida.
        Marian precisava das respostas, que até então não havia encontrado.
Já tinha lido algo sobre as experiências de Huxley com mescalina, uma das substâncias extraídas de alguns tipos de cactus da espécie Lophophora Williamsii, facilmente encontrado em todo o estado da Califórnia e do Novo México.
        Existem vários estudos sobre os efeitos alucinógenos da mescalina, e da utilização daqueles cactus em rituais religiosos por tribos indígenas, como os Huichols mexicanos no ritual do peyote. As descrições fantásticas de Huxley influenciaram Marian a escolher a substância que iria distanciá-la do seu cotidiano fastidioso.
        Ela conseguiu aproximadamente 500mg de mescalina em cápsulas gelatinosas de um professor de psicologia da Universidade de Los Angeles que cultivava cactus em seu jardim para consumo próprio. Aquela quantidade era suficiente para provocar alucinações cerca de doze horas com efeitos fortíssimos,comparados ao LSD.
Era uma Noite perfeita, plenilúnio; Lua estava presente, como em todos os grandes momentos da sua vida. Pela janela do seu quarto penetrava um rastro de luz. Marian, sentada no chão, procurava em meio aos seus vinis algo que a fizesse lembrar do tempo em que a vida fazia algum sentido, algo que a fizesse esquecer da angústia que é viver o presente ciente do abismo que o separa das recordações do passado; e lá estava o “Wish”, a trilha sonora para um sonho.
Marian só sentiu as primeiras alterações em seus sentidos uma hora depois de ingerir as cápsulas de mescalina. A partir daquele momento, nada mais seria real, ela sabia disto, mas as cores, a música, as formas à sua volta eram cada vez mais intensas e fascinantes.
        O florido papel de parede do seu mundo tornou-se um imenso jardim pela vez primeira que o tocou, logo fez questão de ter em seus braços o número maior de flores que conseguisse envolver, lá estava ela, deitada sobre o seu imenso jardim. A música já era percebida ao leve toque de suas mãos ao ar, a melancolia da canção a fez chorar regando então todas aquelas flores, Marian cantou a sua música preferida...
             “Remember how it used to be
              when the stars would fill the sky
              remember how we used to dream
              those nights would never end
              those nights would never end

              It was the sweetness of your skin
              It was the hope of all we might have been
              that filled me with the hope to wish impossible things
              to wish impossible things”

        Marian pairava, leve, permanecia encoberta por um espiral de flores perfumado por lírios, rosas e jasmins; distorções de cores vivas perfuravam a sua retina; Lua como que envolta em uma áurea rutilante ofuscava-lhe os olhos.
        Quando tinha vinte e poucos anos ela sonhava em estar um dia correndo por um daqueles campos holandeses de cultivo de flores, livre. Naquele instante, por expansão do tempo e espaço, Marian deitada em seu leito vivia as sensações daquele sonho de forma tão real que se podia ver a satisfação expressa em seu rosto.
        Muitos acreditam que ao virmos a este mundo o nosso destino já está traçado, anteriormente determinado por algo que ainda não soubemos explicar. Os gregos mantinham a crença de que as filhas da Noite, as Parcas, entidades representadas por três irmãs, Cloto, Laquesis e Átropos governavam a sorte das criaturas humanas, teciam o fio da vida sem que ninguém pudesse interrompê-las nessa tarefa.
        As três velhas fiandeiras apareceram-lhe em redor da sua cama, vestidas com as suas túnicas cobertas por flores do seu jardim, vieram cumprir as suas funções. A Cloto, a menos velha  das três, cabia tecer o fio do destino, Laquesis se encarregou de colocar o fio no fuso, Átropos, a mais velha, cumpriu a tarefa de cortá-lo.
Talvez 50mg a menos de mescalina teria impedido que uma das Parcas ceifasse-lhe a vida, mas naquele instante nada mais importava, Marian com um quase sorriso na face dava vistas que havia encontrado o que sempre procurou, mergulhar em perspectivas infinitas.
        Logo o conturbado mundo viria a procurar respostas, e certamente não as obterá, não a verdadeira, pois esta permanece no íntimo daquela que se foi.
        Era Noite velha, quando na escuridão do quarto, Marian repousava com um ar sereno de satisfação, Lua descansava a pata em seu rosto tal qual um gesto de adeus, ali vida e morte se despediam cada uma à sua maneira.

Abdon Menezes


 
 

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